domingo, 24 de novembro de 2013

varanda, final de tarde.

quando o tempo passar, a banda não vai mais estar por perto
todos voltarão à naturalidade vaga
eu sentarei com a minha turma
enquanto a sua vai caminhando para o norte
e você fica para trás
olhando as colinas da cidade trabalharem a sua barreira
ao Sol.

a varanda ainda está molhada e ela senta
e molha sua saia; o som do mesmo disco rodado
por duas semanas seguintes
continua a rodar em sua varanda,
as letras são dela, as palavras são para ela
a voz vem em seus ouvidos e soa como se fossem cantadas em seu ouvido, para cada um dos dois.

o sol laranja começa sua descida, as nuvens cinzentas cobrem boa parte de sua cor.
mas o fim da tarde ainda é lindo, as nuvens e a poluição misturadas com o sol
fazem todo o sol se colorir com raios rosa e laranja,
enquanto uma leve chuva continua a cair, mesmo após perder quase toda a sua força.

e não há ninguém se molhando nessa chuva, as poucas gotas restantes são guardadas pelas nuvens,
as nuvens parecem tristes para ela.
assim como todo o resto do dia,
e as palavras vindas da voz mais suave a fazem lembrar do que sentia
há algumas semanas. Ela não chora por enquanto.

agora as turmas se vão, as idas ao norte, ao centro e ao leste não parecem os mesmos.
Ela está parada em sua varanda, o sol do final da tarde está em seus momentos finais.
Seus olhos brilham o contraste entre o verde e o vermelho. a música parece mais leal a seus ouvidos
a cada vez que a escuta.

Passa sua mão branca pelo chão úmido, sentindo cada uma das gotículas de chuva ácida de sua cidade.
Sente um pouco de seu coração em cada uma delas, se embriagando com os mililitros de ph corrosivo que caem por aqui regularmente. O frio nos últimos tempos tem sido um amigo muito familiar a ela...

o céu encontra o breu e a Lua cheia mostra sua cara antes mesmo do Sol sumir com a dele.
o encontro dos dois ocorre e ela ainda está parada, ouvindo mais uma vez ao disco de duas semanas.
todos aqueles sons foram feitos para ela, os músicos apenas não sabiam disso ainda.
as legiões do sábado à noite saíram, foram fazer o que devem fazer
ela está sentada na varanda, uma leve garoa volta a cair, relembrando os últimos dias chuvosos e quentes.
coloca sua cabeça para fora da varanda, sentindo as mais leves moléculas de água roçarem em seus cabelos.

ela vira a cabeça para cima e olha para uma luz alguns andarem acima,
as minúsculas gotas de chuva passam pela lâmpada como tropas silenciosas na madrugada
ela encara o sereno de frente e sua música favorita toca
uma grande gota cai em seu olho esquerdo
e se confunde com a lágrima que escorre do seu olho direito.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

I wanna hear your virtual voice again.

I hate to say this
Is like declaring the end of a war
That I lose.
I wanna hear your virtual voice again
Coming up to me on a kinda green little post- it on my screen
Bringing your eyes and your
Fucking
Smile.

I’m listening Modest Mouse on a Wednesday morning
And every little sound I hear around my room
Makes me wish for a half of a second
That I’m not a bum
And that it’s you calling me again for a chat


Fuck.


A little roachie on my lap
Drivin’ me insane,
                                 Each day.
The roachie smell’s not like your smell, honey.
Although I’m in love with both your smells
Cos’ after  all, I’m the one who stinks.
And that’s cool too,
b.
They keep playing their instruments on my stereo
My telephone keep’s ringing
None of them brings you
None of them seems to dare bring you and your lovable  face.
Or our long conversations, you know
Me trying to impress you, you know, with my crazy ass mind.
And you releasing your problems on me, baby, and I
ALWAYS
ALWAYS
Goddamn ALWAYS
Get into saying a few things to cheer the person up
And end up get into that friend fuck thing.
Oh no, not fuck friend. Or fuck buddy.
Fuck me, buddy.

You know, forget it.
Stick all your friendships up your ass
Go live on a jungle, with monkeys
And mosquitos on your ears.
Maybe then I’ll be capable to stop associating any fuckin’ little sound
To you
And your eyes
And your fucking
Smile.

Well,
It will be very pleasant for me
And a little for my soul
To hear your virtual voice again.
Or a few more times too,

Baby.

domingo, 21 de julho de 2013

coisa qualquer

Noites quase chuvosas e quase frias
com cães choramingando a noite
tantos prantos aos cantos
caem os barrancos
e aos solavancos
encontra-se o encanto;

Noites sujas e frias, mais cinzas do que negras.
A sobriedade ébria da cidade grande,
com pequenos gatos fugindo das pedras que as revoltadas
crianças de rua jogam em suas cabeças.
Alguns caem dos muros e são apedrejados por seus meros pecados,
outros são levados ou se rastejam até a luz do poste mais próximo, pedindo por socorro e uma dose de cachaça.
Outros estão em suas casas, dormindo ao lado de suas mulheres e homens, ursinhos de pelúcia e namoradas.
Outros caem doidões na rua e sambam no próprio excremento à procura do que um dia foram,
muitos se encaixam nesse grupo,
aliás.

sábado, 15 de junho de 2013

lonely lobo rag

Lobo segue na neve
com o focinho gelado
enfiado no frio.
Tem fome e solidão
frio e mais chão.

Passou pela cidade
Na margem de seus rios tentou pescar
Um peixe molhado e fresco
Mas o homem já os tinha ido pegar.

Ouviu tiros e gritos
e foices para o ar.
Num pinote da cidade ele saiu
Ou o facão sua garganta ia provar.

Então correu pela neve
a cidade se foi
o lobo com frio
e a fome de um boi.

Agora na neve perdido
Nem seu focinho mais sente
Por um tiro foi feriado
Na pata a dor latente.

Arfa e arfa, seu pulmão se congela
Na neve ele se arrasta
o lobo da floresta.

E em seus últimos suspiros
o lobo viu se aproximar
um dos homens do rio, pois bem:

"Vá pra puta que o pariu"

domingo, 9 de junho de 2013

1- Demar/ 2- Visita ao moribundo


Parte I – Demar

1 – Enfim...você conhece aquele cara gordão, barba meio cinzenta e coisa assim...um sujeito gigante que tá sempre de porre? Cabelo estilo soldado.

2 – Conheço um mundo de sujeitos assim, cara. Um monte de motoqueiros metidos a nazi, mamados de pinga e pó e breja.

1 – Não, esse é fácil de reconhecer. Tava sempre com uns dois ou três pacotinhos daqueles M&M's de amendoim no bolso, saca? Aquele amarelo, sabe? Comia direto, falava que era a melhor coisa do mundo.

2 – Não fode, cara. Como alguém consegue preferir aquele lixo de amendoim? Odiava quando tinha só esse na caixa de bombom.

1 – Não gostava também, não.

(Silêncio)

2 – Mas o que tem ele? Acho que lembro quem é...acho.

1 – É, o cara bebeu até o fígado dele virar uma pedra etílica dentro do corpo e agora precisa de um novo pra tipo...ontem. Tá no hospital, nas últimas. O fígado parou de funfar de vez e agora ele tem umas alucinações e tal...tá ficando meio demente também por causa disso.

2 – Hmmm...que azar, puta merda. Mas por que?

1 – Como "por que"? Ele bebia umas duas garrafas por dia desde moleque.

2 – Não, por que ele tá demente e alucinando e tal?

1- Ah, por causa daquele fígado inútil dentro do cara. Para de limpar o sangue e zoa todo o cérebro, sabe. Coisa louca...bem cruel.

2 – Eu sei, perdi um padrinho por isso. Coitado dele. (SILÊNCIO) Faz você pensar em parar de beber?

1 – Não. E você?

2 – Não muito.

1 – Não é um problema pra mim

2- Pra mim também...não muito, pelo menos. Mas provavelmente ele devia pensar isso também

(SILÊNCIO)

2 – Ele era meio quietão quando a gente saia, por isso não lembrava dele. Nunca tava com ninguém, nunca tinha namorada e coisa assim. Lembrei dele agora...é...ele bebia que nem um cão de rua sem ninguém. Mas ele não vai conseguir um fígado novo no hospital? Não vai tentar doação?

1 – HAHAHA, doação, cara? Quem é que vai doar um fígado novinho em folha pra um cara desses diluir ele inteiro em álcool e drogas de novo? Não...vão deixar o cara lá no hospital, morrendo lentamente, querendo um drink e um cigarro, mas não vai dar nada pra ele porque vão dizer que é para que ele fique melhor, mesmo sabendo que vai morrer. Ele não é o Raul Seixas, né? Não...o fígado novinho em folha vai pra algum paciente com câncer ou com alguma doença que não foi ele quem causou. Ou talvez pra algum empresário alcoólatra podre de rico que mereça mais um orgão novo do que ele.

(SILÊNCIO)

2 – Lembra aquela vez lá no Estádio que ele levou um tapa na cara e umas cuspidas de umas garotinhas que tinha começado a conversar do nada? Do nada, cara, elas apenas riram do que ele disse e começaram a azucrinar o sujeito. Depois disso ele chegou com um sorriso no rosto pra gente, como se não tivesse acontecido nada...puta, foi engraçada a cara dele. Aí depois ele bebeu até quase desmaiar, mas não sem vomitar dentro do decote da Bia antes.

(RIEM)

1 – HAHAHA...lembro, cara. Ri muito nesse dia.

2 – Ele era meio patético de se ver assim...acho que combinava mais com porres e ressacas mesmo.

1 – Aquele cortezinho de cabelo...parecia o carinha daquele Nascido Para Matar, saca?

2 – Gommer Pyle. Hahaha, é. Mas ele era firmeza. Quando abria a boca falava umas coisas hilárias...às vezes saia alguma outra coisa interessante também.

1 – Ou às vezes só gorfava álcool puro.

(SILÊNCIO)

2 – Qual era mesmo o nome dele?

1 – Não lembro o primeiro nome. Nunca soube. Chamavam ele sempre de Demar.

Corta.


Parte II – Visita especial ao moribundo

Passos de salto alto no corredor da UTI. Passos ritmados e sem pressa de uma garota que anda serena no meio daquele ambiente tão denso e triste. Portas abertas e semi abertas, casais, famílias, crianças, idosos, muitos idosos com seus entes e visitantes em seus quartos, sofrendo a morte sorrateira e sozinha, mesmo rodeados pelos que se importam por eles. A moça desbrava aquele corredor branco e vazio, enfermeiras e médicos estão todos ocupados no momento, aparentemente. Ou estão fumando cigarros no térreo, no último andar, nas janelas abertas apenas por frestas para que os que estão nas últimas não cheguem às vias da morte mais cedo. Ela passa tomando um café fumegante, não olha para ninguém. Sua pele é branca e seus lábios vermelhos e grossos. Um enfermeiro perdido no corredor a vê caminhando e pensa numa cena de Kill Bill que lhe veio direto do inconsciente, tamanha semelhança com o personagem.
Ela termina o corredor branco, vira para a direita, outro corredor branco. Vai até o final desse, como no outro. 502, 504, 506, 508, 510. 512. A porta do 512 era a única fechada em todo o corredor. E a única que não parecia ter ruído algum por dentro, sem choramingos ou gemidos de dor, apenas um som semelhante ao do começo do sono profundo, minutos depois de deitar na cama após um dia cheio. A garota branca bate na porta três vezes, ninguém diz nada do outro lado da porta. Ela bate novamente, uma voz morta e decadente responde um "entra" bem baixinho e a garota killbilliana abre e disfarça um sorriso de alegria quando vê o homem deitado na cama. Não que estivesse fingindo a alegria de vê-lo, apenas não queria deixar transparecer o olhar de horror para o seu amigo havia virado depois que internado. Triste, muito triste.
  • Demar, como você tá, meu amor? - pergunta a bela dama
Demar está afundado em seu leito, com aparelhos hospitalares por todos os lados, infinitos barulhinhos incontáveis vindo das máquinas que estão pelo quarto, pequenas luzes desses grandes aparelhos vão do escuro ao vermelho, do escuro ao verde, do escuro ao vermelho. Todas sincronizadas com os apitos das máquinas. A garota não sabia como era possível aguentar uma internação na UTI por meses e meses. Demar estava lá havia um mês e meio e parecia já estar completamente insano com tudo aquilo. Seu olhar era vazio, seus olhos duas bolas amareladas e suas olheiras botavam medo até em assassino psicopata. Havia perdido muito do seu notório peso nesse tempo. Ao seu lado havia uma bandeja com comida que não foi tocada por ninguém. Uma sopa com cara de vômito de cenoura e uma gelatina azul. A moça sentiu seu estômago embrulhar e um gosto amargo vindo de dentro de seu corpo. Segurou aquilo e se aproximou do moribundo lentamente, ele fazia força para poder falar:
  • Ótimo...tirando que...tô na merda – e ri
Ela ri junto.
  • Você não perde a piada nem nessas situações, né?
  • Não – respondeu após alguns segundos lutando contra sua fraqueza
A garota sorri para Demar, um sorriso branco e grande. Aquilo foi a coisa mais agradável que o rapaz havia visto naquele hospital até agora, nem as enfermeiras estagiárias tinham chance com o sorriso dela. Então ele reparou que, além do sorriso, a garota passava a mão carinhosamente por seus cabelos que começavam a crescer mais do que ele já tinha deixado antes. Demar se sentiu como um cachorro abandonado, que recebe atenção e comida de alguém na rua durante o inverno. Pensou que deveria sentir vergonha de tamanha comparação, mas achou que era o retrato mais fiel da cena, ainda mais quando percebeu que estava de olhos fechados enquanto ela passava a mão pelos cabelos dele. Ele não sabia porque ela fazia aquilo, não era a hora certa para brincadeiras de provocações, no leito de quase morte daquele diabo. Achou estranho que não reconhecia a cor do cabelo da garota, aliás, não sabia qual cor escolher. Mudava do moreno total para o loiro escuro e depois pra um ruivo mais claro. Seus olhos também não tinham uma cor única quando ele os encarava. Iam do verde claro para o azul e depois um castanho esverdeado. Uma hora pareciam pretos como o de algum demônio e Demar achou que havia perdido a cabeça de vez para sua doença e, dali pra frente, só descida.
  • Você tá magro demais, Demar. Não tá com fome nenhuma? - Pergunta a garota preocupada
  • Pouco. A comida também...lixo
  • É, eu sei como é a comida do hospital.
É, ela sabe como é, disse Demar para si mesmo. Sabia porque o avô havia sido internado ali e ia visita-lo com seus diferentes namoradinhos durante a semana, depois da aula, há anos atrás. Sabia porque o avô comia a porcaria da comida hospitalar enquanto ela se agarrava com os garotos embaixo do blusão da escola, sentados ao lado do enfermo. Ela na verdade só sabia que a comida do hospital é um lixo porque o avô vomitava aquela gororoba vira e mexe e sobrava pra ela avisar a enfermeira sobre a necessidade de limpar aquele nojo. Mas ela não tinha experimentado, não. Ela não ficou deitada na cama sozinha por dias, semanas, comendo aquela bosta, furado por agulhas e torturado por exames, notícias ruins, mortes, visitas de antigos amores não correspondidos ou a falha quase total do seu fígado.
  • E quem tem te visitado aqui?
Demar ficou em silêncio e imóvel por um instante, como se não tivesse nem ouvido a garota falar algo.
  • Ninguém – respondeu com um tom de voz saudável
  • Ninguém? Claro que sim, o pessoal sabe que você tá aqui. Alguém te visitou.
  • Ah...não lembro de ninguém ultimamente.
  • Devia tá dormindo aí.
  • Durmo pouco.
Ficaram em silêncio um tempo, ouvindo os sons do quarto, como uma família de grilos hospitalares procriando por todo o cômodo. A janela estava um pouco aberta, mas o Sol ainda não conseguia entrar por completo. Ela foi até lá e abriu tudo, deixando a luz dominar o quarto. Demar sentiu a luz queimar sua retina, mas achou bom sentir o Sol mais uma vez, parecia até que estava fora daquela cama, fumando um cigarro na esquina de sua casa enquanto conversava com alguém e bebia uma cervejinha. Sentiu-se triste após esse pensamento feliz e a garota já havia voltado para seu lugar, numa cadeira que posicionou ao lado de Demar. Continuaram em silêncio mais alguns segundos e ela falou, dando um pequeno pulo como se tivesse acabado de se lembrar:
  • Ah...o Dani e o Heitor mandaram um beijo pra você. Falaram que vão colar aqui um dia desses, mas você sabe, né...tão ocupados demais fazendo nada.
  • Hahaha doidão aqueles dois haha – aquela risada saiu como um urso morrendo na floresta e pareceu tirar parte do que restava de energia do rapaz – Queria ver aqueles retardados mais uma última vez.
  • Para de falar besteira, Demar. Você...- e parou de falar, porque no fundo sabia que Demar tinha razão.
Ele olhou para a garota sem palavras e ela ficava linda com aquele olhar de duvida e seus cabelos e olhos multicoloridos analisando toda a decadência do ser Demar. Pensou em comentar com ela sobre isso, mas achou melhor não. Permaneceram em silêncio por mais tempo dessa vez, Demar com o olhar distante e vazio, ela observando aquele corpinho que agora não é nem metade do que foi antes. Antes gordo e ereto, postura quase militar, agora decadente e magricela, indo cada vez mais fundo em sua existência, chegando nas últimas goladas de água fria de sua vida. E só queria que nesses últimos goles tivesse 20% ou 30% de teor alcoólico, com grãos escoceses especialmente selecionados. Seus olhos agora pareciam de um verde vivo, brilhavam para ele, os cabelos foram do loiro para o preto. Estou perdendo a cabeça, pensou Demar, mas era melhor do que morrer são.
Alguns minutos mais tarde, Demar teve uma crise de tosses e começou a vomitar sangue quase que aos pés de sua visitante. Sentiu o líquido quente vindo de sua garganta e não pode evitar aquilo, vomitou tudo e quase desmaiou com a falta de ar. O sangue estava de um vermelho vivo, não havia nem um resto de comida não digerida no meio daquilo, apenas bílis e sangue. Demar virou-se envergonhado para a garota, que estava horrorizada com o sofrimento do amigo, tentou pedir desculpas mas quando abriu a boca apenas mais sangue saiu dela, como se tivesse levado um soco. Sentiu que havia se cagado todo na camisola do hospital, não sabia aonde enfiar sua cara. Não agora, por favor, não agora na frente dela, implorou para seu corpo. Não sabia se havia se cagado, não conseguia falar nada, sentiu sangue descendo lentamente pelo seu queixo e caindo na parte de cima da roupa que usava. A garota agora recuperava-se do susto e limpava a boca do amigo com a fronha de um travesseiro sem dono que estava por lá.
  • Dê...você tá bem? - perguntou assustada
Ele recuperava o fôlego aos poucos, ainda sem saber se tinha se sujado por trás também. Achou que não porque a garota ainda estava com ele. Viu que os olhos dela quase transbordavam lágrimas que ela teimava em não deixa-las descer pelo seu rosto liso e atraente. Ele se sentiu ridículo e teve dó de si mesmo por aquilo.
  • Tô. Legal que isso acontece, sabe...só quando você chega - ele ainda tinha dificuldade em falar
Ela passava a mão lentamente pelo cabelo dele.
  • Você viu que bonito fica o olho? Todo amarelo aonde era branco...diferente, né? - perguntou Demar para a garota, refirindo-se ao branco de seus olhos que estavam totalmente amarelados devido à doença.
  • Eu vi, Dê...eu vi – respondeu como uma mãe responde ao filho quando não está interessada em suas brincadeiras. - Você tá bem mesmo, Demar? Você vomitou muito sangue! Aonde tá a enfermeira? Não existe por aqui, não?
  • Tão trepando, caralho – a voz de Demar parecia de nervosismo e impaciência, mas depois ele se tocou – Desculpa. Tão fumando...comendo, demoram muito. Quarto escondido do... caralho.
  • Você quer alguma coisa? Eu vou pegar uma coisa no banheiro pra colocar nesse chão, pera aí – correu até o banheiro e Demar aproveitou para dar uma olhada no rabo dela com seus olhos amarelados de azar. Uma bela visão final, pensou. Ela voltou com a mão embolada em metros de papel higiênico e jogou em cima do vômito sanguinário, ao lado da cama de Demar – Pronto, quando eu sair eu chamo alguém pra vir limpar e depo...
  • Por que você veio aqui? - Interrompeu Demar e a garota não entendeu muito bem a pergunta
  • Como assim...pra te ver, Dê.
Ele soltou um riso sem vida e olhou para o teto, permaneceu em silêncio alguns segundos e a garota também, esperando que ele continuasse.
  • Por que você veio aqui? Pra me ver fodido? Ter certeza dos boatos? - ele levantava sua voz e ela enfraquecia aos poucos, depois teve um acesso de tosses e pensou que iria se vomitar todo novamente.
  • Que boatos, Demar. Eu vim te ver quando soube que você tava por aqui. Você sumiu e ninguém sabia aonde você tava, acharam que você tinha morrido atropelado quando tava bêbado. Quando me contaram eu vim assim que deu, pô. O que deu em você?
  • Você...você nunca me quis, filha...nem banhado em prata com grãos de ouro...por cima....me via e....
  • O que você tá falando, Dê? Isso de novo? Já tivemos discussões o suficiente em cima disso, não vim aqui pra isso, ok?
Ele ficou quieto olhando para o teto e depois fechou os olhos. Uma lágrima escorreu pelo lado que a garota não podia ver tão bem e ele ficou feliz por isso. Sugou as lágrimas para dentro dos olhos e pediu desculpas para ela. Estava perdendo a razão.
  • Eu não queria...você sabe – tentou se explicar
  • Eu sei, Demar, eu sei. Relaxa.
  • Que essa não seja, sabe, última lembrança minha que você guarde, sabe. Não fique...puta.
  • Para de falar assim, meu, sério. Não tô puta com você. Você que devia estar com você mesmo, ter se estragado todo assim. Você é novo pra caramba, Demar. Vai fazer o que agora?
  • Vô morrê.
Ela não respondeu e ele não teria ouvido se ela o tivesse feito. Olharam o silêncio, o sol entrando no quarto, o cheiro azedo subindo do chão, vindo direto do vômito asqueroso que ele soltou por lá.
  • Melhor você ir, sabe.
  • Eu fico mais, Dê. Vai ficar sozinho aí...zoado.
  • Não, não é um ambiente que eu gostava de frequentar antes...não quero que fique vindo aqui por mim.
Ela hesitou um instante, mas cedeu.
  • Você é quem sabe, Dê. Eu só queria te ver hoje, sentia sua falta, sinto mesmo...você que acha que não faz falta.
Demar pensou em comentar o fato de não ter recebido uma visita sequer nas últimas cinco ou seis semanas, mas já tinha injetado sua dose diária de sarcasmo hoje. Apenas sorriu para sua amiga e balançou a cabeça suavemente. Sentiu o calor das mãos dela nas suas, a pele macia e branca, o suor, a pontinha dos dedos rosada. Queria enfiar aqueles dedos na boca. Sentiu algo perto de sua virilha e torceu para que ela não olhasse mais pra baixo, já estava constrangido o suficiente deitado todo vomitado naquela cama dura. Fechou os olhos e dessa vez foi duro não chorar e a garota percebeu isso com a força com que ele fechava a mão dele na dela, como se não quisesse que ela soltasse nunca mais. Ela se sentiu triste por isso e teria ficado mais tempo com ele, se não tivesse ouvido:
  • Melhor ir andando, sabe. Gostei de te ver mais uma vez, coisa mais bonita que vi...não que seja difícil ser bonito nesse lugar, só tem velho pelado se cagando todo na porta do banheiro e gente chorando em cima de cadáver.
Ela riu. Até ele riu um pouco daquilo e não forçou.
  • Ok, eu tô indo, Dê. Gostei muito de te ver, tá? Muito. Melhore...logo, sabe? Por favor
  • Sim.
A garota abraçou-o com força, ela nunca tinha feito isso antes. Ele passou as mãos fracas e agora quase ossudas pelos cabelos dela, sentiu o cheiro de shampoo de limão, adorava aquele cheiro. Apertou ela mais forte ainda e imaginou como seria um grande desfecho beija-la, uma última brincadeira antes do fim. Ela se afastou de seu corpo mas ficaram a apenas alguns centímetros do rosto um do outro, ele olhando para os olhos multicoloridos e ela para os olhos amarelados. Ele se aproximou dela, de sua boca, ela elevou-se um pouco e deu um beijo molhado e longo em sua testa. Faz sentido, pensou Demar. A garota lembrou de um presente que havia comprado para ele:
  • Olha, olha...comprei pra você, sei que você ama isso.
Tirou de sua bolsa um pacote amarelo de M&M's. Ele riu um pouco e agradeceu.
  • Faz tempo que não como um desses. Meu preferido, valeu.
Ela se virou para ir embora e ele reparou novamente nos cabelos mudando de cor, agora do ruivo para um moreno amarronzado. Não se aguentou e perguntou:
  • Ei, o que fez no cabelo?
  • Ah eu cortei um pouco.
  • Haha, eu gostei bastante.
Ela sorriu o sorriso mais lindo que ele havia visto até aquele momento em toda a sua vida.
  • Sabe, ninguém reparou nisso, só você, Dê.
Ele não respondeu, apenas acenou um adeus para ela acompanhado de um sorriso. Ela mandou um beijo para Demar do batente da porta e saiu de sua vista, deixando seu cheiro, seu suor e a janela aberta com o Sol batendo no rosto do moribundo.



N.A: Algumas semanas depois, quando foram retirar o corpo sem vida de Demar, encontraram o M&M's amarelo jogado no lixo do quarto. Ainda fechado. Ele não recebeu outras visitas depois dessa, seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas em uma praça perto do centro por um enfermeiro que lhe concedia cigarros escondidos de madrugada.

domingo, 26 de maio de 2013

A senhorita Bremmenkamp e o clube clandestino dos judeus.


  A senhorita Bremmenkamp caminha graciosa e com classe pelas subidas do centro da cidade, sente o suor descendo por suas coxas brancas e o cansaço daquela cidade entediante e quente. A senhorita Bremmenkamp traz em sua bolsa um revólver .38, mas talvez não use-o dessa vez, talvez ela pegue a velha Luger que pertenceu a sua mãe, quando o pai da mesma faleceu ao término da segunda grande guerra e eles se mandaram pra cá. Os Bremmenkamp foram notórios entusiastas do Partido Nazista quando este encontrou seu auge e por isso eles tiveram que sair quando este encontrou o seu fim, no momento em que o terceiro Reich botou os miolos pra fora de sua cuca. Digo, na verdade eles não eram os Bremmenkamp ao chegarem aqui, o sobrenome era outro, reza a lenda que a família carrega em seu passado um nome pesado e cheio de sangue, por isso o trocaram quando mudaram de continente. O nome original desses alemães...não sei, ninguém sabe.
Voltando a senhora Bremmenkamp, que é a única alemã que realmente importa nessa história, ela agora desce uma rua arborizada que vai dar em frente a uma loja de canetas tinteiro, um negócio típico do velho centro da cidade. Ela mantém toda sua classe e andar alemão, como se desprezasse completamente qualquer outra pessoa de qualquer outro país. Seus olhos claros e cabelos negros parecem impor alguma coisa por onde passa, parecem ordenar aos outros que olhem para ela, para seu andar e indiferença quase nórdica. Dona Bremmenkamp, uma senhora de meia idade com tudo em cima, desce a rua inteira e entra na portinha escondida da loja de canetas tinteiro. Lá o dono é um velho judeu chamado Haym Cohen, que conta com a ajuda de seu sobrinho Yitshac, um jovem judeu que está sempre rindo e sonha em ser rabino, até onde a srta. Bremmenkamp procurou se interessar.
  • Shalom, fraulein Bremmenkamp! Mah nishmá? Como vai a senhora hoje? Está uma bela visão como sempre - pergunta o judeu mais velho, com voz calorosa. A senhora espera a porta se fechar atrás dela e caminha até a bancada dos judeus.
  • Bom dia, Herr Cohen. Estou igual a todos os dias nessa cidade quase africana em que vivemos. E você, garoto, como está a escola de rabinos?
  • Boa senhora, espero estar pronto o quanto antes – sorri o alegre Yitshac
  • O Isaac aqui é um garoto excepcional, passa as tardes estudando hebraico e o Torá, é como se não tivesse olhos para mais nada – diz o tio
  • E as garotas, Yi...Isaa..como pronuncia mesmo? Enfim, não tem uma namoradinha judia pra você?
  • Bom...ainda não me preocupo com isso, você sabe. Eles dizem que tenho que procurar uma boa garota judia pra mim, e que vou encontra-la, mas antes preciso dos estudos para ser um rabino...você sabe, né – responde o garoto envergonhado porém sorridente. A senhora Bremmenkamp acena com a cabeça, mesmo não entendendo muito o que ele quis dizer.
Haym ri forçado para os dois e um silêncio cai na loja por alguns instantes. Bremmenkamp olha as canetas no balcão, algumas são ridiculamente caras e não valem nem um terço daquilo que custam. Esses judeus não aprendem nunca, pensa Bremmenkamp sentindo seu histórico familiar subir a cabeça. Afasta as histórias que ouviu da avó e dos tios sobre esses tempos e se concentra nos dois judeus parados sorridentes à sua frente. São bons judeus.
  • Bom, eu vim para o clube – diz finalmente a senhora. Haym perde seu sorriso aos poucos, como se estivesse deglutindo a informação que lhe foi dada ainda e depois volta com seu sorriso hebraico.
  • Ah, mas é claro, minha fraulein. YITSCHA – grita o velho Haym em hebraico, seguido de uma porção de ordens na mesma língua para o garoto, que a mulher não entendeu nada e achou engraçado aquela língua estranha deles. Uma sujeira completa perto do puro alemão que aprendeu desde criança. O garoto acena com a cabeça para tudo o que o velho fala e responde apenas:
  • Ken, ken...regá.
  • Nós já estaremos prontos para a senhora descer, fraulein Bremmenkamp. A propósito, quantos a senhora vai querer?
A senhora sorri de forma macabra e seus olhos claros exaltam uma frieza alemã que esfria até os vasos sanguíneos do velho Haym Cohen, que sente por alguns segundos no ar o mesmo ódio que matou parte de sua família há algumas décadas atrás. Mas sabe que dona Bremmenkamp é apenas uma velha e constante cliente no clube que o senhor Cohen vem organizando há alguns tempos. Apenas mais alguém que desce até a loja de canetas tinteiro do velho Haym Cohen atrás de um pouco de paz de espírito. Eles ouvem o jovem Yitscha descer escadas no escuro e algumas coisas caindo no chão enquanto os dois lá em cima permanecem em silêncio, apenas esperando o sinal verde do futuro rabino. A senhora mantém seu olhar rígido, sem mover um músculo sequer do seu corpo, apenas com um suave riso no canto dos lábios avermelhados. Então ouvem um grito em hebraico do jovem Yitscha, Bremmenkamp não entende, é claro. Cohen grita "rega" para o garoto e e ele olha sorrindo para madame novamente
  • Estamos prontos, fraulein.
O judeu abriu uma porta quase imperceptível atrás dele e deu espaço para que a senhora fosse na frente, fazendo um sinal cavalheirístico com os braço. Entraram numa espécie de corredor completamente escuro, iluminado somente por uma lâmpada lá no fundo. Os olhos claros de Bremmenkamp reluziam aquela pequena luz amarela no fundo do corredor, o velho judeu ia atrás a passos lentos. A senhora começou a sentir o cheiro de mofo vindo das paredes do corredor, ouviu pequenas goteiras em algum lugar e imaginou-se em um túnel vietnamita ou alguma caverna subterrânea, sempre tinha essa sensação macabra quando descia nessa corredor. Descida essa que não sabia explicar se era mesmo uma descida ou apenas uma reta, com certeza haviam alguns degraus mas não pareciam fazer parte de uma descida ingrime, era um lugar muito, muito estranho. Até mesmo para um alemão.
Continuaram a caminhada lenta, silenciosamente e a fraulein sentiu que estavam chegando ao seu local, ao clube daqueles judeus. Apertou sua bolsa e sentiu o toque pesado e denso do revólver seguido do toque suave do coldre de couro de cabra, respirou fundo e sentiu os pêlos atrás de sua nuca e de seu braço se arrepiarem, sentiu um prazer sexual vindo de suas profundezas e mordeu o canto dos lábios discretamente. Hyam Cohen passou a sua frente logo após e abriu outra porta para ela, essa era uma porta pesada e parecia de aço ou coisa assim, como aquelas de bunkers antibombas. Ela agradeceu com o olhar e atravessou o limiar da porta. Uma luz intensa e branca cegou-a por uns breves segundos e então ela teve a visão daquela imensa sala que parecia prateada, com pequenas divisórias, espécies de cabines numeradas, quinze delas. Todas vazias naquele momento. O jovem Yitscha estava esperando pelos dois sentado em uma cadeira, manuseando uma espingarda de caça que Bremmenkamp achou maravilhosa, mas não comentou nada.
  • Então, senhorita Bremmenkamp, o jovem Isaac aqui já tem tudo pronto para a senhora – ele vira para o garoto e falam alguma coisa em hebraico novamente – Quantos alvos a senhorita deseja?
Bremmenkamp permanece em silêncio ainda, pensando, mesmo já tendo pensado o caminho todo. Aperta novamente sua bolsa, seu revólver .38 e diz:
  • Eu quero cinco, senhor Cohen. Cinco, variados, por favor.
  • Sem problemas, minha fraulein. YITSCHA! - grita mesmo com o jovem ao seu lado e manda-o buscar o que a madame havia requisitado.
  • E mais uma coisa, senhor Cohen. A pistola de meu avô que eu deixei aqui para reparos, a Luger que pertenceu a ele na...o senhor sabe se já está pronta?
Cohen demora a responder, como se não estivesse se lembrando. Mas um lampejo acerta sua mente e ele responde, surpreso por ter lembrado
  • Ahh, sim sim, dona Bremmenkamp. Está pronta, está perfeita, ótimo estado, parece que acabou de sair da fábrica...você verá, dona Bremmenkamp...já vou pega-la para a senhora...hahaha pois a senhora verá como ficou! Verá! - e saiu arrastando os pés com velocidade, como se estivesse muito empolgado para mostrar.
Deixaram-na sozinha na grande sala vazia, com as cabines numeradas e a espingarda de caça encostada. Bremmenkamp pegou a arma e passou as mãos pelo corpo de madeira, belíssima peça, talvez inglesa, sim, inglesa. Passou tanto tempo hipnotizada com a espingarda que não percebeu quando o jovem Yitscha, ou Isaac, chegou com os cinco alvos móveis que ela havia pedido. Posicionou-os numa distância considerável e assobiou para a senhora Bremmenkamp, que encostou a espingarda calmamente no canto da cabine 10 e olhou para o sorridente Yitscha, que estava parado ao lado de cinco pessoas encapuzadas e com as mãos amarradas para trás. Bremmenkamp fez um sinal para que o garoto tirasse o capuz daquelas pessoas e o mandou sair de perto. Olhou para cada rosto cuidadosamente quando o garoto tirava seu respectivo capuz. Um negro, um boliviano, uma garota oriental, um rapaz negro muito alto e outro meio branco que ela não conseguiu distinguir bem a nacionalidade, mesmo essa sendo uma de suas especialidades, por isso chutou ser outro latino. Encostou sua bolsa vinho em cima de uma das cabines, pegou um dos protetores de ouvido pendurados e tirou seu revólver da bolsa. Checou para ver se estava com todas as balas e deu um tiro a esmo, só para ver a reação dos cinco. Todos pularam com o eco ensurdecedor da sala e pareciam estar realmente apavorados, Bremmenkamp riu disso mas manteve a pose alemã séria. A garota oriental e o negro mais baixo gritavam desesperados por socorro, o boliviano parecia rezar em sua língua estranha e os outros dois estavam estranhamente quietos, com a cabeça baixa, talvez tentando acordar daquilo tudo. Senhorita Bremmenkamp agora aponta seu revólver de cano curto para o peito do negro alto que está em silêncio. Dispara. Ele cai no chão com um grito rápido e sangra e se debate inteiro por alguns segundos, enquanto todos os outros gritam como num coral, menos o sem nacionalidade. Seus movimentos vão cessando aos poucos, mas a senhora Bremmenkamp não se importa em checar se está vivo, atira agora na perna do boliviano, que atinge direto em seu fêmur e o baralho do osso rompendo ecoa tão alto quando o tiro. O boliviano cai desesperado, rezando aos gritos e pedindo perdão a Deus. O jovem Yitscha assiste a tudo como quem assiste a um programa dominical de ressaca, até com certo tédio.
  • Qual deve ser o próximo, Isaac? - diz a senhora com um tom maternal e calmo em meio aos gritos de todos, sobretudo da garota oriental, que tem um grito fino e insuportável.
  • Você é quem sabe, senhorita Bremmenkamp, você é quem está pagando pelos alvos.
A madame olha para os dois já caídos, que parecem ainda estarem vivos, decide deixa-los para o final e acalmar um pouco aquele lugar. Barulho contínuo a deixava muito estressada. Então mirou na boca da garota oriental que gritava como uma gralha e, quando apertou o gatilho, o grito havia parado antes mesmo do eco cessar.
  • TOV! - exclama em hebraico o jovem e sorridente Yitscha, aplaudindo a senhora.
Nesse momento o velho Haym Cohen volta com seus passinhos arrastados até aonde estavam os outros dois. Vem com a Luger na mão e Bremmenkamp a vê reluzindo de longe. Seus dedos até transpiram quando ela toca no metal gelado da Luger de seu avô. Os gritos e os súplicos até diminuíram de volume quando ela tocou em tamanha peça histórica. Ficou sem palavras para o velho Cohen, ele sim sabia fazer mágica com aquelas mãos judias.
  • O que achou, Bremmenkamp? Eu vi que nem esperou a pistola chegar para começar o treino.
  • Não consegui esperar...Haym Cohen...esse sim foi um trabalho impecável. E eu não sou uma pessoa que sai por aí distribuindo elogios, hein...aproveite os poucos que lhe dirijo. Olha isso – passou a mão pelo cano – não tem nem um pontinho de ferrugem, parece que nem passou por uma guerra mundial.
O velho senhor Cohen corou com os elogios e entregou para a moça dois pentes carregados para a Luger, mais uma porção de cartuchos que ela havia encomendado. A dona praticamente larga sua .38 em cima da cabine e não perde tempo em carregar e destravar sua nova velha Luger. Peso e design perfeitos, classe, história. A pistola perfeita para um alemão, pensa a retrógrada senhorita Bremmenkamp.
Ela olha para os dois que estão de pé. Olha no boliviano com o fêmur fraturado e mira sem pressa em seu estômago, tentar um tiro que não seja tão fatal assim. Gatilho puxado, estômago perfurado. O sangue de três dos cinco imigrantes ilegais se misturam no chão de azulejos do clube de tiro clandestino. O boliviano está agonizante, sangrando como um porco sendo abatido. Bremmenkamp mantém o olhar frio e mira no negro não tão alto. Tem cara de ser angolano, talvez nigeriano, não importa. Ela mira e decide dar-lhe algo rápido. Puxa o gatilho duas vezes numa velocidade tão rápida que os tiros acertam a cabeça dele praticamente juntos, que cai no chão duro e morto. Cohen e Yitscha se entreolham como que admirando a habilidade da senhorita Bremmenkamp.
O último dos moicanos, pensa a senhora. O rapaz sem nacionalidade ainda não grita, nem chora, está de cabeça baixa tentando não olhar para seus companheiros de morte quase todos mortos no chão ao lado, o sangue deles já atingia seu pé e ele tentava ficar longe daquilo. Os judeus e a senhora acharam graça daquilo e algum dos três até sentiu uma certa pena do rapaz. Mas certamente não foi a senhorita Bremmenkamp, que o acertou duas vezes no peito e uma no pescoço, esse último fazendo um esguicho de sangue jorrar por uns dois ou três metros. Um tiro certeiro na jugular que foi aplaudido pelos dois judeus e teria sido aplaudido pelos outros, se não estivessem mortos ou quase lá.
  • Muito bem! Muito bem, fraulein Bremmenkamp! Quanta habilidade! Quanta destreza nessas mãos e nesses seus belos olhos verdes.
Ela não responde, apenas sorri satisfeita com os elogios e pisca com um olho para o velho. Sai de sua cabine e vai em direção aos cinco atingidos a alguns metros dela. O sangue se espalhava cada vez mais, formando agora uma pequena piscina que devia já ter alguns litros de água vermelha. Imaginou que todos deviam estar mortos, menos o boliviano. E todos estavam mortos, menos o boliviano, que estava a dois passos disso. Ele ainda rezava em sua língua, embora agora parecesse mais balbucios sem sentido do que uma reza. Ela olhou para os outros e todos estavam com os olhos abertos, a garota oriental tinha uma aparência lastimável com a boca toda estourada, achou que ela até fosse sobreviver com o tiro, mas não, estava tão morta quanto os outros três. Virou-se novamente para o boliviano, que a olhava com tanto horror que até a dona Bremmekamp atrás de sua Luger sentiu um frio na espinha. Aliviou o frio atirando na testa do boliviano, espalhando parte de seus miolos naquela piscininha de sangue imigrante e um pouco em seu rosto branco.
  • Ui...le chaim - e percebeu que o jovem Yitscha estava ao seu lado – essa foi hardcore, como diriam os americanos.
  • Sabe, Isaac, ainda tenho uma bala na câmera e outra no pente. E ainda temos dois imigrantes nessa sala, não temos?
  • Sim? - ele não entende
E quando menos espera, Yitscha está com a Luger quase encostada em sua têmpora, com a senhorita Bremmenkamp sorrindo psicoticamente para ele. Yitscha fica sem o que falar e começa a tremer desesperado, se ao menos tivesse vindo com sua espingarda de caça até aonde estavam os imigrantes...mas não estava. Cohen levanta da cadeira que tinha acabado de sentar confortavelmente numa velocidade que nem ele sabia que alcançava mais.
  • Fraulein Bremmenkamp? O que a senhora está fazendo? Por favor....por favor....dona Bremmenkamp...meu Yitscha...meu Isaac, ele é bom menino. Menino estudioso, por favor.
A essa altura, o jovem Isaac já estava no limite de sujar suas cuecas. Já esperava o baque seco em seu ouvido, atravessando seu cérebro e batendo na parede. Pensou no Torá e nas garotas judias que o deixavam envergonhado, pensou no seu tio e em sua família, fechou os olhos e tentou pensar uma oração. Rezou e rezou e quando abriu os olhos, seu tio estava sentado novamente na cadeira e a Luger reformada não estava mais em sua têmpora, mas sim entrando na bolsa da madame Bremmenkamp, que ria sem parar da reação do garoto e limpava seu rosto respingado de sangue boliviano. Ele não achou muita graça daquilo, mas sabia que os alemães e seus descendentes tinham um senso de humor muito diferente dos judeus, muito diferente dos judeus mesmo. Percebe que suas pernas estão tremendo e vai devagar até a cadeira do tio, que acaba de se despedir da senhorita Bremmenkamp.
  • Até mais, Helga. Erev tov! Volte...sempre que quiser, eu acho.
Helga Bremmenkamp acena com a mão e manda um beijo para o garoto Isaac, que ainda está tremendo e suando. Eles perguntam se ela quer companhia até a porta, mas ela diz que sabe o caminho até a rua. Abre a porta e sobe aquele estranho corredor em direção à loja de canetas tinteiro que depois daria para a rua,imaginando porque o senhor Cohen a chamou pelo primeiro nome quando se despediu.

domingo, 19 de maio de 2013

Cinco noites em branco.


   Rua das Palmeiras, 113, Santa Cecília. Não é o endereço da minha casa, nem da casa dos meus pais ou de ninguém da minha família. Era o endereço de Paulo e Fernando naquela região do centro, no apartamento apertado, sujo e bagunçado que eles dividiam há alguns meses. Alguns meses em que ninguém acreditava que ainda estavam vivos. Drogados e bêbados quase vinte e quatro horas por dia, sem comer ou dormir. Na última semana em que tive contato com eles, haviam acabado de arranjar meio quilo de cocaína de boa qualidade e estavam de férias de seus empregos entediantes e com os bolsos cheios de grana que não gastavam com outra coisa senão com droga, goró e pacotes e mais pacotes de miojo que serviam para deixa-los de pé.
Fernando trabalhava carregando caminhões com caixas pesadas de ração para animais. Paulo era empregado em um banco importante e conseguia tirar uma boa grana daquele serviço, o que dava para pagar o aluguel e as despesas ilícitas daqueles dois. Os dois não tinham feito faculdade alguma e haviam parado de estudar há um bom tempo, no tempo livre ficavam em casa cheirando e vendo TV ou matando tempo em algum bar.
1

Fernando jogou o saco branco em cima da mesinha de centro na sala apertada e o seu peso quase estraçalhou o fino vidro daquela mesa vagabunda. Quinhentos gramas de cocaína para os dois. Quanto tempo duraria aquele pacote? Menos que eles talvez? Mais do que poderiam aguentar? Duvidavam daquilo. Quinhentas formas puras de sair do que chamamos de real, quinhentos motivos para se afundarem naquele saco branco na mesinha de centro. Paulo sorriu e deu uma risada empolgado:
  • AHHHH! - Gritou excitado e riu mais
  • HAHAHA Quinhentos gramas, cara. Eu falei que ia conseguir, não falei? - disse Fernando
  • Abre aí e põe pra gente
  • Calma, calma, tudo a seu tempo.
Fernando foi até a cozinha, que não estava a nem quinze passos de distância e pegou um prato escuro dentro de um dos armários. Voltou para sala e pegou seu canivete que ficava ao lado do telefone cortado há alguns dias porque esqueceram de pagar. Abriu um buraco no saco fechado a vácuo e o pó branco começou a sair por lá, seus olhos brilharam e jogou uma quantidade boa da droga dentro do prato escuro. Ajeitou dois rabiscos grandes e Paulo já enrolava uma nota de vinte dólares que sempre usava para cheirar. Entregou a nota para Fernando, que abaixou e mandou aquele tiro numa só. Respirou fundo e entregou o canudo para o amigo, que fez o mesmo.
  • CARALHO! - exclamou Paulo, coçando o nariz
  • Não acredito que a gente tem meio quilo disso aqui à nossa vontade, cara!
  • Nossa, foda...
  • Já tô sentindo o suadouro vindo...calor do caralho.
  • Muito, é pura mesmo essa aí cara. Purinha.
  • Pura vida, hermano – disse Fernando
E riram e cheiraram muito até aquele dia acabar. E depois até a noite acabar e aquele prato e o saco ainda estavam cheios de cocaína pura e os dois acharam que tudo era possível enquanto aquele saco existisse dentro daquela casa, cheio é claro.

2

Estavam virados e na televisão dizia que passavam das dez da manha. Estavam os dois de cueca e se sentindo inteiros como se tivessem dormido dias e dias seguidos. Ainda cheiravam ininterruptamente e tentavam achar coisas pra se fazer naquela casa minúscula. Não queriam sair, não havia nada de interessante na rua, pelo menos não mais interessante que aquele meio quilo na mesinha de centro da sala, de frente pra televisão. Combinaram depois que chegou perto do almoço que deveriam parar de cheirar por um momento e tentar comer alguma coisa, ou não conseguiriam ficar de pé ou vomitariam bílis pelo tapete velho e seria uma merda pra limpar tudo. Foram e cozinharam quatro miojos dentro de uma panela, cada um de um sabor pra ver no que dava. Socaram e socaram e mesmo assim não conseguiam sentir apetite por aquela gororoba, enfiavam na boca e bebiam um gole de refrigerante pra engolir rápido. Depois de algumas garfadas de cada um, largaram a panela em cima do fogão e deixaram pra mais tarde, quando o corpo começasse a suplicar por comida mais do que por droga. Cheiraram mais e esperaram a tarde passar rapidamente:
  • Vou comprar cigarro, cara – disse Paulo
  • Ok, compra umas cervejas e mais uns maços também – e Fernando esticou uma nota de cinquenta para o amigo
  • Sim, não cheira tudo sozinho, hein...
  • Vou tentar.
Paulo foi em sua missão, com um saquinho fechado por um arame cheio do pó e Fernando ficou sozinho com aquele quase meio quilo em cima da mesinha. Já haviam usado bastante pra nem um dia de uso, tiveram que encher o prato duas ou três vezes desde que haviam começado a nóia. Fernando pensou que aquilo era sujo, sujo e maravilhoso. Sentia que sua vida era tão mais fácil quando não tinha aquilo por perto, mas tão mais aceitável quando tinha para usar o quanto quisesse. O mundo é estranho, pensou, um grande equilíbrio em que nada é 100% alguma coisa. O bom tem ruim e o ruim tem bom e os dois parecem lutar pelo domínio da mente humana constantemente. A cocaína tinha seu lado bom, com certeza, o prazer era a procura do ser humano e aquilo era o prazer pleno e instantâneo. Poucas sensações haviam superado a da cocaína para Fernando, apesar de não ser sua droga preferida ele gostava de abusar algumas vezes. Não ligava para consequências, nenhum dos dois ligava. Sabiam que elas existiam e que eram graves, mas quando entravam juntos de cabeça em uma onda autodestrutiva, demorava um tempo até que os dois se acertassem novamente. Juntos eram uma bomba relógio, morando juntos nem eles mesmo sabiam como ainda estavam vivos e sempre faziam e ouviam piadas a respeito. Armou mais um mas pensou em esperar seu amigo voltar antes de fazer novamente, queria ver se aguentaria a ansiedade de ver toda aquela droga na ponta do seu nariz e decidir a não usa-la porque simplesmente não queria. Mas só de ter pensado nisso já começou a sentir vontade, mas esperou bastante tempo olhando para o prato escuro que estava coberto de pó branco e Paulo não voltava de jeito nenhum. Onde ele foi comprar cigarro? Tinha uma padaria lá perto e um mercadinho não muito longe aonde ele certamente encontraria os cigarros e as cervejas, mas onde foi pegar os dois? Merda, merda...ele não aparecia. Pegou o canudo e mandou aquele tiro que estava namorando desde que o amigo saiu. Olhou na televisão e não tinham passado nem dez minutos.
Paulo voltou e trazia três sacos em suas mãos:
  • O que é isso aí?
  • Uma tequila e duas vodkas vagabundas. Não tinha cerveja.
  • Sem cerveja?
  • Sim, depois eu volto lá qualquer coisa, foda-se. Bota um pra mim aí, vai
Fernando esticou e passou a nota para o amigo, que lhe entregou um cigarro. Conversaram sobre parar de usar e sobre vícios. Depois fizeram outro acordo, de que não iam mais falar sobre parar de usar e sobre vícios enquanto restasse um grama de droga dentro daquele saco. Apertaram as mãos e abriram uma garra de vodka vagabunda, encheram dois copos de dose e viraram. Encheram mais dois e viraram. Mais dois e viraram. Assim talvez sentissem o álcool subir no meio de todo aquele torpor ilusivo causado pela cocaína e pelo sono atrasado e barriga vazia. Sim, a barriga vazia com certeza ajudou a vodka a subir mais rápido, mas a droga os mantinha sãos e de pé e continuaram mamando naquela vodka de pouco em pouco até a noite chegar ao fim. A noite, nem Paulo e nem Fernando sentiam cansaço ou algum tipo de fome. Ainda acordados e nem pensavam em dormir ou comer, estavam naquela mesma fissura há mais de um dia e seus narizes já estavam vermelhos de tanto esfregar e assoar. Durante a madrugada jogaram video game e beberam mais. Estavam tortos e falando coisas sem sentido, Paulo ameaçou desmaiar mas Fernando o pôs de pé com um raio de cocaína maior que seu antebraço:
  • Você tá bem, cara? - perguntou o amigo preocupado
  • Sim, mas vou esperar um pouco até o próximo tiro. Comer aquele miojo
  • É, eu também. Que horas são?
  • Não faço ideia, talvez....cacete, tô bebão nessa porra, nem essa farinha toda tá me endireitando mais – Paulo cambaleava pela casa, se apoiando nas paredes
  • Amanha a gente volta a beber. Quer tentar dormir um pouco depois?
  • Não
  • Nem eu.
Tentaram comer e ainda era impossível. Paulo achou uns pães velhos e recheou-os com o macarrão frio, talvez assim fosse mais fácil de engolir e alimentaria mais aquelas barrigas ilusoriamente cheias. Comeram um cada um e usavam o refrigerante para que tudo descesse rápido pela glote fechada. Ainda tinha sobrado miojo naquela panela e deixaram para o café da manha, se é que teriam um.
3

15h. Sem dormir e comendo o mínimo necessário para se manter de pé. Ainda tinham muita droga em cima da mesa e pareciam exaustos, apesar de não terem sono. Paulo fazia caretas involuntárias e às vezes falava coisas sem sentido. Fernando estava no mesmo caminho, mas ao invés das caretas ele tinha tiques nervosos que iam dos pés até os fios do cabelo, tinha taquicardia constantemente e seu nariz estava pior, mesmo não sentindo nada. Começaram a fazer desenhos com o canivete e com um canetão que acharam em uma das gavetas. Desenharam nas paredes e nas mesas, fizeram frases usando a cocaína do prato e depois cheiravam tudo, discutiram política e um futuro bar que poderiam abrir algum dia. Onde todos poderiam beber, fumar, cheirar e fazer o que bem entendessem lá dentro. O lugar perfeito para os amigos. Abriram a tequila e pegaram sal e limão para fazer aquilo direito. Não tinha limão então pegaram umas laranjas azedas que estavam por lá, beberam algumas doses e fumaram cigarros. Três dias naquela casa e nada de novo havia sido produzido. A televisão estava ligada desde então e já tinha rodado por todos os canais diversas vezes. Fernando olhou-se no espelho do banheiro e disse:
  • Puta merda, acho que vou tomar um banho, cara. Tô podre, preciso dar uma assoada nesse nariz e me limpar um pouco. Escovar os dentes, quem sabe.
  • Bichinha, vai lá tomar bainho vai – caçoou o amigo
  • Vai à merda, vai.
Fernando cheirou mais um pouco e subiu para tomar banho. Paulo pegou um papel e fez uns rabiscos loucos que em sua cabeça pareciam naturais, símbolos e alfabetos que havia criado em sua mente misteriosa e atormentada pela loucura da vida que ia levando há um tempo. Tentou parar com as caretas mas era algo involuntário. Olhou para o prato e riu da submissão daqueles dois jovens por algo tão insignificante e pequeno. Eram fracos e miseráveis, seus seres já estavam apodrecendo nas celas de sua cabeça. O mundo não significava mais nada ultimamente, apenas os campeões ganham os louros, a várzea come o que sobra nos pratos de porcelana chinesa. Mas naquele prato na mesinha de centro não ia sobrar nada, os pegadores e os fodões não encostariam naquele prato, não encostariam naqueles dois garotos destrutivos, estavam protegidos lá dentro e o mundo inteiro estava jogado às traças lá fora, ainda havia uma chance. Enquanto aquele prato mantivesse seu conteúdo e o saco branco servisse de refil, haveria uma chance para aqueles dois. Bebeu uma dose de tequila. Aquilo o fazia forte, aquilo o afastava do resto. As pessoas podiam se matar lá fora por um pedaço de pão, elas não eram mais importantes para Paulo do que aquela dose de tequila amarga. Sentia cada vez mais nojo por elas e sair na rua estava se tornando mais raro e deprimente. Cheirou. Fungou. Seu coração palpitava como o de um beija flor e seus olhos piscavam sem parar, sentia o corpo pedindo por descanso e comida, mas não tinha a vontade de nenhum dos dois. Sabia que precisava comer mas não queria naquela hora. O saco ainda estava cheio, o prato estava pela metade e alguns tiros já estavam esticados, prontos para a volta de Fernando do seu banho. Paulo escreveu em seu diário com o seu misterioso alfabeto de símbolos enquanto esperava o amigo sair do banheiro e foi até a cozinha beber água para repôr o que perdeu em todo aquele suadouro. Fernando desceu do banho com o corpo ainda úmido e cheiraram.
O resto da tarde só serviu para fomentar mais a insanidade crescente em suas cabeças. Começaram a ver séries de psicopatas e programas de investigação policial. Serial killers e assuntos do gênero sempre foram do interessante comum de ambos. Nas conversas que tinham durante as madrugadas jogando jogos de tabuleiro ou tentando escrever algo sempre arranjavam um jeito de colocar o assunto no meio. Fernando se interessava em como alguém se tornava um assassino, um manipulador de pessoas, um líder mundial; Paulo em seus pensamentos sombrios e secretos escondia uma estranha admiração e identificação naquelas pessoas sem sentimento, que podiam se passar por qualquer outra ou simular qualquer situação para poder chegar em quem quer. Os programas passavam um atrás do outro e os dois agitados ficavam ou sentados ou de pé ou andando ou indo de um cômodo para o outro, mas ouvindo tudo o que falavam sobre os loucos e os esquizofrênicos, toda aquela informação sendo bombardeada em suas cabeças já fodidas e exaustas pela droga. Senis e fisssurados, sem ter como pensar devido ao bloqueio que estavam colocando em suas frentes. Um bloqueio de cocaína da boa.
Naquela noite eles empurraram mais um pouco de comida pra dentro da barriga e tentaram parar de cheirar um pouco para poder dormir. Paulo conseguiu e dormiu por duas horas pausadas e mal dormidas, Fernando continuou mandando até o dia nascer novamente.

4

Refrigerante foi o café da manha, muito refrigerante para adocer aquele amargo seco. Fernando saiu para comprar mais e voltou com alguns cigarros e a cerveja. Paulo não estava em condições de sair de casa ou o mandariam para um manicômio devido aos seus espasmos musculares involuntários e sua aparência lamentável de quem não tomava um banho ou qualquer outro tipo de higiene básica há dias. Havia parado de rabiscar as paredes e agora desenhava em seu braço, coisa que mais tarde Fernando percebeu que era o início de tudo aquilo, mas estava chapado há tempo demais naqueles dias para perceber qualquer coisa de errado com ele ou com o amigo. Símbolos que pareciam de culturas desaparecidas há milênios cobriam o antebraço esquerdo de Paulo e agora partia para trabalhar o direito. Os dois achavam aquilo estiloso e então Fernando decidiu aprender um pouco daquele alfabeto misterioso e desenhou em seu braço alguns de seus poemas. Tiraram fotos de tudo aquilo. O saco perdia volume e o prato estava sempre carregado e com os tiros armados. Mais perto do que para as pessoas normais e sóbrias seria o almoço, Paulo perguntou:
  • Será que a cerveja gelou?
  • Não sei. Deve ter. Mas tava querendo mesmo era aquela Coca.
  • Tem aí à vontade – riu Paulo
  • A outra, a neguinha.
  • Vai lá ver, vai
  • Tsc... e Fernando foi até a cozinha
Voltou com duas cervejas e pareciam já estar geladas. Abriram e cheiraram antes do primeiro gole. Gelada.
  • Cacete, a gente tá cheirando há quantos dias? Fernando babou o líquido em seu peito
  • Acho que uns três e meio ou quatro. CACETE! Quatro dias virado nessa porra!
  • Puta merda, cara....queria ter um baseado agora pra acalmar.
  • Queria uma NEGRA pra eu SODOMIZAR o rabo e depois deixar o corpo numa vala por aí – pulou Paulo do sofá e sua expressão era de total insanidade
  • Seu pau não ia subir nem se ela fizesse o melhor dos boquetes em você, cara. Vai por mim...
  • Pior que eu sei, mas eu dou um jeito. Essa droguinha aí não me domina não.
Os dois riram e terminaram suas cervejas. Na televisão os programas policiais ainda rodavam sem parar, comendo suas mentes.
Foi durante aquela tarde que recebi uma ligação deles me chamando para visita-los e cheirar com eles aquela cocaína branquinha. Tinha algumas coisas para resolver e disse que passaria por lá mais pro final da tarde. Disseram que estariam me esperando e que trouxesse maconha e uma chave inglesa comigo. Não entendi o motivo daquela porra de pedido mas como eles estavam noiados e eu estava em casa e tinha uma dessas por lá, peguei e deixei no carro. A maconha já tinha em mãos. Busquei minha mãe em sua casa e a levei até o hospital para que cuidassem de sua perna operada, ela não quis que eu ficasse e também não insisti muito, de forma que só passei no shopping ao lado para comer e comprar um tênis e depois seguir para a rua das Palmeiras, 113, Santa Cecília, apartamento dos dois. Imaginava se havia mesmo tudo aquilo de droga que eles disseram que havia na casa pelo telefone e não duvidei da loucura nem de um, nem do outro. Já havia visto aqueles corpos enfiados em tanta merda que qualquer coisa era de se esperar deles depois de um tempo. Eram únicos.
Estava chegando perto da rua deles e podia ouvir um som alto vindo de algum lugar. Não pode ser, pensei, não tem como a música estar tão clara assim vindo do apartamento deles, nem saí do carro ainda, o MEU rádio ainda estava ligado. Procurei por algum carro tocando Marilyn Mason na rua e não havia ninguém. Só conhecia Paulo que ouvia Marilyn Manson e ainda mais naquele volume. Os vizinhos iam mandar expulsa-los do apartamento se não abaixassem aquele som maldito e tratei de parar logo o carro e ir avisa-los para abaixar aquela maldição.
Subi e o som estava mais alto. O elevador parou, saí e bati na porta. Bati de novo e me senti idiota com aquele chave inglesa na mão parecendo um encanador casual. Fernando abriu a porta.
  • E aí, bicho! Como vai? Entra aí. - sorriu e abriu toda a porta.
Entrei. O lugar estava caótico, muito pior do que qualquer história ou testemunha poderiam descrever. Papéis, canetas, objetos da casa, tudo jogado no chão ou em algum canto. Latas e garrafas vazias por todos os lados, papéis usados para assoar o nariz até no teto. Algumas paredes tinham desenhos e podia jurar que muitos foram feitos com sangue de algum ser. A aparência dos dois era apenas o reflexo do que o ambiente havia se tornado. Olheiras maiores que suas bochechas, hematomas por todo o corpo e aquele odor de suor azedo e velho empesteando a casa inteira. Fernando estava suando às bicas e Paulo estava dando mais um tiro quando o cumprimentei.
  • Cacete, caras...há quanto tempo vocês estão nessa?
  • Calculamos que agora deve ter completado o quarto dia...mas não temos certeza – respondeu Paulo
  • Puta que pariu! - exclamei. Eles tremiam como se fosse algo normal.
  • Foda, cara. Mas olha aí a nossa filha. Da um shot e diz o que acha! - e Paulo apontou o dedo para o prato.
  • Puta que pariu!
Nunca havia visto tanta cocaína antes na minha vida. Não pra se usar até a hora que cair duro no chão. Meio quilo, bom, agora já devia ser bem menos do que a quantia inicial mas se juntassem o que tinha naquele prato mais o que restava dentro do saco...talvez tivesse 350g de cocaína na casa. Isso se não contasse o que já estava em seus organismos há dias. Encarei aquela quantidade toda por alguns segundos e era mais do que eu imaginava que seria. Paulo esticou umas carreiras e vi os desenhos medonhos em seu braço, vi os de Fernando e tudo o que aquela droga havia feito com a cabeça dos dois. Estavam acabados, física e psicologicamente, só de entrar na casa e ficar cinco minutos já era possível perceber aquilo. Não falei nada, apenas enrolei uma nota e nós três abaixamos e mandamos ao mesmo tempo. Paulo tinha esticado uma gorda pra mim e aquilo foi que nem uma bala pro meu nariz:
  • Caralho, é boa mesmo, cara...
  • É, bicho. Espera uns dois minutinhos pra você ver. Vai subir as paredes, hahaha – riu Fernando
  • Eu não pretendo cheirar muito não, caras.
Paulo e Fernando olharam um para o outro e começaram a rir. Achavam que eu não aguentaria não cheirar aquela cocaína quase pura. E não aguentei mesmo. Ficamos lá conversando e mandando e fui percebendo o quão fodido eles estavam. Paulo tinha espasmos que faziam seu corpo inteiro tremer e Fernando parecia estar desligado do mundo, numa espécie de limbo esquizofrênica. Ainda sem comentar nada, perguntei:
  • E esses desenhos? Na parede, em vocês... o que é?
  • Brisa, cara...- e não falaram mais nada
A noite caía e bebemos tequila com cocaína. O amargo ao quadrado. Começamos a misturar cocaína com as bebidas que havia na casa só pelo fato de que tínhamos muito ao nosso dispor e eles não davam a mínima enquanto tivessem aquele saco até a metade. Refrigerante, cerveja, vodka água, suco...água era o pior, de alguma forma misturar a pureza da água com toda aquela merda tóxica e venenosa não caía bem no organismo e nem na brisa. Paramos e continuamos com o resto. Fiquei bêbado mas o pó falava mais alto e nem me senti alterado pelo goró, apenas o pó fazia efeito. Eu estava ainda no processo de ficar pego e aqueles já estavam calejados nesse estágio há dias antes de mim, mas de qualquer forma eu estava muito louco e as maluquisses que aqueles dois diziam como se fossem as coisas mais normais do mundo até começaram a fazer sentido pra mim. Algumas horas se passaram e aquela situação, apesar de extremamente prazerosa, começava a me dar algum frio na espinha. Não sabia o que era, não era falta da droga, porque aquilo era o único problema que não estava por perto naquela hora. Não era uma bad. Era uma sensação de que não devia estar lá fazendo aquilo com aqueles caras. Isso se intensificou quando passei da sala para a cozinha e vi Paulo encarando o espelho do banheiro sem demonstrar nenhuma expressão. Estava apenas olhando para o seu reflexo no espelho há muito tempo e seu olhar era vazio e parecia que havia algo de malígno crescendo dentro dele. Tentei chama-lo e toquei em seu ombro algumas vezes, nada, estava em transe na mais profunda fissura que o pó poderia lhe dar. Sua mente estava esgotada e pensei no cansaço que todos sentiríamos depois que aquilo passasse. Mas se continuassem daquele jeito que estavam eles ficariam naquele estado até a hora que deixariam de sentir a vida e morressem de exaustão ou overdose. Fui até Fernando e expliquei o que estava acontecendo, ele foi até Paulo e tentou chama-lo algumas vezes. Nada ainda:
  • Caramba, cara...o que aconteceu com ele? - Perguntou preocupado
  • Não sei, bicho. Ele surtou! O que a gente faz?
  • Eu já o vi assim antes. Acho que mais tarde melhora, mas é que ele tá com um olhar muito cabuloso!
  • Eu sei, man! Achei que ele fosse pular em cima de mim quando o cutuquei, mas ficou lá parado que nem estátua vendo o reflexo no espelho.
  • Tá em alguma viagem doida da cabeça dele. Você conhece o Paulo, né?
Um momento depois ele saiu do banheiro como se nada tivesse acontecido e parecia não se lembrar muito bem de ter ficado no banheiro por mais de quinze minutos encarando o próprio reflexo. Sugeri que fumássemos um baseado para nos acalmar um pouco e aquela havia sido a decisão mais bem pensado até aquele momento. O único problema nisso era que nenhum dos três conseguia bolar aquela erva porque tremíamos mais que idosos com Parkinson. Passei para Paulo que passou para Fernando que tentou por um bom tempo bolar aquele baseado. Estragou duas sedas e na terceira ele simplesmente surtou. Levantou do chão e começou a chutar o sofá, jogou as almofadas pro alto e quebrou um vaso velho que estava lá por algum motivo desconhecido, ninguém sabia de quem era. Ele sentou-se novamente e seu coração parecia que ia sair pela boca, suava feito um jogador de futebol aposentado e seu olhar também era maligno igual ao de Paulo. Vou ficar assim daqui a pouco?, pensei, não comentei e Paulo resolveu aquela situação do baseado amassando uma das latas de cerveja e improvisando um cachimbo nela. Fernando se acalmou depois de alguns tragos na lata e parecia estar muito abalado ainda pelo acesso de raiva que havia acabado de ter. Colocamos no canal de música e aproveitamos um pouco aquele efeito relaxante da cannabis, deixando os pensamentos da cocaína bem longe da gente. Apesar daquela pequena cordilheira de farinha na mesinha embaixo dos nossos narizes não ajudar muito nessa tarefa, rimos e foi uma risada espontânea e não mais uma ilusão prazerosa que a coca trazia pra nossa cabeça, com explosões de serotonina e dopamina por todo o nosso cérebro impedindo-nos de dar risada de alguma besteira que um de nós soltava de hora em hora. Os espasmos de Paulo diminuíram com o efeito da erva, mas ainda estavam lá, estávamos mais relaxados mas ainda exaustos, principalmente eles. Bebemos mais umas cervejas e entramos em uma conversa totalmente sem sentido:
  • Me imagino enfiando uma FACA em alguém, sabem? - soltou Fernando
  • Não sei, dependendo da situação eu também faria – falei
  • Se o cara merecesse eu não pensaria duas vezes. Ou então se um dia eu perdesse a cabeça de vez ia sair matando quem eu quisesse por aí, queria que tudo fosse pra merda.
  • Se eu fosse fazer uma coisa dessas seria muito bem pensado. Ia fazer bem feito pra poder fazer outras vezes. Não ia ficar marcando bobeira pra ser preso ou alguém me matar – Paulo parecia ter pensado bastante no assunto
  • Mataria um cara que tentasse te assaltar? Perguntei
  • Se eu corresse risco de me foder, com certeza ia, viixi – Paulo fechou os olhos e simulou uma pessoa sendo degolada. Rimos
Fernando deu um longo gole em sua cerveja e a jogou para outro canto da casa, no meio de tantas outras:
  • Não sei, às vezes quando tô chapadão fico pensando se eu não seria capaz de estuprar alguém.
  • Sério, bicho?
  • É, cara...às vezes passo por aí e a brisa do pó vai indo embora ou estou bêbado e vejo uma mulher andando na rua de noite. Imagino que é muito fácil subjugar uma pessoa daquelas, levar pra algum lugar escuro o suficiente e fazer o que quiser com ela. Nunca teve uma coisa dessas passando pela sua cabeça, Paulo?
  • Já pensei nisso, mas não dessa forma. Não sei, talvez você seja louco mesmo cara.
  • Disse o sujeito que não lembra de ter encarado o próprio reflexo por quinze minutos no espelho com a gente te cutucando pra sair daquela brisa. Coisa feia do demônio.
  • Vixi...essa aí foi intensa, meu. Não lembro MESMO de ter ficado todo esse tempo olhando pro espelho.
  • Foi uma cena bem medonha, cara – falei
  • Vamos rir disso um dia.
  • Já estamos.
Já era pra lá da madrugada quando percebi que devia ir embora. Estava cheirado, bêbado, fumado e começando a ficar exausto. Toda a loucura daquele ambiente já havia me consumido e agora eu era parte da decoração da casa, assim como aqueles dois perdidos, mas tinha que ir embora antes que algo de ruim acontecesse e eu estivesse por perto. Ou algo de ruim acontecesse e fosse comigo. Me despedi dos dois, cheiramos as últimas carreiras juntos e Fernando me entregou um saquinho cheio até a boca e gordo de cocaína, talvez o dobro do que eu havia cheirado hoje com eles. Agradeci o presente e olhei para a chave inglesa que havia trazido e deixado em cima da mesa. Fernando abriu a porta e estava pra sair quando perguntei:
  • O que vocês queriam fazer com essa porra dessa chave inglesa?
  • Hahaha, cara...umas coisas estranhas.
SLUM. Bateu a porta.
Andei até o carro e certifiquei-me de que não tinha ninguém me esperando do lado de fora para levar as chaves ou o presente que havia ganho dos rapazes. Entrei e fiquei lá por uns minutos, apenas parado e vendo o movimento morto daquela rua do centro na madrugada. Estiquei um rabisco, cheirei e dei partida no carro. Estiquei outro e mandei. Ainda tinha um longo caminho até em casa, mas tinha com o que fazer o tempo passar.

5

Não sei muito bem o que fizeram depois que saí daquele apartamento. Devem ter continuado o processo de degradação química que haviam iniciado alguns dias antes, é claro. Continuaram se matando tiro por tiro e terminando aquelas garrafas de bebida, gorfado no vaso e no chão do banheiro, terminado de rabiscar as paredes encardidas e destruir todo o apartamento. Quero dizer...poderiam ter feito isso e continuado aproveitando a subvida que levavam do jeito que achassem mais podre. Mas aquela porra de mente fodida que os dois compartilhavam como se fossem siameses ainda iria colocar a dupla de imbecis no meio de uma cagada.
Um pouco antes do amanhecer os dois já estavam pior do que zumbis tirados do cu de um elefante decrépito, desistiram de banho ou de qualquer coisa, a pulsão dentro deles pulsava somente para a droga, pedindo mais conforme fosse necessário para o corpo. Já nem estavam frenéticos na cheirada, iam aos poucos, mantendo a forma monstruosa que queriam permanecer. O saco ainda estava consideravalmente cheio para uma pessoa normal.
Eu estava sem conseguir dormir desde que cheguei em casa e tinha aquele saquinho inteiro para mim. Nem tentei dormir, na verdade. Fernando e Paulo já haviam esquecido esse conceito e decidiram sair um pouco e aproveitar finalmente o que a madrugada paulistana poderia proporcionar a dois retardados. Colocaram uma mochila nas costas de Paulo e foram até um bar que ficava em uma das inúmeras esquinas com bar do centro, aonde permaneceram sentados, bebendo refrigerante e conversando, jogando sinuca e bebendo refrigerante, tendo uma conversa agradável com os clientes, notórios bêbados e viciados da nossa gloriosíssima cidade. Mataram o tempo e comeram os amendoins, alertas ao primeiro sinal de discussão. Esperaram e esperaram, alguma coisa iria acontecer naquela biboca, sempre acontece, é claro. E aconteceu. Alguém empurrou ou pisou no pé de outro alguém, importa? Esse alguém ficou puto pra caralho e começou a falar algo pro outro alguém, os dois começaram a trocar uns sopapos e o dono os mandou ir pra fora do bar para resolver seus negócios. Os brigões foram e os cheirados foram atrás, como quem aposta em uma briga. O que pisou no pé do outro terminou no chão. O que ganhou voltou ao bar e virou uma dose de velho barreiro com limão. Os dois amigos, Paulo e Fernando, ajudaram o do chão a se levantar calmamente. Então Paulo puxa de sua mochila semi aberta a chave inglesa que eu trouxera mais cedo para os dois, veio correndo na direção do vencedor da luta, sentado ao balcão, e desferiu apenas um golpe em seu crânio, que se partiu em dois pedaços na mesma hora. O velhote caiu no chão sangrando pela cabeça igual a um porco e os dois amigos saíram correndo na hora. Não sem Fernando olhar para o que o amigo havia feito e visto a merda que eles estavam dentro. Paulo saiu nervoso e rindo, não havia processado o ocorrido ainda em seu cérebro provavelmente atrofiado e seriamente lesionado.
Depois disso os dois obviamente correram de volta para o apartamento, que parecia estar incrivelmente distante. Paulo me disse que foi se dando conta daquela insanidade enquanto entrava pelo portão do prédio e sentia que o olhar do porteiro era de espanto e medo. Imaginou estar cheio de sangue no rosto e achava que ainda estava com a chave inglesa nas mãos. Se deu conta que a havia jogado dentro do bueiro somente quando eles entraram em casa e ele olhou dentro de sua mochila. Fernando surtou e começou a socar o amigo, não acreditava que ele havia feito aquela merda, mas o que eles queriam fazer com a chave inglesa? Eles não sabiam dizer depois, apenas pediram que eu trouxesse e não sabiam o que fazer, não lembravam qual era o motivo inicial daquela maldita chave inglesa. Brigaram e se esmurraram, queriam esquecer aquela cagada, mas tinham que pensar em como se limpar dela. Não tinha como, simplesmente não tinha como. Seriam presos os dois, um por assassinato e outro por ser cúmplice do assassinato daquele velho cachaceiro que provavelmente ninguém sentiria falta e que trazia mais problemas pra família vivo do que morto. Acalmaram-se os dois por um tempo, ficaram deitados no chão, com manchas de sangue um do outro em suas roupas, desesperados por dentro, sentindo aquela farinha toda não fazer mais sentido algum.
  • Me dá um tiro agora, pelo amor de deus – disse Fernando
Paulo não falava, levou suas mãos ao rosto e estava com a cabeça baixa, horrorizado com ele mesmo, imaginando seu futuro daqui pra frente, as próximas horas seriam as mais agonizantes, esperando aquele carro chegar, esperando o fim de sua vida inútil e envenenada. Mas sua. Agora estaria à mercê do governo, à mercê das leis e da opinião pública, que não tem um histórico muito simpático com a causa pró drogas que os dois seguem a tempo considerável.
Não tinha o que fazer, a merda estava feita. Mas o que fazer? Agora iriam esperar a polícia chegar e se depararem com toda aquela droga e um assassinato a sangue frio? Começaram a cheirar tudo de novo, os narizes recusavam, fodidos até o talo por todo o excesso corrosivo da química louca que eles consumiram por dias a fio. Paulo foi se livrar do sangue em sua roupa e em sua mão, seu rosto estava limpo pelo menos, mesmo com todo o sangue que espirrou e esguichou por todo o bar na horar da pancada. Ele nem ao menos viu aonde foi a pancada, viu o sangue e viu a cabeça sangrando, viu o olhar de terror de quem estava lá na hora. Depois só viu as coisas correndo por seus olhos e ele se empenhando contra sua sombra na maior corrida que já fez em sua vida até o prédio em que morava com o amigo.
Eles mandaram e pensaram e tentaram trazer as vibrações positivas para dentro da casa, mas não tinha como ter um final feliz, é claro. E eu não estaria contando essa história porque eles conseguiram se safar e agora estão curtindo uma vida mais séria e sóbria em alguma cidade do interior, trabalhando em multinacionais ou grandes fazendas milionárias, apenas dando risada e tentando arranjar alguma garota que quisesse alguma coisa com dois caras com tanta história lunática para compartilhar. Não. Eles se foderam. Se foderam bonito depois disso tudo. Fiquei sabendo da prisão deles algumas horas mais tarde naquele dia, perto do almoço, quando recebi uma ligação me chamando para a delegacia. Lá me foi explicado o ocorrido, não a história toda, apenas a parte do bar e da apreensão da droga na casa dos dois. A história toda eu ouvi dos dois nas visitas que eu fazia àquelas pobres cabeças, poucos do nosso ciclo de amigos veio visita-los. Não por falta de consideração, apenas porque não queriam e sempre enviavam seus recados e cartas através de mim. Os dois pareciam entender e não ligar.

A droga em si não trouxe grandes problemas, já haviam usado tanto daquela quantidade e jogado uma parte pela privada que, pela hora que a polícia chegou, já não tinha um B.O tão relevante assim, apenas algo para deixa-los em maus lençóis por um tempo e salpicar o molho de fezes que a morte quase instântanea do sr. Carlos no bar do Tim havia causado em cima deles. Fernando assumiu ser o dono da quantidade e Paulo assumiu a pancada letal na cabeça do velho. Foram presos e ainda estão pra ser julgados por algum tribunal que os colocará num mundo de merda. Fernando talvez tenha sorte e pegue dois ou três anos, Paulo eu simplesmente não sei, talvez fique lá por um bom tempo. Talvez...o sr. Carlos não era lá uma figura tão adorada no bairro também, se tivesse sido o outro senhor, o que perdeu a luta, provavelmente a própria rua do bar já teria linchado os meus dos amigos lá mesmo. Esse senhor da briga, o tal de Leopoldo, irá testemunhar à favor dos dois, aparentemente. Ainda não sei entendo o motivo também, mas imagino que ele deve ter apreciado os miolos do seu Carlos esparramos no chão daquele bar imundo.
Eles me contaram a história aos poucos, detalhadamente, pode ser que eu tenha adicionado uma outra parte, ou um ou outro diálogo da forma que interpretei. Mas não muda o que foi, não muda o que eles foram e são, eles não são nada diferentes do relatado. Dois malucos, dois malucos que não sabiam de nada e achavam saber, dois caras legais que se foderam porque escolheram se foder, ou simplesmente não pensaram em se foder ou não, apenas foram na onda....foram na onda por cinco dias em branco Eles já haviam perdido a mente, os dois. Suas cabeças nunca foram normais, precisaram apenas de todo o esgotamento do narcótico para atingirem seu Id, seus animais primitivos originais. Para se tornarem dois exemplos que os filhos de seus amigos conheceriam e ouviriam falar muito bem durante a infância. Mais dois caras que se perderam no centro da cidade.