domingo, 30 de setembro de 2012

ébrios criacionistas


Olho para tanta gente estudando
correndo, trabalhando como escravos
grandes construções e negociações
o mundo gira sem parar como um eterno pião
parado lá, enquanto gerações e mais gerações e mais gerações constroem e destroem e torturam e agradam e morrem, choram, escrevem e rasgam.

Olho isso, olho para todos, para mim...

Por que achar um motivo para estarmos aqui é tão decepcionante?
As lâmpadas, prédios, portos, estações, docas, lojas, o dinheiro, a esperança...tudo
apenas fruto da nossa fertilizada imaginação
criamos o barulho e a tristeza, criamos o cinza que nos engole todos os dias
pedaço por pedaço
de nossas almas
criamos o que achamos que pode ser importante
mas toda essa importância é relativa e ilusória.

toda a nossa criação, todo o conforto e amor foram feitos para nos anestesiar de pensamentos como esses
nos afastar da decepção que seria descobrirmos que não somos tão foda como pensamos que fossemos
vemos a nossa própria e natural realidade com uma visão ébria
e quando não aguentamos nem isso
sintetizamos drogas para escapar dessa realidade pirada em que nascemos.

Não entendo, ninguém entende, ninguém atende
só reproduzimos e sobrevivemos porque é o que resta
para seres tão aparentemente banais como nós para com todo o Resto.
Não sou maior nem menor que um pulgão
apenas mais forte
às vezes mais inteligente
talvez eu seja menos útil na Natureza do que ele.

A única forma de se escapar disso
dessa tristeza que a nossa falta de significado nos traz
é simplesmente viver essa realidade
e aceita-la. Ou ser mais um louco sozinho por aí.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Importância sórdida.


Nós
sozinhos em nossa própria imensidão cósmica
tratando um ao outro como irmão
chutando e cuspindo um no outro, sempre
e pregando a paz e a democracia depois disso

Nós
amantes entrelaçados e amarrados pelo prazer
loucos sem ninguém espalhados pelo mundo
crianças choram, imundas e famintas
enquanto prostitutas de luxo animam as festinhas de grandes diretores e presidentes


Nós
grandes conferências para preservar o verde
coalas atropelados na Austrália
Amazônia fodida e sodomizada
Tentando se livrar do grande buraco negro que terminará de destruir a camada de ozônio, e depois
nós

Não somos nada, nós
achamos o contrário porque existe a vã esperança
esperança que
nós criamos em nossas cabeças
assim como todo o resto ao nosso redor
nós não temos importância alguma e não podemos contra a menor das forças Naturais
qualquer coisa está acima de nós
apesar de sermos algo interessante...

Nós, procurando nós
atados a nós feitos
por nós, uma pequena casca de
noz largada em algum canto do Tudo
aguardando pelo eco de alguma voz. Além de
nós.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Quando trombei com Bob Dylan.


   Terminei meu almoço às 13:45 e deixei a louça para acumular mais uns dias em cima da pia já cheia e suja. Estava com preguiça de lavar, estava com preguiça de limpar a casa. Merda, viver cansa até quando não se vive.
Estava sem emprego e morando sozinho novamente. Luana, a garota que dividia o apartamento comigo por dois anos e alguns meses, se mandou com um namorado para ir morar em algum canto da Zona Oeste. Estava sozinho há uma semana e sentia falta de sua companhia naqueles 58m² de espaço, que agora pareciam ser muito mais para mim. Não, não tive nada com Luana, nunca tivem não por falta de tentativa, é claro. Ela nunca olhou pra mim qualquer forma diferente de como um amigo, uma hora simplesmente aceitei que seria mais uma garota que eu teria somente nos meus transitivos e viajantes pensamentos de felicidade idealizada. Tinha sido assim a minha vida inteiro, acho que já não faz mais diferença há muitos anos, e eu realmente havia tentado tentei até encher o saco e deixa-la se agarrando com qualquer otário que aparecesse e a tratasse como merda. Avisei sobre eles para ela algumas vezes, afinal de contas essa é a utilidade de um amigo como eu, isso e tirar os papéis de merda do banheiro. No final acabou achando um cara que não a tratava como uma merda lá tão fedida, apenas como um cocozinho seco de gato. Ela prometeu que iria visitar-me toda vez que desse. Eu nunca mais a veria.
Como sempre, a televisão só passava lixo atrás de lixo, continuamos assistindo porque estava afim da boa e velha alienação, precisava encher a cara de informações vazias, de necessidades que eu certamente não tinha. Passava algo interessante no Discovery sobre o gene da maldade ou coisa assim. Mudei. Coloquei uma comédia americana que não me tirou um riso se quer, estava quase no final e agradeci por isso, desliguei a TV antes que acabasse ou uma bolha de ar crescesse no meu cérebro. Peguei meu violão e tentei algumas músicas, nada; tentei um blues básico, nada; qualquer coisa, nada. Nada estava dando certo, bosta.
Caguei e pensei em Luana enquanto cagava, era uma garota legal de verdade e sentiria saudades dela, já devia estar sentindo. Sua ausência era notada pelo apartamento todo, antes estava tudo organizado, agora haviam explodido uma caixa de granadas em cada cômodo. Eu até curtia uma organização mas me encontrava em uma fase muito largada da minha vida. Não tinha trabalho, meus últimos reais estavam no fim e não tinha garota alguma há tanto tempo que sei lá. Antes eu tinha ao menos o insignificante prazer de ver Luana desfilando por lá, vez ou outra só com a roupa de baixo, vez ou outra se trocando de porta aberta, sabendo que eu ia dar uma espiada. Não me dava uma chance mas me dava umas espiadas, algumas mulheres ainda tem algo que lembre um coração embaixo do peito.
Dei descarga e pensei que seria bom sair por aí e gastar o resto de dinheiro e sanidade que ainda restava para o meu ser. Achei que seria bom tomar um banho, tomei. Calor do caralho há muitos dias, meu corpo grudava e aproveitava que estava sozinho para andar pelado pela casa. Achei que as pessoas na rua conseguiam me ver nu, enfiei a bunda na janela para que tivesse a certeza. Coloquei as roupas mais leves que encontrei, achei vinte mangos que não deviam ser meus caídos atrás da mesinha da pequena sala. Enfiei no bolso e saí do apartamento com uma nota e uma chave de casa largados pela minha bermuda jeans.
Cumprimentei o porteiro e saí para a rua quente. O Sol começava a perder suas forças e uma brisa fraca batia nas sombras e em mim. Andei por alguns minutos sem rumo, pensei que seria legal ir a algum bar e passar o resto do dia por lá, talvez jogar uma sinuca ou cartas com qualquer bando de velhos abandonados que estivesse por lá. Andei mais um pouco por umas ruas vazias e verdes e um senhor bêbado me abordou de supetão:
  • ôô, meu jovenzinho! Não tem um trocadinho pro véinho aqui comer uma coisa? - arrastava a voz
  • O que você vai fazer mesmo? Haha – perguntei
Ele olhou e me perguntei porque simplesmente não disse que não tinha grana comigo.
  • Vou comer uma coisa, jovem. - sorriu sem dentes
  • Eu sei que você vai comprar um goró, tiozão. Não ligo, também gosto. Mas não tenho nada aqui, cara.
  • Ôôô... - lamentou o ébrio senhor
  • Te devo uma na próxima.
Ele sorriu, não sei porque sorriu com uma coisa que qualquer um poderia ter dito, mas sorriu. Achei bom, se consigo fazer um sorriso em alguém durante o dia, talvez o meu dia não esteja tão enfiado no cu assim. Continuei andando em direção ao bar algumas quadras adiante e o bêbado continuou sua procura por uns trocados, cambaleando sem dentes por aí.
Virei aqui e alí e caí em umas ruas ensolaradas novamente. Ensolaradas e agora mais cheias de pessoas indo trabalhar, almoçar, vadiar ou apenas andar. Pensava em Luana novamente. Acho que estava gostando dela, gostava dela e agora ela estava morando com um bamba em algum lugar bamba, um notório imbecil, com certeza. Mas o imbecil que estava se dando bem melhor que eu, com certeza, chutando o belo rabão de Luana e ela gostando, não é possível que ela não goste de levar uns murros na cara. Devia ter tentado isso. Talvez fosse isso o que faltou quando ela deixava-me espia-la depois do banho: Entrar xingando e descer o cacete. Agora era tarde, foda-se
Chegava próximo ao bar e a rua parecia estar cada vez mais cheia, tentava desviar das pessoas que passavam apressadas umas pelas outras. Desviada de uma e chegava outra esbarrando, passaram-se mais umas três ou quatro trombadas e na quinta dei de frente com um senhor de chapéu que também tinha me visto. Trombamos e na hora achei que ia derrubar o velhote, ele deixou cair uma pasta e me apressei a pega-la enquanto me desculpava:
  • Nossa! Senhor, me desculpa! Machucou?
  • Não, tudo bem – respondeu com uma voz rouca e fanha
Ele falou e entreguei a pasta em suas mãos, quando olhei para o seu rosto quase caí para trás e arregalei os olhos e encarei o senhor de chapéu, bigode e uma pesada jaqueta preta que não sei como ela aguentava com aquele tempo:
  • Bob Dylan! - gritei
Ele olhou para mim e para as pessoas ao redor, estavam tão apressadas e aparentemente estressadas que nem ouviram a minha sonora exclamação quando reconheci o cantor folk que quase havia derrubado no chão
  • Meu Deus, não acredito! Você, cara! Não acredito!
Sr. Dylan parecia tímido com a situação e me surpreendi mais com ele ter prestado alguma atenção em mim do que ele estar na minha frente no meio de uma rua movimentada. Sorriu com o canto da boca e apenas disse:
  • Sim
Apertei sua mão extremamente empolgado e na hora algo veio em minha cabeça e simplesmente perguntei:
  • Cara, estou indo para um bar agora. Se você tomasse umas comigo, seria incrível!
Ele abriu um sorriso inteiro e respondeu o que eu não ouvia de nenhuma garota e não esperava ouvir dele novamente:
  • Sim!
Seguimos para o bar e eu imaginava se aquilo não era sonho. Não parecia ser, aquilo tudo parecia ser real demais. Imaginei um pinguim gigante e chequei para ver se não aparecia um na minha frente. Não apareceu. Eu estava mesmo indo para um boteco ao lado de Bob Dylan, puxando conversa sobre suas letras e sobre alguns poetas que sabia que ele curtia. Citei Ginsberg e ele contou umas histórias rápidas sobre viagens que tiveram juntos. Eu ouvia tudo e o que mais pensava era " isso é a coisa mais estranha que já aconteceu na minha vida até hoje". Chegamos na porta do bar e avisei ao garçom para trazer dois copos e uma cerveja para uma mesa do lado de fora do bar. A rua estava deserta e era repleta de árvores e casinhas arrumadas. Achei novamente que estava sonhando, não lembrava daquela rua. Mas não estava. Estava tomando umas com Bob Dylan de verdade, num boteco de esquina qualquer, conversando sobre escritores e músicas de décadas atrás.
O tempo passou e a tarde parecia correr, conversávamos ainda e bebíamos mais cerveja. Sr. Dylan pediu umas mandiocas fritas e mais tarde pediu uns bolinhos de bacalhau, enquanto mandávamos mais cevada pra dentro e ríamos. Sua voz parecia muito mais rouca ao vivo, ainda mais quando já estava alto e soltava uns risos aqui e alí. Em algum ponto contei a ele sobre Luana, achei que nem daria ouvidos para os lamentos de um largado com vinte pilas no bolso que nem eu, ele ouviu-me falando sobre a garota por alguns minutos, em silêncio, quando terminei de falar que estava sem grana e sem garota, ele apenas disse:
  • Dinheiro aparece e mulher não vale nada, garoto.
Eu ri, ele riu. Aquilo era uma grande verdade, Bob Dylan me dando conselhos financeiros e amorosos, que tarde mais estranha.
A tarde já chegava próxima do seu fim e o Sol descia lentamente e alaranjado, as garrafas de cerveja em nossa mesa já ocupavam quase todo o espaço e Bob me passou uns cigarros que estavam dentro de um maço que não me era familiar. Tinham um gosto bom e fumamos em silêncio por um tempo, contemplando aquele pôr do Sol e o início da noite espreitando o final do dia. Acendemos mais uma daquelas cigarrilhas cada e conversamos um pouco enquanto terminávamos a saideira e esperávamos o rapaz trazer o café antes de irmos. O café chegou e fumamos mais umas cigarrilhas enquanto o saboreávamos sem pressa. Quando terminamos, Bob pediu a conta e lembrei que gastamos grana a tarde inteira com cerveja e outras porcarias e eu tinha apenas vinte mangos comigo:
  • Cara, eu tenho só esse trocado aqui comigo. Dá pra fazer umas cervejas, imagino – disse entregando o dinheiro para ele
  • Relaxe, garoto. Guarde isso e deixa que eu pago a conta
Lembrei que estava ao lado de um artista milionário e nem insisti em contribuir na conta. Eu estava desempregado, porra.
A conta chegou e não vi quando deu, com certeza umas quatro vezes mais do que eu tinha comigo. Nos despedimos do garçom e da beça moça no balcão e fomos andando pela rua que já parecia escura. Viramos algumas esquinas e reconheci a rua na qual trombei com Bob Dylan horas mais cedo, ele se virou pra mim e disse:
  • Bom, garoto, vou indo nessa. Dei umas boas risadas essa tarde.
  • Sim, obrigado pelas cervejas, sr. Dylan – agradeci sorrindo
  • Nos vemos por aí.
Ele apertou minha mão e sorriu, se virou e foi seguindo seu caminho. Gritei:
  • Bob!
Ele virou
  • Me arranje outra dessas cigarrilhas, cara, por favor?
Bob sorriu novamente e me jogou uma, peguei no ar e coloquei atrás da orelha, ele virou e continuou andando na direção oposta à minha, na mesma rua que o havia encontrado. Não havia lhe dito meu nome ou tirado uma foto, nem sequer um autógrafo no guardanapo, talvez eu guardasse aquela cigarrilha como recordação, talvez eu a fumasse e não sobrasse nada para comprovar esse dia além desse texto. Ninguém acreditaria de qualquer forma, com ou sem tabaco. Segui em direção ao apartamento sujo e vazio e sem Luana. As ruas pareciam mais escuras e desertas agora, encontrei o senhor bêbado que havia me pedido uns trocados deitado na rua, dormindo ou apagado. Tirei as vinte pilas que havia economizado no bar e olhei para ver se não tinha nenhum espertinho espreitando. Enfiei a nota no bolso da camisa abarrotada do homem e fui para casa, talvez dar uma arrumada naquele lugar, finalmente.

domingo, 23 de setembro de 2012

bruxa do 174


   Talvez Rousseau não tivesse noção do quanto a sua famosa frase faria sentido no futuro, talvez muito mais sentido do que em sua época. A sociedade sempre foi a maior das utopias e a maior destruidora de vidas que o ser humano organizou, sua ideia básica e direta de todos vivendo em aparente harmonia nunca foi algo que deu exatamente certo e há tempos vemos os reflexos disso nas mais diversas áreas. Sandro é um modelo, um exemplo desse reflexo, mais um ser que foi chutado para debaixo da cama da sociedade e é largado lá como um brinquedo velho e inútil, algo que sabemos que ainda existe mas não paramos para dar uma olhada ou ver se ainda está inteiro. Ele e mais uma incógnita de crianças e adultos que são abandonados pela sociedade estão vivendo à mercê da boa vontade dos mesmos que os abandonaram e os chutam todos os dias, correndo da polícia que os vê como meros pedaços de carne jogados na rua, drogados e sujos, um problema que as madames não podem entrar em contato, por isso acabam marginalizando-os e privando-os de uma existência mais aceitável para os padrões de uma suposta sociedade justa. Quando tudo sai do controle, cadeia e mais porrada em quem está mais sujo.
Nas favelas as pessoas costumam viver com medo constante. Medo de traficante, de polícia, de despejo, de miséria. Miséria é mais uma coisa que leva as pessoas a ficarem loucas numa sociedade, trabalhar mais do que é capaz para não conseguir sustentar uma família, criar um filho ou muitos sozinho, tendo que fazer de tudo o que é possível e o que é dentro e fora da lei para sobreviver de alguma forma bem baixa. Crianças são abandonadas pelos pais ou os perdem e tem que ficar na rua, encontrando consolo e algum conforto cheirando cola, roubando ou se humilhando para os outros que nem ao menos olham em suas caras, os olhares atravessam direto, não existem para os outros, não existem para nós. São completamente invisíveis aos nossos olhos bem alimentados e descansados.
A invisibilidade não é apenas vê-los como animais brutos, seres inferiores ou marginais. Simplesmente olhamos e é como se não significassem nada para nós, não existissem de alguma forma, como se significassem menos do que os outros transeuntes na rua significam. Olhamos e não vemos nada, vazio e sujeira em uma forma que a sociedade já não trata mais como igual, como humano. Os cães que ladram pelas vielas muitas vezes recebem mais respeito do que essas crianças, tratadas como algum tipo de câncer, um inseto que traz caos e desgraça para a nossa casa. A única forma de serem vistos é com a violência. Sandro usou isso e funcionou, conseguiu existir por algum tempo para o resto da população, uma espécie de mártir desses invisíveis, não uma pessoa má, que nasceu da maldade que a pobreza traz, como pensamos, alguém que se cansou de todo o anonimato, de levar escarradas da sociedade o dia inteiro, de ter que ficar roubando e apanhando da polícia, de perder seus amigos que também não existiam para nós, para ninguém.
A polícia, como já dito, também é um grande impasse na vida dessas pessoas. São os carrascos da sociedade, que puxam o gatilho pra cima de quem uma significante minoria manda puxar, chutam quem essa minoria manda chutar, esculacham a todos que moram na rua, a todos que, de alguma forma, não entraram no conceito sonhador da sociedade e vão contra essa maré. Sandro uma hora se sentiu cansado disso e nadou contra essa maré absurdamente violenta, foi contra todos para que todos o vissem um pouco, perdeu o seu equilíbrio mental quando viu que nunca conseguiria nada da sociedade além de desdém e asco eternos. Foi sozinho, fez tudo sozinho, como sempre foi.
Depois de todas essas coisas ainda temos quem diga que pena de morte é uma solução viável, que resolveria algo. Há também aqueles sádicos que sabem que não resolveria problema algum, mas apenas querem ver um cara como Sandro ter o cérebro fritado na cadeira elétrica, só porque, em sua concepção questionável, merece. Não podemos julgar se ele merece isso ou não e, se ele merece, todos nós merecemos também. Todos merecemos fritar na cadeira elétrica ou levar um tiro de fuzil na cabeça, porque construímos a sociedade dessa forma e cada dia enxergamos menos o que se passa nela, o que se passa na nossa frente, pessoas morrendo de frio ou sendo queimadas nas ruas durante a noite como se fizessem parte de alguma brincadeira doentia. A sociedade é doentia porque o ser humano é a doença, uma doença sem cura.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Explicação


Tudo é tão grande e absurdamente complexo
que tentar explicar Tudo acaba sendo tão
ridiculamente
fácil...

Tudo é óbvio demais
complicado demais
sentido
sem ter
sem tudo
escuro

Por que a caixa de leite tem esse formato?
Por que nossa pele não se dissipa no espaço?
Ou rimas
rimam? O tempo destrói?
Explicamos o que vemos
o que não vemos
o que queremos ver
Tudo, Tudo, Tudo
chegamos em nada
e tentamos achar razões para isso também
e se não a achamos...
Deus
Tudo
Cego
Mudo

Querem a claridade do Sol
uma eterna aurora do saber
que seja tão infinita quanto Tudo.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Lady Death's life.


Death is kind of a friend
She's with us throught out all of our lifes
We just don't realize that
until Death's makes it moves
But she is near us
all the time
Holding our hands, laughing at jokes
the others tell us
Death is near us
along our life

She's on a chair
resting and waiting and calmly looking at our time
Give us a little smile somtimes, you know
Lady Death don't wanna be forgotten
who wants to?
So she's always around, touches you and your dear ones. Send a message
"I'm here, buddy, don't you forget it"

I'm not going to forget her
never

Today she came to a visit, Lady Death
She was not friendly, though
She just went to do her job
And I understand that

Death came here for a minute
Do what she had to do
and left us
here
left me
and my poor granny
devastated
down,
baby
Death left us after an quick visit
the last visit
my old grandfather had in life

Death is on that old chair
sitting and resting a bit
on a hot living room
on a hot winter night, yeah
flies everywhere
annoying me
making this whole situation a lot worse

Death is on a candy bar
on a sweet roll
Lady Death is wearing her heavy and black robe
the weather doesn't bother her at all
She's strong
Death is adaptable

She's here
She's watching me writting about her job
about her clothes
Lady Death has been doing very well lately, thanks for asking
honey

Death's not bad
Death's not a bitch
Death's sending you a hello, by the
way

But Death do not felt sorry
for my old grandmother here
crying again
after she cried the whole day
after she cried so many times before
when our friend, Lady Death here
passed by to take a walk
with her parents
or her brother
her sister
or her daughter
and now her husband
Lady Death likes to visit some families
I guess

Death has to be a woman
has to be a lady
No living creature in this world or from another world
has the hability to end so many lifes like this, only a woman can do this so perfectly,
yeah

A lady wearing black
no soul
no anger
or vengeance
A lot a sense of humor, although

Lady Death is near us, boy
Mark my words
She's near us. And she's gonna get us all one day
I am here
not waiting
but I am here, though
I'll want her someday
and when she comes I'll kiss her on the lips. I'll kiss Lady Death, yeah
To feel her wet, cold woman's tongue
a last wish before she takes me
to wherever I have to go

And if you don't accept my kiss
The last wish of a dying man
I'
ll
fucking
rape
you,
you
miserable
bitch, right?

I'll rape you while you stick your hook on my back
and I'll scream
and laugh and then its gone
me
bye, fat fuck,
Lady Death won again, as usual
She always won
It's a fucking law

Nothing beats Lady Death

Nothing beats the wish of Death
Nor even the birds singing hope songs on the trees outside
The dogs on the streets have their meeting with Death
everyday
sad, sad days
cat's getting killed by kids
cars running over bums
or young boys burning'em on some forgotten by the gods alley

even Death cries a bit
even Lady Death cries
She took my grandfather for a eternal walk today
left my granny on a eternal mourning again

There is nothing we can do
A six pages poem will not fix shit
or bring anyone back
and it certainly not gonna stop
Lady Death
from meeting me someday
                                     [and I don't want this either, of course

What I know is that Death is near us
All the time, yeah
an old friend
old enemy
old creature of our existence

Death is our friend
"Nothing personal"
It's just Lady Death's life.


to my grandfather.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

sete erros

somos os últimos
                          sete segundos
de um domingo,
Se todo o tempo do Universo fosse colocado em apenas
uma semana. Sete segundos. Domingo.

Isso me faz odiar ainda mais as segundas-feiras.

tarde fina chuva


uma chuva cinza
uma casa verde
uma creche colorida
Frio suave como
O andar do gato

silêncio e pequenos sinos
paz
candomblé
batalhas entre pássaros
e gotículas de chuva
incomodando meu caderno

três garotos jogando bola
Na rua mais tranquila de todos os tempos
o gato volta sorrateiro
um garoto curvado de vermelho

mais uma adorável tarde tingida de cinza

domingo, 16 de setembro de 2012

Cinema branco


 O letreiro em cima do discreto e pequeno prédio brilhava com mais intensidade conforme a noite dava as caras para a cidade mais uma vez. As pessoas começavam a se aglomerar em frente ao cinema e liam aquelas palavras coloridas que diziam:
Espaço de Sá
Essa noite apenas:
"A cabeça de um Homem"
O boca a boca e a curiosidade que um curto teaser na internet acendia nas mentes das pessoas acabaram se mostrando muito mais eficazes do que qualquer trailer ou divulgação para massas. De qualquer forma isso também não era a ideia de seu diretor e roteirista, o cineasta brasileiro Alex Lardonha, que avisou à sua assistente, Natasha Minsk, que daria as caras por lá minutos antes da sessão começar, para evitar entrevistas e comentários que pudessem estragar a novidade e a surpresa do conceito que o Cinema Branco (como havia chamado aquele novo tipo de filme) estava para revelar às cerca de cinquenta pessoas que formavam uma fila na porta e daquele tradicional cinema na zona norte da cidade.
E durante cerca de uma hora houve vida e vozes e vendedores de guloseimas e bebidas naquela esquina. Claro, nos cantos obscuros e apagados pela calada da noite que caía cada vez mais forte, vendedores de entorpecentes ilícitos para os que queriam ter uma visão diferente do que poderia ser aquele novo tipo de filme. Tabaco e maconha perfumavam os arredores e a esquina daquele lugar antigo e cultuado. Bagulhos de fungadas e nóias de pedra completando o quadro daquela noite, como em todas as noites, idosos abraçados e passando despercebidos pela escuridão da rua. Natasha Minsk, secretária e, vez ou outra, amante de Alex, analisava aquela fila e sentia uma grande noite chegando, não de sucesso ou de público, mas uma ideia que ficaria para sempre na cabeça de quem a sentisse, a verdade sobre o que se passa na cabeça de um gênio como Alex Lardonha.
Jornalistas de revistas e blogs alternativos escreviam em cadernos e tablets sobre o que parecia ser o filme e deviam ser a grande maioria presente. Tirando isso, haviam adolescentes metidos a intelectuais e aposentados desocupados que procuravam alguma nova ocupação na velhice. Jovens bebiam umas cervejas no bar em frente, esperando a fila andar, riam e gastavam o que tinham trazido consigo, visto que a entrada seria gratuita e era uma sexta feira.
As portas se abriram e as pessoas foram entrando lentamente no rústico prédio pintado de vinho. O ambiente interno era todo colorido e as cores se misturavam violentamente, como se estivessem brigando por espaço, cores quentes e frias somam-se ao preto e deram um ar assombrado para o lugar. "O cara realmente pensou em tudo" disse um jovem para o amigo. E era verdade, tudo havia sido arrumado para aquela única noite daquele filme estranho e, talvez, inovador. Algumas bandeiras com frases de grandes homens como Freud e Baudelaire, cartazes de filmes antigos que o diretor era fã e que o inspiraram a realizar sua grande obra estavam todos espalhados pelo saguão. Comentários e sussurros eram ouvidos por toda a parte do recinto, enquanto os interessados passeavam pelo saguão e dirigiam-se para a porta 3, no fundo do corredor principal. Conhecidos e próximos de Lardonha pareciam surpresos com o dinheiro que o diretor esquisito provavelmente havia gasto para deixar tudo aquilo daquela forma. Deve ter gastado até o que não tinha apenas para mostrar para as pessoas o que escondia a cabeça de um homem, seu inconsciente trabalhando desde seu nascimento até aquela derradeira noite.
A pequena sala de exibição começava a ser preenchida com as pessoas da fila assim como o que restava de espaço para curiosidade na cabeça das mesmas. A sala não havia sido alterada, estava escura e com suas luzes amarelas ainda acesas, com o telão gigante apagado. Alguns olhavam em volta à procura do diretor, querendo entrevistas ou autógrafos antes de rodarem o filme. Nada. Realmente queria surpreender a todos com suas ideias e pensamentos. A sala foi enchendo e as pessoas que estavam no saguão já estavam acomodadas nas poltronas e as últimas da fila entravam rapidamente enquanto o lanterninha começava a fechar as portas da sala.
As luzes se apagaram gradativamente e, quando se tinha um breu total, o telão acendeu e o público se calou completamente para apreciar a arte do brasileiro. Um piano ao fundo tocava suavemente uma música melancólica e melodiosa e palavras começavam a se formar na tela negra: "As cenas, ideias e músicas desse projeto foram todos tirados diretamente de seu diretor e roteirista, Alex Lardonha". As pessoas leram e novamente olharam para os lados e para a frente, procurando o ausente cineasta, mas viram apenas Natasha, sua ajudante, num canto da sala e com um olhar interessadíssimo no filme. Um barulho de projetor colocando um novo rolo para funcionar indicou o começo da película. Um bar escondido pela noite foi a primeira cena e a câmera se aproximava como se fosse o campo visual de alguém, as esquinas e os becos anexavam viciados e trombadinhas esquecidos pelo mundo. A câmera entrou no bar de onde se ouvia um jazz rolando ao fundo. Pessoas bebiam e riem nas mesas, com porções de batatas indo e vindo e canecas de cerveja por todos os lados embriagando os clientes. Um homem se aproximou de um palco que havia perto do balcão e trazia consigo uma pasta verde. Subiu no palco e abriu a pasta, tirou algumas folhas rabiscadas e amassadas de dentro da pasta e as vozes dos clientes foram cessando até o silêncio ser completo. O homem de chapéu começou a ler um poema, um poema pesado e sujo que instigou os clientes do bar. Ele xingava e eles gritavam de volta, bêbados e excitados com aquele selvagem na frente. A cena mudou do nada e agora havia um quarto minúsculo e uma garotinha chorando, chorava em silêncio e parecia em choque. Tinha sangue na cama e em seu vestido, a porta do quarto se abriu e a silhueta de um homem surgiu das sombras. A garota soltou um grito e o homem entrou e bateu a porta com força. A cena mudou novamente e agora alguns jovens se divertiam numa mansão, jogando cartas e usando cocaína, algumas jovens estavam nuas e se esfregavam nos colos dos almofadinhas. Uma música começou a tocar e eles dançavam e se divertiam ao som psicodélico que ribombava pelas paredes do casarão.
As pessoas na sala de cinema não entendiam aquilo que viam, talvez o conceito geral do filme fosse revelado no final ou algo do tipo. Talvez não fizesse sentido algum e fossem apenas cenas soltas que Alex filmou por aí e juntou tudo numa película só para não irem parar no meio do lixo.
Os jovens pararam de jogar, dançar, transar e se drogar e todos olharam para a câmera, alguns sem roupa, outros visivelmente alterados pela bebida e outras drogas. Um canto começou a sair de suas bocas, um canto calmo e infantil, seus olhos não tinham vida ou brilho algum, pareciam estar em um transe profundo e aquela música começava a parecer perturbadora para quem assistia tudo aquilo. Um branco total cegou a todos na sala por uns segundos e um campo verde surgiu e os pássaros cantavam nas árvores e no ar. Barulho de gotas no chão eram ouvidos a cada cinco segundos e o campo verde se transformou numa massa de cores e nuvens cinzentas, junto com uma trilha sonora caótica que assustou a todos. Uma senhora se levantou e saiu da sala, um casal viu e fez o mesmo. Natasha Minsk olhou para os que saiam e sorriu. Um grito desesperado se misturou aos sons e cores e imagens começaram a correr pela tela. Um corpo decapitado num quarto, crianças mortas e despedaçadas na guerra, um senhor com a cabeça estourada no chão de uma loja. As imagens tornaram-se cada vez mais tenebrosas e surreais, gritos e risadas eram ouvidos junto com tambores e mais desafinados. Um rapaz estuprando uma loira e uma mãe abraçando o filho antes do primeiro dia de aula eram um exemplo da antítese de imagens que confundiam a cabeça de todos os presentes lá dentro, que já pareciam cansados daquela coisa:
  • Que porra é essa, cara? - gritou alguém no fundo
Comentários surgiram e risadas do público abafaram as do filme. Uma mulher vomitou e mais alguns saíram do lugar. O telão brincava com imagens grotescas e escatológicas e a perturbação generalizada se espalhava pelo público, que agora tinha menos de quarenta corajosos.
   - Vai tomar no cu essa merda, bicho! - um grupo de jovens se retirou e vaiou.
A bela senhora Minsk olhava para tudo aquilo com diversão, deixando escapar um riso aqui e alí, querendo ver a cara de todos quando chegasse ao final do filme. Entenderiam a obra prima que havia ajudado Alex Lardonha a criar. Sim, seria memorável. Ouviu as músicas psicodélicas e via as imagens surreais, coloridas e violentas, quando ouviu o grito de uma senhora, um grito esganado e desesperado que se sobrepôs aos outros, tanto os do filme quando a das outras pessoas xingando e gorfando dentro do pequeno cinema:
  • Oh! Minha Nossa Senhora!
Todos olharam para a velha sentada no canto esquerdo da sala e ela apontava para o teto, no fundo, aonde o projetor estava posicionado. Os quarenta sujeitos olharam ao mesmo tempo. Uma sonora e amedrontadora exclamação foi solta na atmosfera do cinema. A luz que era saia do projetor atravessava uma cabeça que era vista claramente do buraco, a cabeça de Alex Lardonha estava aberta como uma alcachofra e a luz passava pelo seu cérebro exposto, que reproduzia todas as imagens que eram vistas na tela e causavam horror a quase todos os presentes.
  • Ahhhhhh....! - foi a resposta da maioria das garotas à revelação
Uns gritaram, outros saíram correndo, outros gritaram e saíram correndo, alguns outros estavam em estado de choque e apenas dois ou três ainda prestavam atenção ao filme, como que hipnotizados, os que foram tocados pela ideia do diretor e roteirista.
E enquanto a sala se esvaziava rapidamente e alguns ligavam para a polícia ou para os bombeiros, o filme ainda rodava suas cenas, a música parecia mais alta e assustadora enquanto tudo rodava no telão, sangue, morte, risos, natureza, jovens subversivos, tudo. Um sorriso enorme se formou no telão e encarou a todos por um instante. Natasha Minsk sorriu junto. Depois se evaporou e o telão e os sons desligaram e as luzes foram acesas. Tudo o que se passa na cabeça de um homem havia sido revelado para aquelas pessoas.

(t)ris(t)onhos


sorrimos metade do dia
para tudo
e para todos
conversas no meio da aula
sorrimos
e nem vamos nos lembrar
sorrimos quando não queremos
ou quando não podemos
o dia inteiro
nosso maxilar dói
sorrimos para tudo
quase o dia inteiro
ao redor dos ambientes há mais sorrisos
, às vezes,
sinceros
ou não,
não.

Sorrisos constantes, todos nós
o mundo continua triste
com um sorriso
estampado.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

down on the ground


Agora
pouco
deitei
zoado
adeus luz do dia
Sr. Johnson
tocava
seu violão
rouco
e sua voz era tão
bela
e suave
naquele momento
em
especial
sabe?
e o ventilador rodava
e rodava
rodava novamente
na minha frente
e era
o Céu
ohhh
isso
o Céu e eu
foi legal!
mas o inferninho está lá
tentando
agarrar uns fiapos da sua alma
e puxaaaar
tudinho
pra
baixo
he
he
he
cuidado,
baby.
Cuidado.
ou vais ficar
lelé,
como
os artistas
do
blues.

domingo, 9 de setembro de 2012

vamo que vamo


queria escrever
mas sei lá
queria tomar um litro de chá de cogumelo e ficar pra sempre em outro mundo
foda-se essa merda
caralho
cu
bunda
tudo é equilíbrio e equilíbrio é uma faca que te corta pelo saco
até a sua glândula pineal
depois te joga numa corda bamba
bamba
com meia dúzia de tijolos amarrados ao seu pé
então te faz sorrir e brincar um pouco
e aí uma grande e ininterrupta onda de merda entra pela sua boca
e você é obrigado a engoli-la em vistosas goladas
tentando se livrar
mas ela quer porque quer te enojar bastante
escatologia eterna é uma metáfora para
                                       seres humanos


como seria bom quebrar a cara de um desses agora
ver um sendo quebrado
podem me quebrar também
uma perna
um braço
façamos uma grande roda e chutemos os rabos uns dos outros
depois esmaguem
quebrem
quebrem tudo
todos
todas
foda-se
ideias tortas e podres dominarão nossa raça por todo o sempre
                                            [dominam
temos que respirar fundo
toda vez que queremos sentir alguma vida acesa
ou uma fagulha insignificante apenas
dando um sinal de existência dentro nós, ao menos
algum sentido, quem sabe
complicado...


vamos rezar
rezamos e amamos o próximo
e depois enfiamos uma tesoura no olho do próximo após o próximo
porque ele era um filho da puta aí
ok
é o amor
é
deus
sorrindo para nós
é tudo tão perfeito e mágico que eu até esqueço de aplaudir
essa incrível obra


hahahaha.
O final de tudo se resume a isso mesmo.

sábado, 8 de setembro de 2012

Lisérgico rio.


Lisérgico rio

I

Os insetos estavam nos comendo vivos há alguns meses já quando o verão chegou no seu auge, com suas chuvas ininterruptas e a vontade de botarmos fogo em nossos corpos para nos livrarmos dos malditos mosquitos e de suas doenças nojentas. Na época nenhum de nós fazia mais ideia do tempo que estávamos fazendo naquela selva fechada, tendo que lidar com macacos pulguentos e tigres famintos camuflados pelo verde. Japas mesmo não lembro de ter visto mais do que meia dúzia.
A essa altura nosso pelotão contava com eu e mais cinco homens: o cabo Pablo Valdéz, filho de imigrantes mexicanos e um tanto quanto quieto, parecia ser um cara legal e acho que queria realmente fazer carreira no exército; o explosivo soldado August Bruce, que dentre nós era um dos que menos fazia questão de estar no meio de toda aquela merda ensolarada, pincelada com picadas dolorosas e condições higiênicas deploráveis; o jornalista enviado por alguma revista, nunca soube qual, Ian Goldberg, um sujeito que devia ser do norte, reclamando sempre do calor absurdo que fazia na selva dia e noite a fio, também era bem na sua e acho que nunca tinha dado um tiro mirando em um alvo móvel. Ficava apenas no canto, no final do dia, escrevendo sobre o que estava vivendo em seu diário e rabiscando algumas palavras para mandar para o suposto jornal assim que tivesse alguma chance; havia também o sargento Eric von Demark, um gordo sulista que, por alguma sorte ou estranha vontade do universo, ainda estava vivo, e isso impressionava a todos nós. Não parecia dar a mínima para nada naquele lugar, era mais um louco do que um soldado, atirava em tudo que se movia no front e já havia sido acusado de assassinato. No meio de uma guerra. Estranhamente o julgamento não deu em nada e ele foi absolvido de tudo e estava livre para praticar sua insanidade naquele país esquecido por Deus; e comandando nós cinco estava o tenente Gerald Gomes, o mais velho entre nós, mesmo sendo bem novo, filho de pai português e teimoso como devia ser, era um sujeito extremamente inteligente e simpático, talvez simpático até demais para um tenente do exército. Estava sempre comentando e explicando alguma coisa nova para algum ouvinte atento ou desatento, era uma máquina de falar e ainda me perguntava como a sua voz e paixão por uma conversa nunca haviam entregado a sua posição para o inimigo.
Os cinco e eu formávamos um grupo de jovens em sua grande parte de saco cheio de tudo aquilo, de saco cheio dos interesses de nossa nação e do amor à pátria. Queríamos apenas viver o auge de nossos vinte e tantos anos fora daquele lugar e com uma garota nos braços para não ficar sozinho demais nas noites frias. Mas ainda estávamos presos um ao outro naquela cela infinitamente verde, com mosquitos picando até dentro de nossas bundas e o constante medo dos chinas aparecerem e rasgarem nossa carne com seus fuzis soviéticos de grande potência. Isso sem contar as chuvas que já nem faziam mais diferença para nós, tamanho a frequência. A única coisa que nos fazia lembrar dela eram nossos pés no final do dia, quando tirávamos nossas botas e era possível vomitar apenas de sentir o cheiro ou dar uma olhadela para o seu dedão.
Estávamos em uma base próxima a um rio largo e muito usado pelo nativos de lá, não sabia se aquilo era um bom lugar ou se era o pior dos esconderijos, só pensava em sair de lá logo, mesmo que fosse para tomar um tiro no estômago e sangrar no meio da floresta, com macacos e outros animais disputando quem fica com a maior parte do meu traseiro. Os outros cinco pensavam da mesma forma e todas as noites discutíamos os lugares que poderíamos ir, enquanto bebíamos algumas garrafas de cerveja ou goladas de vinho para poder aguentar aquilo:
  • Essa merda! Esse lugar, cara, não aguento mais um dia nessa merda – reclamou Eric, o gordo
  • Toda dia é a mesma coisa aqui: acorda, passa a porra do dia fazendo tudo o que esses superiores do caralho mandam e ainda tem que comer aquela gororoba e fazer cara de que gostou – August parecia bem nervoso, como era costume àquela hora da noite, depois de um pouco de alcoól
  • Pelo menos tem cervejinha e umas garrafas de vinho, senão eu ia ter que explodir essa porra toda pelos ares, meu velho – disse o sargento, acendendo um de seus charutos de origem duvidosa e dando uma notória bicada em sua cerveja, deixando-a pela metade.
  • Concordo. Me alcança uma cerveja aí, Eric.
  • Senhor ou sargento para você, soldado.
  • Vai tomar no seu cu, morro antes de te chamar de senhor – disse alterado o soldado
  • Soldado, eu te dou uma chance para retirar o que disse. Vamos, estou esperando – disse o gordo sargento em tom ameaçador e levantando de sua cadeira, deixando cair cinzas de charuto e garrafas vazias para todos os lados
  • Vem retirar
  • Ok.
Eric pulou na garganta de August e os dois começaram a se socar sumariamente, sem parar um segundo, parecendo dois cães loucos brigando pelo último pedaço de osso com um teco de carne no canto. Se jogavam de um lado para o outro, tentando alcançar qualquer membro do outro para poder inutiliza-lo com um golpe certeiro, mas ambos estavam bêbados demais para lutar e já se ouvia os dois rindo entre um soco na boca e outro:
  • Ok, rapazes, chega de brincar de lutinha. Vão dormir porque amanha é dia – disse o tenente Gerald, com seu ar zombeteiro e um leve riso nos lábios, estava segurando uma pequena caneca de café, como era seu costume depois da janta.
  • Dia do que? Lamber as botas do major ou bater uma punhetinha pro coronel? A única coisa útil que há para se fazer nesse lugar é brigar e beber até desmaiar, para que o dia acabe logo e meu serviço aqui também – Ian havia levantado de sua cama, estava escrevendo há horas e todos já haviam esquecido completamente de sua presença no quarto
  • Não, meu jovem, não. Amanha sairemos para o front, para o mano a mano. Amanha vocês virarão homens, meus caros amigos – sorriu o tenente para todos nós, um sorriso que parecia se abrir pelo quarto inteiro
  • Eu simplesmente não acredito nisso. Estamos aqui há tanto tempo que nem sei como pode ser um mundo lá fora – falou Pablo, com seu sotaque mais acentuado ainda por causa de seu sono recém interrompido
  • Podem acreditar, jovens – Gerald abriu um sorriso maior ainda
  • Quais são as ordens? - perguntei tendo uma mistura de medo e ansiosidade extremos, finalmente o que mais queria nas últimas semanas iria acontecer, mais do que voltar para casa ou para minha vida. Queria sair naquela selva e atirar em todos os filhos da puta que entrassem no meu caminho
Então nós seis sentamos ao redor da mesa e o tenente explicou qual era a missão para nós. Acho que uns agentes do inimigo estavam se infiltrando e passando informações para a Inteligência daqueles macacos. Eram uns quatro caras e uma garota e os cinco deviam ser capturados o quanto antes, de preferência ainda respirando para que os manda chuvas lá em cima pudessem interroga-los e tortura-los à vontade depois. Havia muitos detalhes e nomes e tenho certeza que não fui o único que não prestou atenção alguma ao resto das informações, com certeza as ouviríamos toda hora no caminho rio acima e, naquele momento, todos nós estávamos mais interessados em arrumar logo nossas coisas e sair daquela base maldita que comia nossas almas garfada por garfada, dia após dia, picada após picada.
Fomos dormir, ou ao menos tentamos, uma hora e meia mais tarde, quando já estávamos por dentro de tudo o que conseguimos entender da tarefa que Gerald nos passou. Tchaikovsky martelava na minha cabeça um tanto quanto ébria e eu cantarolava alguma de suas obras bem baixo, esperando o sono chegar e me levar para algum lugar diferente daquele cubículo abafado e fedido, com mais cinco homens ansiosos e loucos para ir para qualquer lugar. Não conseguia dormir e tinha certeza que mais alguém lá dentro estava na mesma situação:
  • Pablo, dormiu? - perguntei
  • Ainda não, tá tudo rodando demais pra eu conseguir dormir – ele havia matado um engradado de cerveja em minutos enquanto ouvia as ordens do tenente
  • O que acha que vai ser dessa coisa aí de trazer esses caras vivos pro generais?
  • Cabeluda!
  • É, eu também
  • Eu só quero saber de sair daqui o quanto antes e trocar chumbada com esses selvagens vermelhos – disse Eric com a voz arrastada, do fundo de sua cama
Eric von Demark parecia não ligar muito em morrer ou viver naquele chiqueiro, assim como o resto de nós, na verdade. Talvez ele tivesse enlouquecido depois de passar por umas poucas e boas no meio da selva fechada e traiçoeira, talvez tivesse visto seu pai matar sua família inteira, talvez tivesse sido violentado pelo seu tio quando era mais novo e o trauma virou insanidade quando envelheceu. Era um verdadeiro louco, sempre fazendo piadas racistas com o exército inimigo, nunca havia feito um prisioneiro, matava a todos que se rendiam, isso quando não os torturava por alguns minutos, abrindo um sorriso largo e amedrontador como o de um palhaço assassino. Estava toda hora irritando Pablo com seus comentários anti mexicano, mas no fundo se davam bem. Se você não fosse um inimigo de Eric von Demark, ele seria legal e até te ajudaria bastante, apesar de parecer um demente.
  • Amanha finalmente vamos VIVER um pouco, caras! Hahaha é – disse dando mais de seus risos de palhaço e calou a boca, provavelmente estava desmaiado por causa da cachaçada que havia tomado.
  • Não me vá fazer alguma merda que nos custe a vida, seu gordo – avisou Pablo, mas Eric já não respondia
  • Me ouviu? Hein?
  • Vai tomar no cu, mexicano sujo do caralho – disse o sargento com a cara enfiada no travesseiro
  • Crianças, chega de algazarra por hoje – riu Ian, e essas foram as últimas palavras daquela noite, na nossa última noite naquela base.
II
Acordamos bem no começo da manha, com helicópteros pousando a poucos metros de nossas cabeças, todos nós com uma ressaca braba de cerveja e vinho e nem um pouco dispostos a sair rio acima em busca de cinco arrombados que estavam prestes a se dar muito mal naquela guerra.
Saímos para comer e o dia estava realmente bonito, com o sol laranja nascendo no leste e tingindo todas as nuvens e homens que passavam correndo de lá pra cá, obedecendo ordens que ninguém queria obedecer e tentando se manter vivos e sãos entre uma guerra e outra. O único entre nós que estava se sentindo bem e saudável para um pouco de ação era o tenente Gomes, que não bebia praticamente nada, apenas fumava uns baseados conosco quando tinha um tempo livre e era um verdadeiro jogador de poker. Ninguém o vencia naquilo, nem mesmo August ou Eric.
Durante um desjejum que não me desceu nem um pouco bem devido ao estrago que a noite anterior causara no meu estômago, conversávamos assuntos aleatórios, jogávamos um pouco de cartas e passávamos o jornal do exército de mãos em mãos para ler alguma coisa interessante. Não havia nada, mas um dos recrutas estava contando uma história um tanto quanto curiosa que tinha escutado "sem querer" na noite anterior, enquanto arrumava uma papelada na sala do general da base: Aparentemente um comandante do alto escalão tinha perdido a cabeça e começado a agir por conta própria, montando um exército formado por nativos, comunistas, americanos e quem mais fosse louco o suficiente para se embrenhar rio acima com um bando de selvagens, estupradores e comedores de criancinhas. O cara havia perdido o equilíbrio e iam mandar alguém para colocar as coisas em ordem novamente. Algum cara que também seria louco o suficiente para aceitar um tipo de missão daquelas, rio acima, no antro de toda aquela loucura e psicodelia natural que era aquele país
  • Ei, isso aí não é mais ou menos perto de onde a gente desce, tenente? - perguntei
  • Não, nós paramos um pouco mais abaixo da fronteira. Esse sujeito vai ter que procurar esse comandante no Camboja, provavelmente. Isso se o que o recruta aí falou for verdade.
  • Seja lá quem for subir esse rio até a fronteira, vai passar por uns maus bocados – disse Pablo
  • O cara conseguiu criar um exército só dele? Esse é o espírito – o jornalista Goldberg se deliciava com dois pedaços enormes de bacon na boca e um belo naco de ovo frito na garfada seguinte.
Terminamos de comer alguns minutos mais tarde e nos retiramos para o alojamento, para preparar nossas coisas e nos despedirmos de um ou outro que havíamos feito amizade durante os meses que ficamos na base.
Já se passavam das nove horas quando fechamos a porta do abafado quarto que serviu de casa por muito mais tempo do que qualquer um de nós queria. Mesmo sabendo que provavelmente a coisa ficaria feia para o nosso lado mais cedo ou mais tarde naquela selva, todos demonstravam alívio e ansiedade em seus olhares, todos os seis rapazes tentando imaginar o que haveria lá fora, no meio do mato, com mais mosquitos e doenças do que já tínhamos visto até então, com os japas nos espreitando e esperando um movimento em falso para detonar a todos.
O helicóptero nos esperava com seus motores ligados e seu piloto já impaciente. Um grupo de jovens, que não deviam passar dos dezoito anos cada, nos acompanharia até um barco perto do delta do rio e depois seguiriam seu rumo, fosse ele a glória ou a morte certa; e pelo olhar de medo da maioria desses jovens a glória estava muito longe de toca-los. Decolamos poucos minutos mais tarde, sem trocar muitas palavras entre nós e nem os garotos de menos de dezoito anos falavam entre eles, era óbvio que todos estavam tentando imaginar o futuro nos próximos dois ou três dias, talvez o futuro daqui algumas semanas, se estariam ali ou numa vala, com vermes comendo o que sobrou do rosto explodido por uma Claymore que estava se escondendo embaixo de uns arbustos ou do projétil certeiro que varou sua cabeça, deixando um buraco perfeito na entrada, e na saída um buraco que caberia o punho de um cara de dois metros de altura. O céu estava lindo, sem nuvens, sem chuva por perto, as plantações de arroz se prolongavam por todo rio que se via, com seus nativos vivendo suas pequenas vidas, com suas pequenas famílias, tentando fugir de um ventilador espalhador de grandes quantidades de merda mole e assassina. Ignoravam os helicópteros e os xingamentos que Eric berrava para eles, parecendo que realmente os odiava com toda sua fúria, urrava xingamentos em alguma língua européia que devia ter aprendido com seus pais ou sua avó. Alguns rapazes riam de seus palavrões, outros estavam absortos em sua mente, tentando decifrar o que aconteceria daqui a pouco, ou lembrando da torta de limão que a tia fazia aos domingos e no aniversário. Lembrando de coisas que já são impossíveis nesse lugar. De pessoas que nunca imaginariam estar vendo o Sol nascer à bordo de um helicóptero, com um fuzil na mão e granadas por todo o corpo, carregando consigo pequenos aparelhos de destruição em massa.
De repente, um rajada amarela sai da metralhadora presa ao helicóptero, operada pelo sargento Eric von Demark, que ainda gritava e tentava assustar os civis agricultores, que agora saiam correndo como filhotes de gato quando se da um pisão no chão.
  • Mas que porra é essa, sargento? - indagou o tenente Gerald, com uma rara raiva em seu olhar
  • Você está louco, cara? Quer matar os civis pra que? Não te fizeram porra nenhuma. Sem falar que você ia se foder se... - começou Goldberg
  • Relaxem, meus queridos. Eu não vou acerta-los. É apenas para se divertir um pouco, sabem?Um sustinho para sentirem a vida realmente! Hahaha! Pensam que eu sou um louco de fazer isso? - retrucou o sargento, com a maior tranquilidade do mundo em sua voz, cortando o jornalista antes que aquela discussão continuasse por mais algum segundo.
Ninguém falou mais nada, mas todos sabiam que o sargento era sim louco o suficiente de atirar nos civis para matar e, se alguém tivesse dado corda, ele certamente o teria feito. Mas enquanto tivesse alguém para segura-lo, haveria um pouco mais de ordem. Mesmo naquela bagunça toda de conflito.

III
No final daquela manha, depois de comermos algumas rações enlatadas e nos despedirmos dos jovens que nos acompanhavam no helicóptero, já estávamos no meio da selva fechada, rodeado de árvores que deviam ter os mais diferentes tipos de animais, plantas, insetos e mais insetos. E se tinha uma coisa que o soldado August Bruce mais abominava no mundo, eram insetos. De qualquer tipo
  • Porra, cara, eu não acredito que eu tô aqui no meio desta MERDA! Não aguento mais mosquito em cima de mim! Odeio esses filhinhos da puta chupadores de sangue! EU TENHO DOENÇA , SEUS PUTOS! - resmungava coisas do tipo de cinco em cinco minutos, por mais de algumas horas de caminhada até pararmos em algum lugar para descansar, mesmo contra a vontade imediata do tenente Gerald.
  • Chega, tô cansado – o jornalista parou e largou sua mochila e o fuzil no chão
  • Tem alguma coisa pra mastigar aí? Voto pra gente ficar aqui um tempo e depois continuarmos, tô bem cansado também - o cabo Valdéz já tinha toda sua farda verde marcada pelo suor das axilas e suas costas estavam encharcadas na parte onde sua mochila encostava.
  • Ok, ok. Vamos parar aqui por uma hora ou duas, comemos algo, damos uma cagada ali no mato e continuamos até chegarmos no ponto combinado – disse Gerald, que na verdade parecia bem feliz em dar uma descansada também. A verdade é que o tenente sempre acabava fazendo o que o resto de nós queria, porque na verdade também era um vagabundo enrustido. Tinha apenas aquele seu jeito de certinho, mas no fundo compartilhava da vadiagem de todos nós, e sabia que aquele conflito inteiro não tinha sentido algum. Mas ainda assim tinha que fazer o seu trabalho e seguir suas ordens.
  • Quem está nos esperando nesse tal ponto? - perguntou o cabo
  • Bom, me falaram que haveria um cara que pilotaria o barco. Mas não sei seu nome ou se haverá mais gente com ele.
  • Tomara que não, não temos tanto assim para dividir com toda a galera – gritou August Bruce de trás de uma árvore, aonde se aliviava um pouco
  • Dividir o que, soldado? - perguntou o gordo sargento, com um sorriso bobo no rosto, já sabendo qual era a resposta do subordinado
  • Um pouco do meu Napalm pessoal - e como numa mágica, e até hoje não sei explicar de onde surgiu aquilo, o soldado se virou da árvore e em sua mão havia um vistoso charuto de maconha.
  • Haha! É, caras, nada como usar a natureza no meio da natureza – comemorou o sargento
Nos sentamos em um círculo e o soldado acendeu seu charuto. Conversávamos sobre nossas casas, os estudos abandonados para estar aqui, garotas que tivemos e que não tivemos, fumamos, comemos, cagamos, rimos, lutamos, gritamos e fumamos mais um pouco. E depois conversamos mais e depois rimos mais e parecia que estávamos de volta em nossas cidades, com nossos amigos, conversando sobre qualquer coisa banal que parecesse interessante naquele lugar igualmente banal. E quando demos conta do tempo, o pôr do sol já se mostrava lindo e vermelho, boiando levemente por entre as árvores perfeitas daquele lugar que não saibamos mais se era uma prisão ou o nosso paraíso próprio.
  • Pois é, acho que teremos que ficar por aqui essa noite. Hehe – comentou Goldberg
  • Não. Vamos partir dentro de quinze minutos. Arrumem suas coisas rápido que não quero atrasar mais do que já estou atrasado – disse o tenente, claramente preocupado com o que pensariam dele se o vissem fumando maconha com seus homens, enquanto a ameaça comunista crescia e ganhava forças do lado inimigo
  • Ah, já atrasamos tudo o que tinha para atrasar mesmo. Vamos ficar logo aqui essa noite e amanha de manha, bem de manha mesmo, nós saímos – falou Pablo Valdéz, resumindo o que todos queriam falar
  • Não, não. Vocês pensam que isso aqui é o que? A escola de vocês? Chega atrasado a hora que quer, fumando o dia inteiro sem nada de ruim acontecendo? Isso aqui é guerra, meus homens. Vão arrumando suas coisas que a gente vai embora agora! JÁ!
  • Eu não vou – disse o sargento
  • É, andar quilômetros em busca de um barco pra sair por aí e levar tiro desses vermelhos não era exatamente o que eu tinha em mente pra esse final de tarde – August já se encontrava deitado em seu saco de dormir, com um cigarro em sua boca e uma pilha de lenha para uma fogueira ao seu lado
  • Como porras você conseguiu essa lenha? Do nada? - perguntei
  • Truques. Vamos ficar então?
  • Vão à merda todos vocês. Todos vocês – desistiu o submisso tenente
Todos pareciam felizes agora, e acendemos mais um baseado mais tarde, quando o Sol já tinha ido embora e uma Lua gigantesca aparecia no céu, iluminando nossas cabeças e nossas almas, e nossas áureas não pareciam tão sujas ou destruídas. Parecia que havia esperança para todos nós, de alguma forma ou de outra
  • Ei, Pablo, aposto que eu arrebentaria a sua BOCA! - disse para o cabo
  • Eu não acredito muito nisso, cara – riu
  • O que você acha, Ian? Seria algo interessante para se escrever, não? "O dia que quebraram a cara do cabo"
  • Certamente – e Ian realmente pegou seu caderno e começou a anotar algo que não pude ver o que era, pois Pablo Valdéz já se levantava e se preparava para uma luta comigo
  • Cinco minutos sem perder a amizade, meu velho – ele se preparava para a pancadaria
  • Pode vir!
Fomos um para cima do outro e socávamos o que conseguíamos acertar. O cabo tinha muito mais experiência do que eu em lutas, havia estudado uma ou outra anos atrás. Eu não havia lutado nada, nunca, apenas gostava de socar umas caras de vez em quando. Mesmo que isso significasse que me batessem o dobro depois. Trocamos alguns socos e ouvíamos os gritos ensandecidos do sargento, enaltecendo a minha ausente força e habilidade e tentando degradar a reputação do cabo.
  • QUEBRA A CARA DESSE MEXICANO SUJO, CARA! DERRUBA ELE NESSA MERDA, CARALHO! - gritava como um pai gritava para o filho durante sua luta de judô na escola
  • Aposto dois maços de cigarro no cabo – disse Gerald
  • Apostado! - sorriu August Bruce
Nesse meio tempo, Ian Goldberg rabiscava alguma coisa em seu caderno, mas não pareciam palavras. E era impossível se controlar com toda aquela bagunça de punhos voando e caídas no meio do mato úmido:
  • Vale chute? - perguntou o cabo, já com falta de ar
  • Ah, você sabe lutar, eu não sei dar chute.
  • Vale ou não vale?
  • VALE! - gritou o sargento, empolgado demais para torcer pra qualquer um dos dois
E de repente senti um impacto violento no meu peito, como se um búfalo tivesse dado uma cabeçada em mim, senti meus pés saindo do chão por alguns instantes e depois o chão duro como pedra na minha bunda. Foi tudo tão rápido que caí sem expressão nenhuma no rosto, não tinha percebido o que havia acontecido até ver todos rindo, o tenente Gerald passando dois maços de cigarros para o soldado e o sargento sulista caído no chão, tendo um épico ataque de gargalhadas com aquela cena incrível
  • Essa foi uma das melhores cenas de todos os tempos, rapazes – comentou o jornalista, que ainda fazia seus rabiscos e ria da minha cara, junto com todos os outros
  • Boa luta, meu velho – disse Valdéz, me ajudando a levantar
  • Hahaha, boa! - comentei, limpando a marca de sua bota da minha camisa – Bom, amigos, vou dar uma cagada lá atrás daquela árvore alí e depois irei dormir porque isso me cansou pra caralho.
  • Bem pensado. Vão todos dormir porque amanha sairemos antes do Sol nascer. E, por favor, me obedeçam pelo menos dessa vez – implorou Gomes
  • Ok, ok, ok. Já estava bem cansado mesmo, esses baseados e essa luta me cansaram – disse o sargento, antes de dar um bocejo longo e sonolento
  • Você não lutou nada, Eric – lembrou Ian
  • Vai pra merda, seu judeu. E belo chute, escurinho, se tivéssemos mais duzentos mil caras com sua força nas pernas, nem precisaríamos carregar esses fuzis pra cima e pra baixo
  • E aí onde ficaria a graça de estourar a cabeça de alguém com uma bala?
  • Bem lembrado, meu amigo, bem lembrado. Boa noite.
  • Boa noite
  • Até.
  • Vão se foder.
  • Amanha a gente acorda antes do Sol nascer, entendidos?
Ninguém mais respondeu. E se respondessem o tenente iria dormir de mal humor. Então apenas ficamos quietos e tentamos dormir, ainda trocamos algumas palavras e umas piadas antes do sono coletivo chegar, mas nada de interessante ou que valha a pena lembrar. Mas nós com certeza não acordamos antes do Sol.

IV
A manha veio tão depressa quanto a nossa vontade de nunca mais sair daquele lugar. Todos pareciam exaustos e não estavam nem um pouco dispostos a arrumar suas coisas às 5:00am, quando nem os pássaros estavam acordados ainda, nem os tigres ou os peixes. Merda, nem os chinas deviam estar acordados numa hora daquelas, e olha que eu realmente duvido que esses caras soubessem o que é ter uma noite de sono em uma cama quente, estavam prontos para qualquer uma a qualquer hora, queriam detonar nossas almas, queriam o país deles livres de nossas caras estranhas e preconceituosas. Queriam o país deles de volta. Para nós não fazia diferença o que eles queriam, não fazia diferença se estávamos lá ou em algum outro país pobre e subdesenvolvido, apenas estávamos lá, e não queríamos estar, ou no fundo queríamos. Mas ninguém falava muito sobre isso, apenas fazíamos o que nos era mandado fazer, menos o que o tenente falava, claro:
  • Por que não levantaram ainda, cazzo? - perguntou o nosso comandante Gerald Gomes, com suas coisas já arrumadas e se preparando para partir
  • Senhor, aconselho que o senhor relaxe um pouco e aproveite o Sol nascendo belo e amarelo por entre as árvores e... - começou Ian
  • Se começar com poesia você vai pra corte marcial.
  • Foda-se então.
O sargento, o soldado e eu estávamos entorpecidos por nossos sonhos ainda, não conseguíamos sair da cama nem aos chutes. Pablo Valdéz tentava nos estimular.
  • Bando de inúteis, vem pra cá pra fazer merda nenhuma
  • É complicado, brother, esse sono te pega como uma ninfomaníaca – falei sem nem saber o que falava
  • Levanta logo, cara, o tenente vai começar a falar um monte e eu não quero ficar ouvindo de graça. Sargento, o senhor poderia, por favor, levantar o seu RABO GIGANTE?! - gritou, acordando o sargento com um pulo, provavelmente tirando-o de um sono ou de um pesadelo terrível
  • A próxima vez...você me acordar assim...morte. - disse quase sussurando e com seus olhos fechados por ramelas amarelas e gigantes, parecendo mais um zumbi apodrecido do que um militar de carreira.
Ian Goldberg já se aprontava, pegava suas coisas, seus papéis, revistas, objetos de trabalho e tudo o que tinha. Lembrando um vendedor ambulante tentando ganhar a vida no meio do mato. Cantarolava canções que só ele conhecia ou que só ele lembrava que existiam enquanto fazia suas coisas e dava uma urinada longa e amarela na grama:
  • Eu não aguento mais ficar um minuto aqui, vamos logo pra esse barco – disse
  • Você acha que a gente vai chegar nesse lugar ainda essa manha? - perguntei para Eric
  • Se depender da nossa vontade no momento eu acho improvável. Mas vamos logo, também já enchi o saco desse lugar, quero andar um pouco e ver se consigo acertar uns macacos nas árvores.
  • Achei que você gostasse dos animais...
  • Eu gosto. Me referia aos japas mesmo. -disse dando o seu primeiro sorriso maluco do dia e depois de mais cinco minutos de enrolação, partimos. Cada um em seu ritmo, acordando aos poucos para aquele dia que simplesmente não fazíamos ideia do que poderia acontecer no próximo minuto.
Já andávamos depressa, ouvindo Gomes nos apressando de tempos em tempos, dizendo que estávamos preguiçosos e que não havíamos nascido para um conflito entre humanos. Ninguém dava muita atenção ao que ele falava, já estávamos andando para o barco e já era muito mais do que ele poderia esperar de todos nós. O sargento ia atrás de nós, ao lado do cabo Valdéz, conversando sobre alguma filosofia furada que deviam ter inventado na noite passada, enquanto fumavam e viajavam em pensamentos leves e rápidos. Pareciam bem empolgados e riam um do outro de vez em quando, se xingando e xingando aos outros que estavam e os que não estavam ali também. O jornalista Goldberg estava logo à frente, ao lado de August, vira e mexe trocavam algumas palavras, mas na maior parte do tempo ele parecia estar se concentrando em algo, em alguma reflexão própria, ou mais alguma filosofia barata. Tanto que se juntou aos outros dois malditos minutos depois, saindo de formação enquanto o comandante do pelotão não olhava e, mesmo se olhasse, não mudaria nada.
O dia já se mostrava por completo quando avistamos fumaça vindo do oeste. Uma fumaça preta e amedrontadora, dando a certeza na cabeça de todos de que alguma coisa não estava muito certa por aqueles lados. Talvez um ataque surpresa dos nativos em cima de algum acampamento improvisado na noite anterior, talvez o Sol de verão tivesse incendiado um pouco de mato seco e o fogo não fosse nada. Talvez fosse napalm e a essa altura quem estivesse por lá já haveria carbonizado até o último resquício de sua alma, sendo inútil nossa ida até lá:
  • Devemos ir até lá, tenente? - perguntou Goldberg
  • Seria bom irmos, mas é muito fora do nosso caminho, não sei se podemos nos dar ao luxo de ir até lá para voltarmos – esclareceu o comandante, com um notável dilema em sua voz
  • Não é nossa missão, tenente. - interrompeu o sargento do sul - E aposto que não tem mais nada por lá. Talvez alguns corpos e muita cinza, mas não haverá mais nada por lá além disso.
  • É, vamos logo para esse barco. Você mesmo, tenente, tinha dito que estamos bem atrasados, não é? - Bruce também não demonstrava muito interesse em sobreviventes
O tenente português parou um instante e olhou para o oeste, seu rosto era uma mistura de duvida e vontade de fazer seu dever. Não sabia muito bem o que fazer, a fumaça não parecia tão distante, se ouvisse algum barulho de tiro ou alguma explosão certamente já estariam à caminho. Mas a fumaça escura dançava pelo céu bem tranquila e densa, como se dissesse para seguirmos reto porque não havia mais nada por lá, nada além de uns corpos e muita cinza, como havia dito o sulista:
  • Vamos para o barco -disse, depois de hesitar por alguns instantes
  • O senhor é um sábio, senhor – falou o sargento, levantando o capacete para cumprimentar o seu superior.
Seguimos adiante sem olhar mais para a fumaça, e não trocamos mais muitas palavras até chegarmos ao barco, que já estava bem próximo. Não falamos sobre e não olhamos para o oeste novamente nem quando ouvimos duas rajadas secas e altas vindas de lá. E o tenente Gerald Gomes ainda perguntava para si mesmo se a decisão que tomou foi a certa, mas sabia que não nos convenceria de ir até lá, de qualquer forma.

V
O barco era bem pequeno e, quando o avistamos de longe, começamos a reclamar que nem um bando de velhas, dizendo que não há espaço nem para um cagada, o que dirá se houvesse uma troca de tiros. Ele estava parado em frente ao rio, sem nada ou ninguém por perto, sem uma cabana com o piloto ou uma pequena base. Apenas uma corda amarrada em um toco para segura-lo e mais nada. Imaginei que devíamos apenas entrar e partir, que não haveria mais ninguém ou que a pessoa que deveria estar nos esperando já havia ido embora, ou estava morta em algum canto no leito do rio.
  • Mas olhem só que grande porcaria – reclamava Eric – Seis caras dentro dessa lata de sopa? Aonde esperam que a gente dê uma cagada? A gente vai dormir em cima da própria merda?
  • Caga na sua mão – retrucou o jornalista
  • E depois enfio no rabo quente da sua mamãe.
  • Acho que o senhor perdeu a sua maturidade em algum lugar no meio desse país, senhor. - ironizou o judeu
  • Eu pedi pra sua tia guardar dentro da buça dela, quando eu sair daqui eu vou lá e pesco com o meu pau de novo.
  • Cara, você é um idiota. Um completo e perfeito de um idiota – disse Pablo Valdéz, claramente irritado com a situação do barco – E esse sujeito que devia estar aqui, nos esperando?
Olhamos para os lados e ainda não havia ninguém por perto, nenhum som além dos pássaros cantando para todos os lados que se olhava e a natureza tentando sobreviver, como sempre o fez. August pulou dentro do barco e procurou indício de luta ou algo do tipo, não havia nada além das metralhadoras presas ao barco, uma mochila estrupiada e um amontoado de pequenas garrafas vazias de rum, largadas ao lado do leme:
  • Será que deixaram algumas dessas para a viagem? - indagou o soldado com um sorriso esperançoso nos lábios
  • Há muitas mais dessas aqui embaixo – disse uma voz rouca e cansada vinda do fundo do barco e que fez o recruta sair do barco com um pulo tão alto e rápido quanto o que o colocou lá dentro
  • QUE PORRA É ESSA? QUEM TÁ AÍ? - gritou e todos apontaram seus fuzis para o mesmo buraco que havia passado despercebido pelo rapaz durante sua rápida vistoria pelo barco
  • Calma, calma. Deve ser o sujeito que vai nos levar até esse lugar aí que devemos ir – disse o tenente, tentando acalmar a todos que ainda estavam atônitos pelo susto – Ok, cara, suba logo e saia daí antes que algum desses loucos joguem uma granada aí dentro
Os passos vinham lentos e arrastados pela escada, provavelmente o sujeito tinha acabado de acordar e estava em uma ressaca violenta à julgar pela pilha de garrafinhas de rum que havia deixado lá. August ainda estava com as batidas de seu coração rápidas e assustadas quando a luz do Sol revelou um sujeito com pelo menos metade de nosso tamanho e o dobro de nossa idade, semi nu e com a barba por fazer, precisando claramente de um banho ou de mais uma garrafa de rum.
  • Bom dia, tenente Gomes. Desculpem o meu estado, é que vocês não chegaram ontem e não tinha mais nada para fazer durante a noite a não ser beber e beber e beber – disse com um sorriso mostrando seus dentes e a baba seca que revelava uma noite muito bem dormida – Meu nome é Aldous Bhatnagar, apenas Aldo, por favor.
  • Ok, huum...e o senhor Aldo acha que está em condições de nos levar rio acima? Não parece muito saudável no momento – respondeu o tenente
  • Oh, garanto que estou na mais perfeita condição para levar os senhores para onde precisarem ir. Preciso apenas achar minhas calças e comer um pedacinho de pão ou qualquer outra coisa para tirar esse gosto ruim da boca. Vocês por um acaso não teriam uma boquinha aí com vocês? Não creio que haja alguma coisa para se comer nesse barco
Demos comida ao homem e já almoçamos todos juntos, dávamos garfadas vistosas nos enlatados e mordíamos o pão com gosto e pressa, ainda não havíamos voltado a comentar sobre a fumaça que ainda rebolava, com menos força, pelo céu:
  • Hum...você sabe o que aconteceu com essa fumaça toda aí, senhor Blablaganar? - perguntou o sargento com a boca cheia de comida
  • Bhatnagar, sargento. Aldo é melhor...
  • Tá, tá. Aldo, sabe o que foi?
  • Na hora que percebi o fogo eu já estava muito bêbado e imaginei que poderia ser loucura da minha cabeça. Mas ouvi alguns tiros vindo de lá por um momento e depois pararam, não lembro muito bem do que aconteceu em seguida, só de ter acordado com vocês por aqui.
  • Não sabe se tinha algum pelotão por lá? - quis saber o tenente
  • Não sei de nada, me mandaram esperar por vocês aqui e eu esperei desde ontem de tarde, como vocês não chegaram eu comecei a beber pra não morrer sóbrio caso alguém viesse aqui cortar minha garganta durante a noite.
  • Teria feito o mesmo – comentei
Terminamos de comer e nos aprontamos dentro do barco. Aldo foi procurar suas roupas e os rapazes deitavam em qualquer canto que encontrassem para tirar uma soneca depois do almoço, finalmente aliviados por terem chegado aonde tinham que chegar e não precisarem mais andar no meio da selva. Pode-se dizer que o dia estava perfeito, verde e claro, com natureza pura ao redor de nós, com a água do rio sem fim cristalina e calma. Com nada interrompendo a beleza do mundo naquele momento, apenas a mancha escura e dançante no céu, que ainda ignorávamos e já não nos fazia diferença quem havia estado lá e quem havia morrido lá. Aldo voltou com suas calças vestidas e seu boné na cabeça, deixando seu peito negro e marcado por algumas tatuagens borradas reluzir no Sol do meio dia:
  • Ei, Aldo, você tem mesmo mais algumas daquelas garrafas lá embaixo? - perguntou o sargento tentando disfarçar
  • hahaha, sim, sargento. Ainda há algumas caixas lá.
  • Caixas? Acho que vamos nos entender bem, meu amigo escurinho. - riu Eric
  • Assim espero, senhor – riu de volta Aldo, ligando os motores do barco que acordou e fez um bando de pássaros sair voando de algumas árvores com o barulho.
O nosso transporte ia rasgando as águas do rio com suavidade e velocidade, acompanhando a vibração do lugar com o vento em nossos rostos e um Sol forte em cima de nossas cabeças, torrando nossos couros e nos cozinhando por dentro.
A tarde passou rapidamente por nós, que não fizemos ou testemunhamos nada de interessante naquelas horas em que o dia estava forte e vivo. A nossa missão até agora parecia muito sossegada e todos estranhávamos isso, em nossas cabeças achamos que a coisa ficaria preta pra cima de nós. Achamos que o inimigo era astuto e não tinha descanso, uma máquina de matar do seu país, sem diversão ou mulheres nos tempos livres, como nós fazíamos sempre que possível. Mas apenas quando a noite e a Lua já pendiam em nossas cabeças é que fomos entrar em algum tipo de contato com o exército inimigo:
  • Algum de vocês ouviu um barulho? - perguntou Bruce
  • Bom, eu ouço muitos barulhos toda hora por aqui. Estamos no meio de uma maldita selva, August! - respondeu Goldberg
  • Não, não. Eu sei reconhecer um barulho da selva com um barulho...estranho. Era como se alguém estivesse gritando lá no... - e parou quando ouviu, e dessa vez todos nós ouvimos com ele, um grito claro e furioso vindo de algum lugar no meio daquelas árvores enegrecidas pela noite
  • Cacete, que grito do inferno foi esse? - Eric parecia assustado com o que ouviu
  • haha, está com medo de uns gritinhos no meio do mato, sargento? - brincou Pablo – São apenas macacos, seus idiotas.
  • Mexicano, não abra a boca porque eu te jogo no meio daquele mato para os macacos brincarem de esconder o mico em você. QUEM É QUE TÁ GRITANDO AÍ? - berrou o sargento com toda a força de seus pulmões e uma porção de animais gritou de volta de dentro da floresta, junto com os gritos furiosos vindos de um lugar cada vez mais perto
  • Parece que agora há mais deles! O que será que eles querem, cara? - perguntou Bruce indo para trás da .50 na proa do barco e se preparando para abrir fogo.
Todos nos posicionamos e tentamos enxergar algo no meio daquele breu total que se fazia na selva à frente, com o silêncio perfeito da noite e da natureza sendo quebrado rudemente pelos gritos de raiva e sangue que pareciam cada vez mais numerosos e mais próximos:
  • Sargento, fique na M60. Cabo Valdéz, fique de olhos bem abertos ao lado de Ian para qualquer movimento. Aldo, fique abaixado se ouvir qualquer barulho – ordenava Gomes
  • São apenas macacos, tenente. Não me parece com um... - ia começar o cabo
  • POR QUE VOCÊS NÃO APARECEM LOGO, SEUS CRETINOS? O QUE ACHAM DE MOSTRAREM SEUS RABOS AMARELOS PRA GENTE BRINCAR DE TIRO AO ALVO AQUI, HÃ? - ainda berrava o furioso sargento – GRITEM PRA ISSO AQUI ENTÃO! - e sentou seu dedo gordo e maluco no gatilho da metralhadora, liberando uma longa e ensurdecedora rajada que cortou a noite e a selva, abafando os gritos dos supostos humanos e dos outros animais ao redor.
  • Sargento, mas o que é.... - começou o tenente e parou de repente – Ahhhh...FOGO!
E uma luz intensa saia de nosso barco, a luz amarela de fuzis e metralhadoras rasgando o ar e as folhas das árvores, perfurando troncos e corpos de pequenos animais inocentes, que não tinham nada a ver com aquelas nossas diferenças que nem nós mesmos sabíamos quais eram. Atiramos até esvaziarmos nossos pentes, até o último projétil do cinturão de balas da M60 na traseira do barco ser disparado, até nossas retinas queimarem com a claridade repentina que os tiros produziram em nossos olhos. O sargento Eric von Demark parecia se deliciar com sua metralhadora, gritando maldições e cuspindo para todos os lados, sua risada acompanhando a batida da metralhadora em seus braços; August fechou a cara e apenas cuspia as balas para todas as direções que achava ter visto algum vulto. E por mais de alguns minutos não se ouvia mais nada naquela área além dos barulhos secos e apressados das balas zunindo para lá e para cá, não acredito que do outro lado tenham disparado um só tiro se quer, isso se havia realmente alguém do outro lado:
  • Parem, PAREM! - gritou o nosso comandante – Meu Deus do céu! O que foi isso?
  • Acho que acabamos de matar metade da fauna do Vietnam, cara! - disse Ian quase gritando, ainda surdo pelo barulho dos tiros em sua orelha
O silêncio havia voltado a reinar na selva fechada, nenhum som, nenhum ruído, nem o farfalhar das folhas pela brisa noturna. Os animais ou haviam se escondido, ou estavam apavorados demais para fazer qualquer barulho ou estavam todos mortos, pelo menos todos os que estiveram no alcance de nossas miras e canos soltadores de relâmpagos.
  • Eu acho que matamos tudo o que tinha vida por aqui – disse Pablo
  • Mas alguém está ouvindo mais alguma coisa? - perguntou Bruce
  • Não, mas havia alguma coisa para se ouvir? Eu disse que eram macacos, cara!
  • Não eram macacos, macacos não se comportam e nem gritam do jeito que aquelas coisas gritavam – respondi
Os canos de nossos fuzis ainda fumegavam, o chão do nosso barco parecia mais um festival de cartuchos disparados, havia um verdadeiro oceano de cápsulas nos nossos pés, tilintando a cada movimento que fazíamos lá dentro:
  • Aldo, você ainda está vivo aí? - perguntou o sargento
  • Sim, senhor. - respondeu, levantando de onde estava abaixado
  • Ótimo. Acho que essa é uma boa hora para começarmos a matar algumas daquelas garrafas, não acha? - sugeriu erguendo uma das sobrancelhas
  • Com toda a certeza, sargento! - e desceu com um pulo as escadas que davam para a parte de baixo do nosso meio de transporte, voltando uns instantes depois com uma caixa repleta de pequenas garrafas de rum porto riquenho. Eric sorriu e se serviu de uma das garrafas, seguido dos outros e de mim, que certamente precisávamos de uma bebida depois de quase termos perdido nossas audições.
  • Hehe, essa aqui é por uma noite melhor, rapazes! - brindou o sargento, matando sua garrafinha com um único e vistoso gole, jogando-a no rio como se estivesse arremessando uma bola de baseball
E assim foi o fim de nossa primeira noite nos embrenhando rio acima, bebendo rum e atirando em bandos de macacos que deviam estar querendo apenas acasalar. Ou talvez fossem os japas e tivéssemos liquidado a todos. Sim, melhor essa versão de como terminar a primeira noite.

VI
Acordamos novamente de ressaca e novamente com o Sol cozinhando nossos miolos. O céu já apresentava alguns vestígios de nuvens espalhadas, e isso só podia indicar de que as chuvas fortes do verão estavam para chegar, e isso com certeza não seria de ajuda alguma para nossa missão.
Aquele dia veio e se passou como uma brisa. Não havia nada para se fazer além de olhar para os pássaros e outros animais daquela região e litros e mais litros de água daquele rio que não parecia mesmo ter um fim. Os rapazes ficaram tomando Sol e dando bicadas nas garrafas de rum, respeitando pelo menos a ordem de Gerald de não ficarmos bêbados o dia inteiro. O único que parecia não ligar para isso era Aldo. Ficava no leme o dia inteiro e o dia inteiro estava dando golinhos em seu cantil de metal que deixava dentro do jaleco ou no cinturão:
  • Olha esse calor! Porra de Sol! Quanto tempo falta ainda nesse barco? - protesta o sargento
  • Bom, temos ainda cerca de um dia e meio ou dois até o destino de vocês. Isso é, se tudo der certo e passarmos só por uma ou duas emboscadas desses chinas – Aldo deu uma risada cadavérica e um gole no cantil metálico
  • Menos mal, achei que ficaríamos uma semana nessa lata de anchovas!
  • Que horas são? - perguntou Goldberg
  • Cerca de 16:10, por aí. - respondeu Aldo olhando para seu relógio de bolso todo estrupiado
  • Acho que é hora de fumar um baseadinho. O que acha disso, sargento? - sorriu Pablo
  • É, nada melhor para se fazer por aqui mesmo.
O sargento puxou um saquinho do seu bolso da camiseta e tirou um pouco da erva que tinha lá:
  • Você só tem isso? Não vai ter pra viagem de volta – lembrou o cabo
  • O August deve ter um pouco ainda. Cadê ele?
  • Dormindo – Ian escrevia suas anotações em um monte de papéis, nenhum de nós sabía como se mantinha organizado.
Eric jogou a maconha na seda e começou a apertar o cigarro. O final da tarde estava realmente lindo e logo menos o Sol iluminaria pela última vez no dia toda aquela paisagem natural, toda a selva e todo o rio pareceria um mar de fagulhas laranjas infinitas.
  • Sabem, essa vista está linda demais para podermos aprecia-la apenas com um pouco de erva – o sargento sorriu
  • O que tinha em mente? Encher a cara de novo? - Pablo achava que conseguiria encarar mais umas doses antes de terminar o dia
  • Meu estômago tá todo fodido, caras. Vou ficar só no fuminho mesmo – disse Ian que ainda sofria de uma ressaca crônica da noite passada
Eric von Demark riu enquanto terminava de bolar a maconha e procurava seu isqueiro. Acendeu o baseado, deu apenas um trago e falou:
  • Volto já.
Ficamos lá fumando e imaginando o que diabos ele foi procurar lá embaixo. Ouvíamos o barulho de caixas e de molas de cama rangendo. Ouvíamos isso misturado ao ronco alto do tenente Gerald Gomes, que havia passado a noite inteira lendo sobre os caras que tínhamos que apagar e bebeu muito mais do que de costume. Estava oficialmente desmaiado por lá. Fomos passando a erva, apreciando aquela vista que o oriente nos proporcionava e ouvimos os passos arrastados de Eric e de mais alguém vindo com ele, alguém que também vinha a passos arrastados e preguiçosos, imaginamos que fosse o tenente, mas Eric e August subiram as escadas e o sargento estava com uma porção de garrafinhas de rum nas mãos e um baralho de cartas saindo do bolso da camisa:
  • Não vou beber não, cara – repetiu Ian
  • Também não vou. Minha barriga ainda está ruim de ontem – falei sem fazer ideia do que Eric realmente queria
  • Relaxem, irmãos. Vamos jogar umas cartas, pitar esse fumo e tomar um pouco de rum – o sargento sorriu
  • Eu tomo numa boa – Pablo se sentou e pegou as cartas
  • Eu tomo também, vai. - mandei o estômago para o inferno de uma vez
Segundos depois todos estávamos bebendo e embaralhando e fumando e jogando:
  • August, o que acha de colorirmos as coisas por aqui? - o sargento disse passando o baseado para Valdéz
  • Eu acho que é a coisa certa a se fazer – os dois eram cheios desses teatrinhos antes de aprontarem alguma merda que envolveria a todos nós
Todos olharam Eric enfiar as mãos gordas no bolso da calça e tirar de lá de dentro um pequeno frasco marrom escuro tampado por um conta gotas. Tirou a tampa e pingou uma diminuta gota dentro de sua garrafa de rum e passou o frasco para o soldado
  • Uma gota apenas e passem para o próximo – disse
  • Isso é o que eu acho que é? - Pablo soltava muita fumaça pela sua boca que se abrira num sorriso
  • Exatamente, meu caro amigo imigrante – Eric deu um grande gole no seu rum batizado
  • Ácido? Onde vocês acharam isso no meio dessa merda toda? - Ian não escondia sua surpresa
  • Não importa como. Importa que estamos aqui agora e esse pôr do sol será fascinante demais para o vermos sóbrio.
Bruce já havia pingado sua gota e passou o frasco para o cabo:
  • Valdéz, seu que você é meio doidinho, mas é só uma gota disso! Essa coisa aí é poderosa, não é qualquer porcariazinha que se acha no meio da rua. Isso vai te levar pro espaço – alertou o sargento
  • Eu acho que não vou tomar hoje. Se a coisa ficar feia por aqui eu não quero estar doidão e perder a cabeça – falei com preocupação na voz
August Bruce riu de minha preocupação e disse:
  • Cara, a gente pode nem estar vivo amanha a essa hora. Foda-se se a coisa ficar feia. Se ficar a gente mata todos eles doidões de LSD! Hahaha
  • Não sei, não sei – ainda calculava os prós e os contras disso tudo quando o frasco chegou em minhas mãos e fiquei olhando para ele com uma grande duvida na cabeça
Apertei o conta gotas e uma gota caiu dentro da minha pequena garrafa de rum porto riquenho
  • Ei, cara. Uma gota só já está bom! - lembrou-se o soldado quando já estava prestes a cair a segunda gota na garrafa
A maconha ainda rolava naquela rodinha de cartas e drogas e Aldo apareceu de repente no meio de nós e pediu uns tragos no fumo e pegou uma das garrafas que estavam fechadas aos pés do sargento para preencher o seu cantil
  • Aldo, não quer um pouco disso? - perguntou o sargento esticando o frasco marrom para o piloto
  • E o que seria isso, senhor? - parecia intrigado
  • Algo que o fará ir para as estrelas, meu velho.
  • Ah, muito obrigado, sargento. Mas já estive nas estrelas uma vez, voltar para lá pode fazer um cara enlouquecer para sempre!
Ninguém entendeu o que Aldous Bhatnagar quis dizer, mas achamos melhor não drogar o cara que nós dependíamos inteiramente para chegar até o nosso destino. Continuamos jogando cartas e bebendo as garrafas de rum com algo a mais, jogamos e bebemos e fumamos uns cigarros que alguém tinha por lá e todo aquele ácido não havia dado efeito nenhum em nossas cabeças, mas também não sabia se estava chapado com a maconha que havíamos fumado e não percebia o efeito do lsd vindo. Esperamos por mais de quarenta minutos e o final da tarde já começava a ficar no ápice de sua perfeição. O laranja e o vermelho se misturavam de uma forma simplesmente única, o fogo da natureza se misturava com o verde da mesma, o rio e seus litros de água pareciam o espelho mais verdadeiro do mundo naquele momento. Havia mais aves do que o normal cantando naquele momento e tudo ao nosso redor parecia ser pura Natureza e simetria. Me sentia estranhamente bem no meio de todos aqueles caras potencialmente loucos no meio daquela guerra completamente insana e estúpida. Jogava as cartas mas nem percebia o que estava jogando, queria mesmo era continuar ignorando toda aquela guerra e dar risadas com aqueles caras, ali e naquela hora e foda-se o que viria depois, a glória ou a tortura de nossos corpos. Pensava em muitas coisas naquele momento e não me lembrava mais do ácido vindo ou não, não sabia se aquilo era mesmo ácido ou se Eric só estava de gozação com a nossa cara, estávamos todos olhando para os lados para ver se víamos alguma coisa diferente e nada, apenas nossas mesmas caras e aquele crepúsculo unicamente vivo e claro. Tentei deixar aquilo de lado, terminei meu rum e joguei a garrafa no rio, as ondas que se formaram na água pintaram círculos suaves e perfeitos, lembrei de Van Gogh por algum momento e olhei para o Sol novamente. Sua cor estava mais viva do que nunca, aquele era com certeza o final de tarde mais lindo que eu via em muito tempo, revoadas de pássaros passavam em frente à luz solar e saiam de lá intactos. Eu ri com aquela cena e voltei a olhar para o rio e seus litros e mais litros de água, e haviam ondas gigantescas agora...Espere, ondas? Ondas? Ondas gigantescas em um rio parado? Não comentei nada com ninguém e apenas fiquei vendo aquelas ondas atrás de nosso barco ficando cada vez maiores e mais transparentes, e cada vez mais pássaros pareciam entrar pelo Sol e sair de lá intactos e aquilo não me parecia muito certo. Pensei que tudo fosse coisa do meu cérebro sendo sugestionado a crer que estava louco, já tinha quase certeza que aquele ácido do Bruce e Eric eram alguma balela dos dois só para darem risada de nossas caras. Mas aquelas ondas ainda pareciam fascinantes demais para eu me atrever a olhar para trás e avisa-los daquilo, achei também que eles não fariam questão de ver ondas em um rio, não sei porque pensei isso, mas pensei. Desviei meu olhar das águas e olhei para um canto da selva que achei ter ouvido um macaco gritando. Ouvia cada vez mais de perto um bando de macacos se aproximando, mas não sabia ao certo se estava realmente ouvindo aquilo, apenas apertei minha vista o máximo que pude em direção a algumas árvores e vi arbustos se mexendo. Abri a boca e abafei um grito de desespero quando um bando de macacos saiu de dentro das árvores, mas estavam todos despedaçados. Estavam todos ensanguentados e com as cabeças e membros estourados ou completamente mutilados, gritavam e apontavam para dentro do barco, olhando para mim com toda a fúria selvagem que tinham, alguns carregavam pedaços de seus corpos nas mãos e outros tinham filhotes mortos em cima de seus pescoços. Entrei em um pânico tão absurdo que simplesmente não conseguia me mover, respirar ou falar nada. Simplesmente havia travado com aquela visão, eles iam pegar e iam me devorar, morder meu pescoço e me deixar sangrando até a morte no meio daquela selva. Eu teria realmente perdido a cabeça se Ian Goldberg não tivesse quebrado o silêncio absoluto que todos nós nos encontrávamos há mais de dez minutos e não havíamos nos dado conta disso:
  • Meu Deus, o que foi aquilo na...
  • Selva?! Os macacos? - interrompi claramente desesperado
  • Não, na água. Tem alguma coisa na água, cara
  • O que? - perguntou Pablo olhando para fora do barco
Eric riu de nossas caras e disse:
  • Vocês já estão todos muito loucos, hahaha
  • Eu juro que vi uma coisa passando por baixo do barco, algo gigante.
  • Você está ficando louco. Ninguém viu o banco de macacos que estava prestes a pular no barco e acabar com a nossa raça? - falei quase gritando em pânico – Eles estavam ali agora pouco, cara, é sério! Cadê eles? ESTÃO SE ESCONDENDO DE NÓS? - eu estava perdendo a lucidez
  • Heey, cara, acalme-se! Isso aí é o lsd fazendo efeito, a gente falou que uma gotinha só te levaria pra outro mundo, não é? - Bruce levava um sorriso tão aberto em sua boca que parecia que ela estava prestes a rasgar nos cantos
  • As cores tem tanta vida nesse momento, meu – Pablo estava olhando para todos os lados, como se quisesse absorver toda a energia que conseguisse daquele lugar e daquele fim de tarde
Aldo ouvia a nossa conversa do leme e ria de nossa reação às drogas em um lugar daqueles:
  • Sabem, vocês não podem deixar isso levar a mente de vocês em um lugar assim. Vocês nunca mais voltam depois, sabiam? - e Aldo riu de nossas caras
De alguma forma nossas caras pareciam mesmo diferentes. Olhava para cada um dos rapazes ao meu redor e cada um parecia mais intenso e único. A sensação que sentia naquele momento era tão única que queria apenas abraçar aqueles caras e jogar cartas e rir o dia inteiro e depois tomar mais desse ácido violento, fumar e beber até tudo o acabar, a noite ou o universo. Tanto fazia.
As horas foram se passando e as cores estavam mais vivas do que nunca em nossas cabeças. Alguém havia ligado o rádio em uma estação de rock e dançávamos conforme nossos espíritos dançavam. Estávamos sem camiseta, dançando na proa do barco, gritando e rindo que nem loucos. O sargendo Eric, enquanto isso, estava na popa, em posição de Lótus e meditando que nem um porco pelado. Os últimos resquícios do dia batiam na água que parecia coberta por fogo e refletiam no rosto e no peito do sargento, que parecia estar num estado de extase perfeito:
  • Sargento, como vai o senhor nesse momento? - perguntei, tirando-o do seu transe
  • Bem, cara, simplesmente bem- respondeu rindo – sabe, tomei mais umas gotas dessa belezinha
  • UMAS gotas, sargento? Quantas exatamente?
  • O soldado Bruce e o cabo tomaram mais uma cada um. Eu pinguei mais duas no rum e uma no olho pra ver se enxergava as coisas de um modo diferente
  • Três, senhor? Não acha que vai ficar muito pirado das ideias? Com uma gota só eu já estou vendo tudo bem diferente – ignorei a gota de ácido no olho
  • Sim, essa é a intenção – Eric riu que nem um doido varrido, abrindo um sorriso que engoliria a selva e arregalou os olhos de uma forma que roubaria os últimos raios solares
Olhei para o lado e vi Ian e August com um sinalizador na mão cada um
  • Lá vai! - gritou August e acionou o sinalizador que começou a jorrar uma densa fumaça amarela, cobrindo todo o seu corpo
Todos rimos e ficamos vendo a fumaça iluminar o final do crepúsculo, uma cortina de loucura no meio daquele país, no meio daquela guerra, no meio da maldita selva. Em seguida foi a vez de Ian e sua fumaça era roxa e soberana à amarela. A mistura das duas fazia tudo parecer tão estranhamente colorido, nossas pupilas dilatadas pareciam receber mais luz e realidade do que nunca antes:
  • Isso é lindo, cara. Nada pode ser mais foda do que essa visão nesse momento – o jornalista tentava pegar a fumaça com as mãos
  • É, cara. Eu acho que tô chapado demais – Pablo surgiu no meio da fumaceira que agora já era quase inteiramente roxa
  • Acha? Hahaha, eu com certeza estou! - August arremessou seu sinalizador longe
  • Cadê o sargento? - perguntou Goldberg
Levantamos todos e fomos para a parte de trás do barco. Eric estava deitado no chão, rindo sozinho e sem camiseta, suas pernas ainda estavam cruzadas e ele apontava e fazia gestos estranhos para as estrelas
  • Olhem as estrelas, soldados. Elas estão perfeitas. Estão ligadas ao meu cérebro hahaha
Seus olhos estavam completamente dilatados e seu rosto tinha uma expressão de alegria tão natural que não sabíamos dizer se ele havia encontrado a felicidade absoluta ou se tinha enlouquecido de vez.
  • Por que ele está deitado aí? Bêbado de novo? - Gerald havia acordado e ninguém notara que ele estava do nosso lado
  • Tenente! Não, não estamos bebendo! Hahaha - riu o sargento
  • Então o que? - Gerald parecia irritado, seu estômago devia estar doendo ainda
Olhamos um para o rosto do outro, um vendo o rosto do outro distorcido e colorido de alguma forma impossível de se explicar. Pablo e Ian não se aguentaram e soltaram uma gargalhada, seguido por Eric que agora levantava do chão e se via cercado por todos nós. Aldo assistia a toda a cena lá do leme e ria sozinho, "Essa garotada, haha", pensou e continuou a olhar para o rio que agora já se encontrava no escuro quase que total.
  • O que foi que estão rindo a tarde inteira? Acordei umas cinco vezes e dormi que nem merda, porra! - Gerald parecia bem estressado dessa vez
  • Tenente, bom, a verdade é que... - Pablo ia começar a explicar mas foi interrompido pela objetividade da resposta de Aldo
  • Eles tomaram uma quantidade exorbitante de um poderoso LSD concentrado, senhor – e gargalhou de sua cabine
  • O que?! É verdade isso, sargento? - berrou, puto
  • Sim, senhor! - o sargento bateu uma continência sarcástica que tirou o riso de alguns de nós
Na verdade, o sermão que ouvimos do tenente Gerald Gomes naquela noite, sobre como eramos inconsequentes e que havíamos colocado a vida de nós mesmo e, principalmente, a dele próprio em risco não nos interessou. Ouvimos por vários minutos ele falando muitas coisas que nenhum de nós estava realmente prestando atenção e, no final, ele dirigiu todo um discurso à nossa falta de respeito para com o nosso superior e que o sargento Eric von Demark não tinha mais limites e um dia iria se afundar na própria loucura e miséria. Essa parte todos nós concordamos, inclusive o sargento.

VII
A noite já estava na metade e o breu era completo, assim como o efeito daquilo em nossas mentes. Eric, Pablo e August ainda estavam completamente alucinados, sobretudo o sargento, que não parara de falar desde a hora em que o tenente terminou seu sermão. Falava sobre qualquer coisa que poderia falar e parecia que seu estoque de palavras não terminava. O rádio ainda rocava uns rocks antigos e todos viajávamos no som, alguns olhando as estrelas, outros limpando seus fuzis e Gerald lia algum livro com a sua lanterna nas mãos. O breu era total e o único som que ouvíamos, além dos Beach Boys tocando no rádio, eram os incontáveis insetos e animais noturnos lá naquela selva negra. Ian desenhava personagens e paisagens abstratas em seus papéis e sua sensibilidade para com o mundo parecia estar muito maior. Seus desenhos estavam quase ganhando vida, a simetria de tudo era simplesmente inesquecível. Começamos a nos juntar ao redor e ver seus desenhos. Acontece que ele estava o tempo todo desenhando e não havia escrito praticamente nenhuma palavra, quando muito tinha feito umas anotações em seu diário e só:
  • O que você vai falar quando voltar com um monte de desenhos e nem uma palavra no papel? - perguntei
  • Eu me viro depois. Não ia deixar de aproveitar esse ácido mágico e não desenhar um pouco, hehe
O silêncio e os desenhos foram interrompidos por um ribombar a alguns quilômetros de distância rio acima. Nosso caminho. De repente, a noite e o breu eram cortados por clarões coloridos lá em cima das árvores e todos nós já sabíamos que, finalmente, a coisa ficaria feia
  • Eu estou muito louco ou aquilo é um bombardeio? - Pablo estava surpreso e as explosões brilhavam em seus olhos
  • É, sim. Deve estar há uns cinco ou seis quilômetros subindo o rio – Aldo respondeu com seus binóculos em mãos
Olhamos novamente um para o outro e nenhum de nós fazia ideia do que pensar ou o que fazer naquela situação. A verdade era que metade de nós nunca havia estado em combate e a metade que havia lutado estava em estados alterados de percepção naquele exato momento. Mas isso não impediu Eric de sair correndo à procura de seu fuzil e o resto de sua farda, pelo visto estava esperando aquele bombardeio há semanas demais já e nem tentamos lembra-lo que ele estava altamente alucinado naquele momento:
  • Olha isso, bicho! É lindo demais! Quero ver acertar uns japas vendo todas essas luzes, cara!
Sua voz soava como a de um louco e seu olhar era frio e iluminado pelas luzes que piscavam há cinco ou seis quilômetros de distância de nosso barco. Pablo Valdéz já estava com seu equipamento em mãos, checando a munição de sua M16 e amaldiçoando os nativos e suas explosões com urros de fúria. O som de rajadas e granadas explodindo há muitos metros de nós já eram bem nítidos e, em nossas cabeças, haviam homens gritando de dor e raiva, desmembrados por bombas e em chamas pelo napalm. Um filme inteiro de guerra passava pela minha cabeça. Pela cabeça de todos nós, imagino. Gerald tinha um olhar sério de preocupação e andava de um lado para o outro do barco, pensando se seus homens sobreviveriam a tudo aquilo, tentando deixar de lado o agravante de que não estávamos sóbrios. O soldado August suava frio mas já estava se preparando para o que viesse pela frente:
  • Eu fico na M60 e não quero nem saber! - avisou e riu
  • Seu merda, eu é que fico na 60, vai lá embaixo e traga umas granadas extras pra galera se divertir por aqui – ordenou Eric
  • Porra, sargento! Que estraga prazeres – August tentou protestar mas sabia que nem adiantava
  • Relaxa, soldado, todos vamos nos divertir por aqui! Já estamos nos divertindo desde o final da tarde, na verdade.
August desceu a estreita escada que dava para a parte de baixo do barco e foi procurar as granadas, Eric ajustava a metralhadora fixa na popa e parecia bastante empolgado com aquela situação toda em que nos preparávamos para entrar e eu preferia nem pensar em que estado iríamos sair. O barco ganhava velocidade em cima das águas sombrias do rio e seu motor parecia fazer mais barulho do que nunca, parecia estar a ponto de explodir e fazer uma chuva colorida, que nem as que víamos no horizonte. Pensei que poderia ser a última vez que via aqueles caras únicos em minha vida e tentei dar uma boa olhada neles, via tudo como um filme, em câmera lenta. Cada ação de seus corpos era captado pelos meus olhos como em uma fotografia, não sabia se sairia vivo de lá e, se eu saísse, algum deles com certeza não sairia. Aquela seria a última noite para algum de nós, ou para alguns, mas ninguém saberia dizer quem e eu não sabia se aquilo era uma brincadeira do universo ou se era apenas pura crueldade sua:
  • Sargento, como vai o senhor nessa metralhadora? - Gomes perguntou
  • Não se preocupe, tenente. Irei proteger o seu rabo e o de todos os homens por aqui como se fosse o meu próprio rabo – ele sorriu despreocupado
  • Ótimo. Mas essa era exatamente a minha preocupação – sussurou o nosso comandante
Em cinco minutos todos estávamos reunidos e o barco corria como uma bala rio acima. Passávamos uns pedaços de pão para enganar o estômago e umas garrafas de rum para molhar o bico, Gerald até começou a falar para não bebermos e lutarmos aquilo sóbrio mas se lembrou do resto da tarde e simplesmente ignorou nossas garrafinhas de bebida:
  • Agora escutem bem: Sei que todos vocês ainda estão chapados e que todas essas cores parecem lindas demais no momento. Só quero que fique bem claro que se eu levar um tiro na bunda porque os senhores estavam ocupados demais respirando junto com o mundo ou tendo a epifania que esperaram a vida inteira, terão que tirar a porra da bala do meu traseiro com a língua, e sem passar a perna por cima das minhas ordens como vocês adoram. Entendidos?
Ele terminou de falar e um raio diminuiu o volume de todas as explosões, tiros, gritos, mortes, peidos e broncas de comandantes num raio de muitas milhas. Todos olhamos para o céu e parecia que Deus havia comprado uma caixa de nuvens carregadas instantâneas e jogado no céu naquele exato momento:
  • Chuva? Eu não vi um raio de nuvem desde o dia em que cheguei aqui, eu acho – August reclamou
  • Isso vai energizar as coisas hahahahaha – Eric abriu os braços e a boca e esperou as gotas de chuva caírem em sua boca. Aquilo fez Pablo rir e fazer o mesmo
  • Não sejam idiotas, a chuva vai demorar alguns minutos ainda pra cair. E como vocês acham isso bom? Estamos a ponto de trocar bala com sei lá diabos quem! - disse Gomes
As explosões, as chamas, os tiros e os gritos estavam cada vez mais brilhantes e próximos para nós, o tenente começava a ficar cada vez mais aflito com o que poderíamos encontrar, se as coisas estavam bem para o nosso lado ou se os japas já tinham terminado o serviço e estraçalhado cada membro de cada soldado nosso. Os raios também se aproximavam cada vez mais, cada vez mais altos e aterrorizantes em nossos ouvidos chapados de ácido, rum e vestígios de um baseado que havíamos fumado mais cedo. De repente, como uma fruta caindo da árvore ou um pássaro voando livre e um caçador atira em seu peito, zilhões de litros de água começaram a despencar em nossas cabeças, caindo com a maior tranquilidade do mundo, como se a chuva não soubesse que aquilo atrapalhava todos os nossos planos. Pablo e Eric soltaram um grito de alegria os dois e começaram a dançar para a chuva, August dava risada da cena e os três não pareciam estar ligando para aquilo tanto quanto o tenente
  • Olha que chuva mais incrível, cara. Demais! - sorriu o soldado
  • Sargento Demark, corra e pegue umas capas lá embaixo pra gente não ficar oito quilos mais pesado por causa da água dessa porra de chuva. MERDA! - ordenou o tenente, novamente puto
  • Senhor, olhe essa chuva! Está perfeita, não está sentindo? - tentou o gordo homem
  • Vá logo, cazzo!
  • Ok, ok. Mas vocês já estarão todos ensopados quando eu voltar e...
  • AGORA!
Eric saiu correndo com o grito do sargento e, não sei se era a chuva ou sua mente ébria, mas quando ele chegou perto da portinhola que dava para o convés, escorregou e caiu de uma vez lá dentro, desaparecendo num piscar de olhos de nossa frente e fazendo um barulho estrondoso quando alcançou o chão. Realmente achei que a queda havia matado o homem e todos corremos até a portinhola e fomos ver se ele estava bem, alguém gritou seu nome e apontou uma lanterna para dentro do convés. Ouvimos um gemido e Eric apareceu na luz, dando um sorriso cheio para nós que agora faltava um dos dentes da frente, depois voltou a procurar as capas
  • Esse cara não existe – disse o tenente Gerald Gomes. E depois começou a rir como não o víamos rindo em muito tempo
Rimos até a hora que o sargento subiu, e quando subiu com as capas e vimos novamente seu buraco na frente da boca e o sangue que saia de lá como petróleo rimos mais um pouco, nem conseguíamos falar. Vestimos as capas e fomos ver se ele estava inteiro:
  • Cara, você tá bem? - perguntou Ian
  • Estou sim. Nem sei o que aconteceu, cara. De repente tinha uma lanterna na minha cara e todos vocês estavam olhando pra mim e rindo. Agora vi sangue na minha mão mas não sei de onde vem.
  • Achei que você tinha morrido, cara – comecei – Espera....você não sabe de onde vem o sangue na sua mão e em toda a sua camisa?
  • Aonde tá machucado? Porra, nem tinha visto minha roupa, hahaha, engraçado.
Sentei no chão para rir dessa vez. Eric olhou para todo o corpo e apalpava dos pés até a cabeça procurando sinais de lesão ou algum corte vistoso até a hora que alguém o informou de que havia um buraco negro no lugar do seu dente da frente. O sargento correu até alguma superfície metálica e olhou seu reflexo, Gerald Gomes ria que nem uma criança daquela cena, não havia parado de gargalhar desde que viu a cara ensanguentada do sargento no andar de baixo do barco. Havia até esquecido de vestir a capa de chuva e já havia se tornado parte da chuva. Von Demark olhou seu buraco no lugar do dente e parecia estar um tanto quanto triste com aquilo, mas sorriu novamente e olhou para todos nós com aquele seu clássico sorriso de lunático e disse:
  • Não falei que íamos todos nos divertir?
VIII
Já conseguimos ver homens correndo e barcos parados nas margens do rio, víamos as explosões inteiras e não só o cogumelo que se formava depois. Gomes mandou Aldo diminuir a velocidade do barco e todos nos juntamos para ouvir suas ordens:
  • OK, não há voltas agora, seus bostas. Vamos uma parte por terra e a outra fica no barco e desce chumbosa em quem chegar perto, quem vai comigo?
  • Eu vou - falei
  • Também – Pablo parecia realmente empolgado
  • Não perco isso por nada! - disse Eric ainda mais empolgado, com um buraco em sua boca espirrando saliva e sangue
Gerald pareceu não concordar muito com aquilo e olhou para Eric como que dizendo "Ei, cara, você está chapado demais para sair por aí no meio de uma guerra"
  • Não me olhe com essa cara, Gerald. Você sabe que eu não vou perder isso depois de sei lá quanto tempo naquela base maldita.
  • Sargento, precisamos de um oficial no barco e o cabo Valdéz já vai comigo. Entenda.... - Gerald tentou amenizar mas Eric estava convicto de que iria para a guerra
  • Senhor, eu sei que posso estar chapado e que não sou um grande merecedor de sua misericórdia e coisa e tal – Eric se aproximou do tenente e pôs o braço ao redor de seu ombro – mas o senhor tem que quebrar essa pra mim, tenente. E você, quebre essa por mim, Pablo. Por favor, cara...eu sei que você gosta de uma ação mas eu preciso ver isso.
  • Merda, sargento. Você está alucinado demais pra sair por aí com uma arma na mão.
  • Por favor, cara! Você também está! Depois te arranjo metade desse ácido pra você tomar tudo ou colocar na comida dos outros, sei lá, faça o que quiser.
    Pablo olhou para o tenente, desistindo de argumentar com o insistente sargento e o tenente também desistiu. Era pior do que criança e até ele sabia disso, o sargento sorriu e abraçou o tenente
  • Vai ser divertido, cara. Verás haha – Espere só mais um minutinho
Eric correu para o a M60, tomando cuidado para não cair e quebrar outro dente, e começou a desprende-la de seu suporte. August viu aquilo e correu para protestar
  • Qual é, sargento, o senhor já vai pra ação. Porque vai levar a minha diversão?
  • Porque eu tenho autoridade para tal. E tem aquela .50 aí atrás, ela é bem mais fodida que a 60, cara. Não da pra levar a outra em terra, essa aqui sim. Sem falar que se eu fosse ficar aqui eu a usaria de qualquer forma, portanto nem perca sua palavras e saliva falando. E tomem cuidado com essa chuva, rapazes.
  • Ahh, então enfia ela no rabo, desdentado – disse revoltado
  • Soldado, porque o senhor não nos acompanha? Tenho certeza de que o sargento o deixará disparar uns tirinhos por aí. Quem sabe até não acerta alguma coisa – sugeriu Gerald
  • Você quer a sinceridade mesmo, senhor?
  • Não, quero apenas que pegue seu fuzil e umas granadas extras e venha conosco agora. E isso é uma ordem, soldado – disse o tenente antes que o soldado pudesse abrir a boca novamente para contestar ordens
Aldo encostou o barco na margem do rio, há algumas dezenas de metros da ação e em um lugar escondido, descemos do barco eu, o tenente Gerald Gomes, o sargento Eric von Demark e o soldado raso August Bruce. Os outros ficariam lá protegendo o barco e nos esperando inteiros ou mortos com armas e granadas até os dentes. A chuva ainda caia em nossas cabeças e nem a percebíamos mais, Ian, Pablo e Aldo se despediam de nós e senti que alguns deles eram mais sentimentais do que aparentavam ser:
  • Boa sorte, cara. Volte com o seu rabo inteiro pra gente poder trocar uns chutes depois – brincou Pablo e eu ri
  • Pode deixar, irmão – respondi e sorri
  • Me traga umas histórias boas dessa guerra aí, cara – disse Ian Goldberg - E não morra, caralho!
Ri de novo e enquanto o resto dos rapazes se desejavam boa sorte uns aos outros eu vi Eric e Pablo dando um abraço e se despedindo e até hoje posso jurar que vi uma lágrima descer dos olhos do sargento, mesmo com toda aquela chuva inacabável eu consegui distinguir uma diminuta lágrima caindo dos olhos cheios de ácido do sargento maluco e o cabo Valdéz parecia estar a ponto de entrar na mesma situação. Ian Goldberg nos olhava como se fosse a última vez. Seu olhar era profundo e melancólico, ele sabia que aquele grupo não seria o mesmo daqui a algumas horas e aquilo parecia fazer diferença para ele no final de tudo, estar com um bando de cretinos, no final de tudo, parecia ser uma boa forma de se morrer. E o tenente olhou para seu relógio e disse as últimas palavras antes de partirmos:
  • O relógio está marcando 01:23 agora. Se não estivermos aqui até as 03:00, vocês podem partir. Mas tentem nos achar antes!
Pablo acenou com a cabeça e depois com as mãos.
Terminamos aquele momento de sentimentalismo duvidoso que nunca mais se repetiria em nossas vidas e Aldo ligou o barco novamente e avançou lentamente para as explosões coloridas e infinitas. Nos separamos aí.
*******
O cheiro de gasolina e pólvora no ar se misturavam com o de morte e agonia. Nos aproximávamos lentamente pela selva fechada e fomos acompanhando o nosso barco desaparecer na escuridão da noite com os nossos olhos. O soldado e o sargento iam na frente, Bruce com o fuzil pronto para mandar fogo e o sargento com o cinturão de balas da metralhadora passando pelo seu pescoço, segurando a pesada arma na altura da cintura e mais do que pronto para explosões e tiros ensanguentados. O tenente e eu seguíamos logo atrás, eu estava bem aflito, não sabia o que ia acontecer, não conseguia ter aquela tranquilidade do tenente ou a insanidade do sargento. Conforme íamos chegando perto fui me lembrando de que ainda estava sob o efeito daquele LSD e minha visão do mundo estava consideravelmente afetada no momento. Olhei para o sargento e o soldado e eles pareciam estar bem, mas sabia que os dois estavam fervendo os miolos dentro de suas cabeças, a cada cogumelo colorido que levantava no ar como uma lufada de energia assassina, os olhos dos dois brilhavam e, ou faziam um comentário ou davam uma risada de leve, extasiados com o lado belo da destruição.
Adentramos na selva de vez e os gritos de ordens e de desespero de homens martelavam em nossos ouvidos como se estivessem a poucos metros de nós, e de fato estavam! O tenente ordenou que corressemos e fossemos nos proteger atrás das árvores e próximos um do outro. Começamos a andar mais depressa, com aquele equipamento pesado em nossas costas e mãos e o sargento Eric custava para nos acompanhar com todo o seu peso e aquela pesada metralhadora que carregava como se fosse uma filha ferida. Ficamos numa fileira de largas árvores e há poucos metros da verdadeira ação, o tenente nos mandou esperar abaixados e pegou o binóculo para ver se conseguia enxergar quem estava na nossa frente, nossos homens ou o exército inimigo. Se fossem os nossos homens estaríamos em segurança, se fosse o exército inimigo nós conseguíramos matar o maior número pelas costas antes de nos vararem de balas. Rajadas coloridas de fuzis atravessavam a noite escura e a semelhança de tudo aquilo com uma festa era tão grande que até senti que devia dançar, mas achei que aquilo ia causar um enfarto no meu comandante. Eric e Gerald revezavam nos binóculos e conversavam sobre alguma coisa que não conseguia ouvir, mas percebia que o sargento parecia suar frio e estava bem nervoso:
  • O senhor está bem, sargento? - perguntei
  • Sim, sim. É que me faltou ar agora da corrida e essa porra pesa muito – disse ofegante
  • Você está mesmo em condições de fazer isso, Eric? - perguntou o tenente
Eric olhou para o tenente e depois pra mim, August Bruce parecia estar se deliciando com as explosões e nos seus olhos nasciam uma empolgação que nunca havia imaginado antes, queria mesmo entrar naquele monte de gente morta e deixar mais algumas. Parecia que todos estávamos enlouquecendo de vez naquele momento e aquele lugar era o manicômio absoluto de nossa existência, como se o destino houvesse nos mandado até lá, no meio daquela guerra, naquele conflito em especial, nos fazendo usar drogas poderosas e ver tanta destruição para, finalmente, no final de nossos destinos, enlouquecermos e cortarmos a garganta um do outro. Me livrei daqueles pensamentos estranhos e levantei para ver como as coisas estavam lá no front. Explosões e tiros coloridos ainda. Voltei a me abaixar e olhou para os lados, e ao olhar para os lados eu reparei em uma coisa que não havia reparado desde a hora em que havíamos nos camuflado atrás daquelas árvores, fugindo de estilhaços mortais e o fogo do front de batalha. Do meu lado, há uns cinco metros de onde estava minha árvore, havia o mais incrivelmente lindo tigre que já vi até hoje. Morto. Bem, quase morto. Seu corpo estava perfurado por tiros e seus olhos já perdiam as últimas pinceladas de brilho selvagem e natural, olhava para nós e não fazia som algum, apenas olhava para nós com aqueles belos olhos e não parecia estar sofrendo, parecia estar apreciando os seus últimos segundos na sua casa invadida por humanos da melhor forma que achou. Olhava para nós e depois olhava para algum canto da selva, seu instinto já era inútil e ele sabia disso, todos olhamos para ele e ele sorriu para nós, eu acho. Depois fez um barulho que parecia uma tosse e parou de se mexer e respirar e nos olhar e parou de viver, finalmente. Ficamos olhando para aquele tigre sem falar ou olhar um para o outro por alguns segundos, e August quebrou aquele silêncio entre nós dizendo apenas:
  • Esse deve ter sido um dos animais mais lindos que eu já vi
  • Coitado do tigre – lamentou o sargento, que tirou seu capacete em sinal de respeito
  • Sargento, não acho que seja uma boa hora para tirar seu capacete....espere....vamos avançando, acho que os chinas estavam abandonando seus postos. Estão avançando, se formos por trás em silêncio conseguimos pegar a maioria deles – o tenente havia visto no binóculo que estávamos bem atrás do inimigo e agora não tinha mais volta
  • Tenente, com todo o respeito, mas se formos até lá vamos ser mortos e nem vamos perceber – disse
  • Não vamos ficar aqui parados, essa é a melhor hora para fazer algo. Eles estão separados e não esperem por nós vindo por suas costas
  • Vamos logo então, cara. Não aguento mais ver tudo isso e não fazer parte. Vamos logo – disse o sargento que parecia mais ansioso ainda
  • Espera aí, Eric. Temos que ir aos poucos, pelas árvores e.... - tenente se abaixou para explicar para nós e quase não percebeu quando o sargento Demark gritou
  • PELO AMOR DE DEUS VAMOS AGORA! - e saiu correndo dentro da floresta, em direção à guerra
O tenente não sabia o que falar, levantou e ficou vendo o sargento sair correndo que nem um desvairado, disparando tiros para o alto com a M60 e gritando alguma coisa em alemão para seus inimigos. Gerald não tinha outra opção a não ser dizer:
  • Porra! Doido! Me sigam e fiquem atentos! Fiquem com granadas em mãos!
Saímos correndo logo atrás do sargento e as árvores molhadas passavam por nós como a brisa na manha. O sargento parecia estar cambaleando e já estava bem próximo do inimigo, gritando cada vez mais alto e sendo abafado pelo barulho de granadas e metralhadoras de calibre alto. Gomes nos mandou apertar o passo para chegarmos nele e não deixa-lo sozinho no meio dos japas e corremos mais e mais, imaginava que haveriam minas no chão só esperando para que pisássemos e nossas pernas e bolas saíssem voando alguns metros por aí. Tentei tirar essas imagens lisérgicas da minha cabeça e apenas continuei correndo até chegar nas costas do sargento, com o tenente e o soldado August no meu encalço
  • Protejam o meu rabo, caras, por favor – eu disse
  • O mesmo pra você – falou Bruce
Acertei o primeiro há uns quinze metros de mim e o vi se arrastar no chão enquanto a rajada sem fim que saia da metralhadora que Eric von Demark rasgava o ar e meus tímpanos, derrubando alguns homens que nem sabiam que haviam morrido. Jogamos as granadas e Eric fez o mesmo logo depois, o sorriso em seu rosto ao ver o inimigo cair era algo que nunca havia visto antes em seu rosto, ele havia encontrado a felicidade de sua vida naquele momento, talvez. O tenente estava abaixado atrás de uma árvore e alvejava quantos conseguia, com calma e profissionalismo, o seu rosto encostava no corpo frio de seu M16 e os músculos vibravam numa só frequência a cada tiro que disparava. August Bruce estava do seu lado, os dois se encontravam há apenas alguns metros de mim e do sargento, mas nós dois estávamos em posições muito mais perigosas, de frente para os japas que já começavam a perceber que seus amigos caíam não por tiros e granadas jogadas do front, mas de alguém que estava vindo por trás para uma emboscada. Olhei para Eric e sua arma não parava de disparar seus projéteis gigantes, o cinturão de balas se movimentava pelo seu pescoço e ele gritava sem parar para o inimigo. Gritei para o sargento me seguir e pulei para trás de uma árvore para me cobrir da resposta que receberíamos agora que já sabiam de onde vinham as mais recentes mortes de seus colegas. Sentei na raiz da árvore pensando que o sargento estava ao meu lado e não me assustei quando olhei pra trás e ele ainda estava lá atirando e gritando para os outros, sem nem ver se estava acertando algo ou só assustando os macacos novamente:
  • Sargento! Sargento! Saia daí, eles vão te matar! - gritava coisas assim sem parar pra ele
Os japas começaram a lançar granadas em nossa direção que explodiam a poucos metros do sargento, os tiros passavam pela sua orelha e até hoje não sei como não o acertaram naquela hora:
  • SEUS MERDAS! NINGUÉM VAI ME MATAR AQUI! NÃO AGORA! EU VOU BRINCAR COM OS ORGÃOS DE TODOS VOCÊS! - ele realmente havia perdido sua cabeça, a expressão em seu rosto era completamente distorcida e amendrontadora, talvez os caras do outro lado realmente tenham se assustado com um cara aparentemente sem medo como aquele
Já olhava para o sargento e me despedia de sua companhia divertida por todos aqueles meses, não acreditando que ele sairia dessa vivo, não tinha como aqueles tiros que vinham das AK-47 e de granadas que voavam pela noite em nossa direção não destruirem o que o sargento Demark conhecia por existência. A chuva e as balas cobriam o ar e preenchiam a noite, o barro atrapalhava a marcha e as trincheiras de ambos os exércitos e tudo iria ruir em poucos segundos para o nosso lado. Mas é nessas horas que as coisas que menos esperamos acontecem e, num piscar de olhos, o sargento que não abandonaria seu posto por nada naquele momento caiu no chão e foi arrastado até uma espécie de amontoado de arbustos e árvores pelo soldado raso August Bruce, que parecia bem irritado com seu superior:
  • Caralho, você ficou louco? Eles já descobriram nossa posição e você tá aí que nem idiota achando que vai matar todos eles?
  • ME DEIXA IR LÁ, SOLDADO! É UMA ORDEM! - esperneava como uma criança sem dente querendo ir brincar na vizinhança
  • Você está louco demais, cara, vão te explodir inteiro lá. Fique aí. Acalma esse rabo, cara. Você tomou demais daquele ácido, entendeu? Agora não consegue se controlar e fica aí dando uma de maluco. Você só vai conseguir é morrer dessa forma – disse August se acalmando mais conforme recuperava o fôlego depois de correr para tirar o rabo do sargento da linha de fogo.
O sargento não falou nada, se virou e deu uma vomitada amarela em cima do mato. Depois vomitou mais um pouco e deu uma gemida agonizante que vinha de dentro de seu estômago. O vomito se misturando com a água da chuva que mantinha o mesmo nível desde a hora em que começou e fazendo um pequeno canal de gorfo. Olhamos para aquilo com pena e receio, o sargento estava inválido para aquele combate a partir de agora, e sabíamos que sua loucura faria falta no meio de toda aquela loucura ao nosso redor:
  • Meu Deus, Eric, você está bem? - perguntou Gomes
  • Estou...maldito rum...estou bebendo só aquilo desde a hora em que...subimos na merda do barco... - disse ofegante e com uma baba de gorfo pendendo de sua boca
  • OLHA A MERDA QUE VOCÊ FEZ, CARA! OLHA A HORA QUE VOCÊ VAI PASSAR – explodiu o tenente, cansado da insensatez do sargento de uma vez por todas
Eric apenas ouviu o tenente e os tiros zunindo por suas orelhas. Bom, na verdade só os tiros e os baques de corpos e árvores caindo no chão, estava mal e chapado demais para ouvir mais um sermão do comandante
  • Não rouba a minha brisa, cara – disse com os olhos fechados, quase desmaiando
  • Brisa? BRISA?! A brisa é que a gente vai morrer por sua causa no meio dessa selva, sargento, essa é a brisa – gritou August
Peguei meu cantil com água e dei na mão do sargento, que ficou segurando com cara de bobo, sem saber o que fazer com aquilo. Era como se tudo o que ele tivesse bebido estava fazendo efeito naquela hora, que a maconha havia sido guardada em seu organismo para fazer efeito numa hora daquelas e que aquele ácido não ia parar de fazer a sua mágica nunca. Peguei o cantil de sua mão e inclinei sua cabeça pra cima, joguei um pouco de água dentro de sua boca, que engoliu tudo num gole só, joguei mais um pouco e depois mais um pouco, o sargento bebeu quase toda a água e o resto eu joguei em seu rosto, para que acordasse. Enquanto isso o tenente e August tentavam lidar com os incontáveis inimigos que se agrupavam há alguns metros de nós e esperavam vacilarmos para descarregarem seus fuzis em nossas bundas.
  • Ele está melhor aí? - gritou o tenente, cuidadoso com os japas
  • Trabalhando nisso, senhor – falei – Como está, sargento?
  • Mais água....aí melhoro
  • Minha água acabou, sargento, o senhor bebeu tudo
Olhou para o meu cantil vazio e tentou pegar o seu, que não estava mais lá, devia ter caído em algum lugar pela selva ou no barco, ele não bebia muito dela mesmo. Se esticou no chão e alcançou o cantil de August, que parecia cheio, pegou e virou quase toda a água de uma só vez em sua boca. Terminou a água, respirou fundo e me entregou o cantil, esperando que eu fizesse não sei o que com aquilo. Respirou fundo novamente, pegou sua metralhadora gigante e levantou num esforço só, ainda cambaleando um pouco. O tenente viu aquilo e se sentiu mais aliviado, apesar de sentir que aquilo daria errado de alguma forma, se virou e fez um sinal de positivo para o sargento, que respondeu com um de paz e amor e disse:
  • Que se foda, vamos logo pega-los e...
  • ESPERA! Não vai dar uma de louco de novo e nos colocar em risco – alertou o comandante
  • Ok, ok, ok, ok...
  • Na verdade, acho que não tem como a gente ficar por aqui agora, a artilharia está pesada demais pra nós quatro segurarmos. Acho que devíamos voltar e procurar o barco.
  • E ficar de costas para os japas enquanto saímos correndo? - falei
  • O que sugere então? É isso ou trocamos bala até a morte com esses caras.
De repente uma explosão absurda fez todas as outras parecerem estalinhos jogadas por crianças nas ruas aos domingos e se seguiu um silêncio perfeito por alguns milésimos de segundo, como se todos tivessem parado de se odiar e de se matar só para aproveitar aquele momento, com chamas se formando nas árvores no horizonte, incendiadas pelo napalm de nossos aviões. Olhamos para aquele fogo todo e para pequenos traços acesos correndo de um lado para o outro, em desespero, homens que queimariam até o último segundo de suas vidas no chão frio e úmido daquela selva chuvosa naquela noite desgraçadamente colorida.
  • Olha como eles queimam- comentou o sargento
  • Uns metros mais pra frente e a gente estaria torrando lá junto com esses coitados – falou August
O tenente olhou para onde o inimigo se agrupava para atacar o que imaginavam ser todo um pelotão de fuzilamento, e agora havia apenas metade deles vindo em nossa direção, lentamente. A outra metade havia ido para perto de onde haviam jogado o napalm, talvez procurando por sobreviventes ou para se cruzar frente a frente com o inimigo de uma vez por todas e acabar aquela guerra para eles de um modo ou de outro
  • Daqui eu contei uns quinze deles agora. Parece que se separaram. Essa é a nossa chance de sairmos desse buraco
  • Eu queria ficar e lutar, tenente – disse Eric
  • Você não está em condições nem de limpar sua bunda, sargento. Vamos, você vai atrás e fica mandando bala nos que vierem. Ainda há alguns deles para derrubarmos
Um tiro acertou a árvore do lado da que o tenente estava abaixado e um grito agudo e aterrorizante se aproximou de nós, um rosto furioso e insano corria em nossa direção, com a baioneta em seu fuzil e loucura no olhar, ele ia se aproximando para furar o primeiro que conseguisse com a baioneta, e Gomes estava na sua frente. O tenente ficou parado olhando o japa chegar, não havia mais o que fazer, ele chegou junto com os tiros e não tivemos tempo de reagir. Quando ele estava a alguns passos do comandante, com a baioneta encostando quase que no rosto dele, Eric pulou na frente do sujeito e o derrubou com a metralhadora. Nos assustamos com aquela reação louca e assistimos ao sargento socar a cabeça e furar os olhos puxados do soldado com os dedos, enquanto gritava como um macaco vencendo seu inimigo. Pegou sua faca da bainha e começou a furar a barriga do soldado, furava e gritava e xingava e seus olhos estavam vermelhos e sedentos, o suor e a chuva se misturavam e o homem no chão se debatia, tentando se soltar do seu agressor. Olhamos aquela cena e comecei sentir o verdadeiro horror da guerra, homens perdendo a cabeça de vez nas selvas, matando outros homens sem nem saber o motivo, apenas tendo que apagar um ao outro sem fazer perguntas e sem misericórdia, apenas o horror e o sangue e a chuva nas nossas cabeças enquanto o nosso sargento assassinava brutalmente um ser humano, e ria com o sangue da pança aberta do sujeito, com suas tripas à mostra e sangue saindo de sua boca. Eric ainda enfiava a faca em sua barriga e peito e seu braço e sua capa estavam completamente ensanguentados e sua boca sangrava novamente, olhamos aquilo e ele olhou para nós, voltou a encarar o homem destruído no chão e agarrou suas tripas e as puxou para fora, como um guerreiro antigo. Olhei para aquilo e naquela hora eu tive a certeza de que Eric von Demark havia perdido a cabeça, não sei se para sempre, mas havia perdido o equilíbrio de seu cérebro naquele momento e feito algo realmente asqueroso. Aquela cena quase fez August vomitar e Gomes puxou Eric de cima do homem e apontou para todos os outros que vinham ao nosso encontro. Todos olhamos para o lado em que viemos, uns dez soldados estavam vindo no nosso caminho, armados de fuzis e lança granadas. Estávamos cercados. Olhei para aquilo e sabia que era o fim.
  • É isso, acabou. Obrigado por servirem comigo, amigos – lamentei
  • Agora sim eu concordo com a sua ideia, tenente – disse Eric, voltando do seu torpo assassino como se nada tivesse acontecido – Vamos logo acabar com esses caras e voltar, estou a ponto de desmaiar aqui no meio
  • MERDA, MERDA! Joguem granadas para os dois lados e uns sinalizadores, saiam atirando quando ouvirem as granadas explodirem e corram pelo mesmo caminho que viemos. Ouviram? Sargento, vá na frente com August e divirta-se. AGORA, PORRA! - gritou o tenente, desesperado com a responsabilidade de nossas vidas em suas mãos
O sargento deu um grito de felicidade e saiu correndo para sua tão esperada glória. Os tiros inimigos zuniam por seu corpo aparentemente fechado e nossos tiros faziam seu trabalho. O tenente e eu ficamos do outro lado, com treze ou quinze que haviam ficado lá, nossas granadas explodiram e os sinalizadores soltavam suas fumaças laranja e amarela e saímos correndo pelo caminho que viemos, indo quase que de frente com os outros dez soldados orientais e furiosos, parcialmente cegos por nossos sinalizadores, o que os deixou ainda mais fodidos e querendo nos ver mortos. Jogaram umas granadas de volta, que passaram meio que longe de nós e Eric e Bruce foram fuzilando tudo o que podiam, derrubando homens com uma facilidade hollywoodiana, suas pernas e braços sendo destroçados por aquelas balas gigantes da M60 e da potente M16 abrindo buracos nos peitos e nas cabeças daqueles homens. O sorriso no rosto do sargento era algo realmente notório, se divertia como uma criança ao ver o inimigo caindo aos seus pés, sangrando como um porco no abate. Não por ser ruim ou um psicopata, apenas gostava da vitória no campo, estava lá para matar e vencer e, se acontecesse o contrário, não ligava contanto que levasse o maior número possível de japas com ele.
Passamos pelos dez homens que nos confrontavam, que agora eram apenas três ou quatro, e continuamos correndo e atirando a esmo para assustar os que vinham atrás e se juntavam aos que sobravam. Agora havia virado pessoal e os doze japas restantes corriam atrás de nós como um perdigueiro perseguindo coelhos nos campos verdes. As balas colidiam em árvores e jogavam barro formado pela chuva pelos ares, acertando em nossa roupa e nossos rostos, aquilo te apavora de um jeito que só te faz correr mais e mais, quebrar qualquer limite ou recorde olímpico é brincadeira no meio de uma guerra. Ganhamos distância na corrida e carregamos nossas armas ainda na corrida, com chuva e lama em nossas cabeças, deixando até o ato de respirar um desafio. Terminamos de carregar os fuzis e os caras vinham atrás de nós sem parar de atirar e nos assustar, foi aí que Eric von Demark parou de frente para eles e engatilhou sua M60, colocando a primeira bala do cinturão na câmara:
  • O que está fazendo, sargento? Vai ficar aí e matar todos?! - perguntou Gomes, indignado
  • Sim
  • Está louco?
  • Sim – o sargento respondia secamente e estava puto – Podem ir se quiserem, eu vou ficar
  • Sargento, isso é uma ORDEM! Volte agora para o bar... - e as balas zuniram pelo ouvido do tenente – MERDA
Abrimos fogo novamente contra aqueles caras e a metralhadora cantava a canção da morte mais perfeita de todas, jogamos mais granadas e uns sinalizadores, o que acabou se mostrando uma tática muita boa para situações como aquela e nossas armas e preparo dizimaram grande parte daqueles caras, e todos rimos com a cena, até o tenente Gomes, o inimigo caia um a um e nosas armas pegavam fogo e soltavam uma fumaça ameaçadora, e o sargento ria histericamente e gritava e fazíamos o mesmo, havíamos todos perdido a cabeça e aquilo era maravilhoso. Mas um tiro pegou na perna de Eric e, em seguida, em seu pescoço, que atravessou e dilacerou metade da nuca do gordo sargento, que caiu no chão ainda disparando sua amada M60 e se debatendo como um peixe fora d'água. Olhamos para aquilo e não podíamos fazer mais nada além de continuar atirando até terminar com o último deles, ou eles atirarem e terminarem de matar todos nós. Olhei novamente para o homem se debatendo no chão e não conseguia suportar aquela visão agoniante sem fazer nada, pulei no barro e puxei o sargento para trás de alguma árvore:
  • Sargento! Sargento! Está me escutando? - perguntei agoniado
Ele obviamente não respondia, sua garganta e cordas vocais deviam ter ido para o espaço, assim como parte de seu cérebro e agora, aos poucos, sua vida. Tinha um olhar vago e o brilho louco e ébrio que era característica marcante de sua pessoa e de nossas vidas desde que nos conhecíamos estava desaparecendo lenta e cruelmente. Se debatia por puro reflexo, imagino, já não devia mais estar lá, devia ter ido visitar as estrelas novamente. E nunca mais voltado.
Olhei para o seu corpo agora imóvel e ensanguentado e aquele momento parecia ter durado uma eternidade, o sangue de sua cabeça ainda vazava em cima de minha capa e se misturava com a chuva densa daquele país selvagem. O tenente e o soldado correram para onde estávamos e olharam para aquela cena, tinham visto o sargento cair mas não acreditaram que ele havia sucumbido aos malditos chinas:
  • Não, cara, não... que merda! QUE MERDA! - gritou August e Gerald o abraçou
  • Vamos embora daqui antes que a coisa piore. Me ajude aqui com o corpo – falou o tenente
Peguei o corpo sem vida do sargento pelos braços e o tenente pelas pernas, o sangue e pedaços de cérebro caiam em minha capa e no chão e aquilo era asqueroso quando era com um amigo seu. August ia na frente, alerta com a M60 em mãos, finalmente pusera as mãos naquela metralhadora, estava cabisbaixo e seu rosto parecia triste, o de nós três parecia triste. Ele era nosso amigo, porra!
  • Acelerem o passo – disse o tenente
Aceleramos e a chuva ainda caia em nossas cabeças, limpando o sangue do rosto do sargento, que agora parecia estar intacto, tirando que seu pescoço e sua perna estavam bem judiados e nojentos. Tinha uma expressão até que alegre em seu rosto, ou ainda era aquele ácido fazendo efeito na minha cabeça. Mas continuamos seguindo, e agora os tiros e as explosões e as mortes e os japas atrás de nós não pareciam mais tão importantes. Importante era chegar logo barco e sair daquele lugar que não devíamos nem ter parado à princípio.

IX
O peso do corpo de Eric parecia estar maior a cada passo que avançávamos e os tiros já estavam se distanciando de nós, pelo menos aonde havia mais riscos de levar um na cabeça ou no pescoço. Não sabíamos aonde estava o barco exatamente então o plano era irmos até a margem do rio e ir subindo o rio à procura do resto dos caras. Imaginava como seria a reação de Pablo ao ver o corpo do seu amigo despedaçado em nossos braços, com pedaços de orgãos do inimigo presos em suas unhas e parte de sua cabeça se desmantelando na minha coxa conforme andávamos. Pensei também se estariam vivos quando chegássemos no barco, qualquer coisa poderia ter acontecido e eu não tinha ideia do que tinha acontecido, um japa poderia ter explodido tudo com um lança granadas ou terem pulado lá dentro e cortado a cabeça de todos eles, apesar que duvidava que o cabo Valdéz deixaria isso acontecer com um fuzil e um par de granadas em suas mãos.
Chegamos na margem e fomos avançando lenta e cuidadosamente por ela, com as árvores e arbustos nos escondendo e August com os olhos atentos para algum louco que quisesse nos cravejar de balas por ali. Olhava para o corpo do sargento e eu era o único que encarava o seu corpo mesmo, August não se atrevia a olhar e o tenente estava virado para frente. Ninguém queria ver o corpo sem vida daquele cara ensandecido, pela primeira vez desde que nós o conhecemos, Eric estava quieto por mais de vinte minutos sem estar dormindo ou desmaiado chapado em algum canto. Parei de olhar para ele e parei de pensar naquilo e segui em frente, olhando para as árvores e para vultos se mexendo naquela selva enganadora, os japas conheciam bem suas selvas, poderiam estar escondidos embaixo de nossos pés a essa hora, correndo por seus túneis fedidos e apertados, comendo carne de algum roedor que encontraram por lá e insetos fritos, se virando do jeito que podiam para não deixar um bando de estrangeiros dominarem sua terra e sua gente. Entendia o lado deles, mas entendia o meu também, que era sair vivo de lá e voltar pro barco, depois pensava em voltar para casa ou para o hospital ou para a base...agora só queria voltar para o maldito barco que não aparecia e já estava cansado, com bolhas se formando nos meus pés ensopados por aquela chuva incessante. O barro nos nossos pés estava se tornando denso e difícil de andar sobre, tropecei em alguma pedra ou algum coisa parecida e quase caí no chão, me reergui mas larguei a cabeça do sargento na lama, que afundou na hora e realmente pensei em deixar por lá, já estava morto e Eric com certeza não ligaria nem um pouco para isso e provavelmente faria o mesmo conosco se assim o tivesse que fazer:
  • Que merda! - disse pegando os braços do sargento novamente e deixando que a chuva os limpasse do barro – Estou cansado, senhor. Ele é muito pesado e esse barro tá foda de atravessar.
  • Não podemos parar. Temos que achar logo o barco ou nos deixarão aqui com esses doidos. Continue andando que logo estaremos lá, quem sabe até dormindo.
Lembrei que tínhamos hora para voltar ao barco e voltei a apressar o passo, August seguia quieto uns metros à frente de nós e me perguntei que horas poderiam ser. Havia perdido noção do tempo lá no meio daquilo tudo, havia perdido noção do tempo desde a hora em que tomamos aquele ácido. Na verdade ainda sentia seus efeitos em mim, mas acho que minha cabeça estava cheia e cansada demais para dar bola para eles ou eu já tinha morrido e achava que estava vivo ou sei lá o que. Andamos e andamos e andamos mais alguns minutos e o cadáver em nossos braços parecia nos atrasar como uma velha se preparando para sair e então August disse:
  • Senhor, acho que estou vendo alguns barcos lá na frente.
Olhamos e havia uns quatro ou cinco barcos bem parecidos com o nosso parados um do lado do outro, com o que parecia ser alguns homens com uma fogueira embaixo de algumas árvores, assando alguma carne para comer e dando risada como se não estivesse rolando uma matança a alguns quilômetros dali. Fomos nos aproximando e avistei Aldo de longe, bebericando no seu cantil de metal aquele seu rum que por algum milagre ainda existia. Vê-lo foi tão reconfortante que quis largar tudo e ir correndo e pulando abraçar ele e o seu barco velho e pequeno. August acenou com uma das mãos para Aldo, que nos avistou e veio se aproximando de nós, talvez ainda sem ver o corpo que carregávamos em nossas mãos. Mas foi se aproximando e, conforme ia vendo o que carregávamos no braço e o olhar caído de nós três, foi diminuindo o passo e adquirindo um olhar mais sério e, quando teve certeza do que e quem era, veio correndo até nós e me ajudou com um dos braços do sargento, sem falar ou perguntar nada, apenas olhou com tristeza para o cadáver, deu mais uns goles em seu cantil e continuamos seguindo para o barco em silêncio.
O chão tinha vestígios de um conflito que devia ter ocorrido a não muito tempo, corpos e cápsulas faziam companhia aos homens que comiam alguma coisa pela primeira vez no dia ou pela última vez de suas vidas e ainda nem sabiam disso. Todos foram acompanhando com os olhos os quatro homens escoltando o corpo do sargento até o barco, o velório do sargento Eric von Demark, rodeado por guerras e chuva e barro e silêncio e o despejamos no convés como um saco de batatas, fazendo um barulho seco e frio misturado com a água da chuva. Subi no barco num pulo só e fui para a cabine de Aldo, aonde a chuva não batia e finalmente me vi livre daquela água que não cansava de cair na minha cabeça. Tirei meu capacete e larguei meu M16 no primeiro lugar seco que vi e fechei os olhos, exausto daquela situação e de carregar o corpo de um companheiro. Esperava a hora em que Pablo e Ian iriam aparecer e ver o corpo do sargento lá, deitado, roxo e molhado com sangue e chuva e imaginei que seria uma cena um tanto quanto triste, e de tristeza eu já estava bem cansado. Aldo e o tenente conversavam sobre alguma coisa e August se sentou ao meu lado, em silêncio:
  • Cadê o cabo e o jornalista? - perguntei
  • Não sei, Aldo disse que Ian estava agindo estranho desde a hora em que saímos daqui e que não falou com mais ninguém. E o cabo deve estar dormindo lá embaixo. Vou acorda-los.
Desceu a escada estreita e foi chama-los enquanto eu continuava lá sentado, com bolhas nos pés e um torcicolo começando a incomodar. Tirei o coturno e as meias e deixei meus pés respirarem livres por uns instantes, o vento frio da noite chuvosa passou pelos meus dedos e senti um alívio tão grande correndo por eles que até dei um sorriso no meio daquele inferno momentâneo. Alguns segundos se passaram e ouvi o barulho de pés subindo as escadas, Pablo e August saíram de lá e pensei que não deviam ter conseguido acordar Ian, ou ele não quis subir. Pablo olhou para mim, caído no chão da cabine com os pés nus e o corpo molhado e procurou pelo corpo do sargento, que estava atrás de algumas caixas vazias de rum que Aldo havia subido para se livrar delas ou para tentar enche-las novamente. Cabo Valdéz se ajoelhou no chão do barco e ficou olhando para o cadáver de Eric von Demark, seu rosto parecia triste ao ver seu amigo de longa data lá, jogado no chão de um barquinho velho, com metade da cabeça jogado em algum canto da selva, com seu sangue se espalhando lentamente pelo convés e a ausência de um dente e daquele olhar louco que sempre encontrávamos com o sargento agora dava lugar para o vazio e o opaco. Olhei para o chão e vi várias cápsulas de metal por lá, havia tido uma briga da boa por aqui, aqueles corpos lá não eram de tanto tempo assim, deviam ter passado por aqui e descido bala nos japas que estavam os esperando. Não perguntei nada e não falei com mais ninguém, apenas dormi e dormi bastante e ninguém tentou me acordar até a manha seguinte, quando nossas cabeças estariam finalmente sóbrias de qualquer substância que havíamos tomado ou fumado, estava precisando mesmo daquilo.
X

A manha era chuvosa e mais cinzenta do que nunca, o Sol parecia ter esquecido daquele lugar e de todos nós, deixando-nos apenas água caindo, água por toda parte, embaixo e em cima era água e me sentia uma planta hidropônica. Sentia uma leve dor de cabeça e no resto do corpo, todos estavam um tanto quietos e chateados, com o corpo do nosso sargento largado naquele barco, esperando para apodrecer lentamente coberto por uma capa de chuva que deixava seus pés à mostra. Ian Goldberg acordou e foi ver o corpo do companheiro, olhou por uns segundos e saiu friamente, sem trocar uma palavra ou olhares, apenas ficava deitado desenhando e bebendo um ou outro gole de rum. Imaginei que fosse pela morte de Eric, mas Aldo e Pablo falaram que ele já estava agindo estranho desde a hora em que pararam o barco perto do acampamento japa e exterminaram a todos por lá. Pensei em ir falar com ele mas achei que não gostaria de ter o saco enchido a cada vez que fico melancólico, Ian vira e mexe tinha umas crises assim e a melhor coisa era deixar ele supera-las sozinho.
O dia corria e queríamos e devíamos ter partido ao amanhecer, mas fomos enrolando como de costume e ninguém, nem mesmo o tenente, estava disposto ou num humor bom para fazer qualquer coisa, e de qualquer forma não estávamos muito longe do nosso destino. Passamos o dia com os soldados e ajudamos nos feridos que apareciam, buscamos mais combustível e comida para a nossa esperada viagem de volta e enterramos o corpo do sargento perto da margem do rio, embaixo de uma árvore muito grande e grossa, uma anciã, imaginei. Fizemos uma cerimônia padrão no meio daquela chuva para não ter que ficar sem falar nada, mas concordamos que o sargento odiaria aquilo com todas as suas forças e zombaria de nossas caras. Rimos disso e nos despedimos para sempre do sargento Eric von Demark, enterrado nas margens de algum rio, em alguma data esquecida pelo mundo e por nós mesmos.
A tarde passou lentamente e sem muitas surpresas ou diálogos, nos preparamos para ir embora e fomos desejar boa sorte aos outros homens com seja lá qual fossem suas missões e ordens. August e eu ficamos dando um jeito na bagunça do convés e os outros cuidavam de outros reparos e organizações em nosso meio de transporte. Perto do crepúsculo o barco estava pronto para partir e demos as últimas mijadas e cagadas em terra firme antes de subirmos aquele rio e ver o que aconteceria com o que restou de nós.
Finalmente deixamos aquele acampamento fodido no cu lá pelo final da tarde e a chuva parecia ter diminuído suavemente, apesar de ainda chover bastante. O barco cortava o rio à toda velocidade e o Sol cinzento se despedia de nossas caras mais uma vez, há um dia atrás exatamente estávamos todos jogando e rindo, agora era cada um em seu canto, cantarolando canções e limpando suas armas. Alguns tomavam uns goles de rum aqui e acolá, fumamos maconha usando o cano de uma espingarda como cachimbo e demos risada daquilo, as primeiras que havíamos dado desde o enterro de Eric. Evitávamos conversar sobre morte e guerra, apreciamos o pôr do Sol em silêncio e aquilo trazia um pouco de paz para todas aquelas almas naquele barco e todo aquele país no geral. A noite veio rápido e logo um breu total se formava ao nosso redor, não era possível enxergar nem uma mão em frente ao nosso rosto, mas Gerald mandou Aldo continuar subindo o rio sem olhar para trás ou para os lados, apenas subisse independente do que acontecesse por lá. Ian Goldberg continuava fechado em seu mundo e não queria comer nada ou conversar com ninguém, tentei trocar algumas palavras com ele mas sempre respondia desconversando ou disfarçando com alguma piada boba, seu olhar era cinzento e sua expressão era estranha. Alguma coisa havia acontecido com ele e ninguém sabia dizer o que, estava pálido e parecia um tanto quanto doente, achei que poderia ser isso e que logo passaria, mas a verdade é que ele realmente estava na merda. Subia a escada apenas para poder vomitar no rio, e depois ficava lá olhando e dando risada da mancha amarelada que ficava na água, flutuando como bactérias no meio de tudo e com um leve cheiro de bebida barata gorfada saindo de sua boca. Nem maconha ele quis fumar com a gente, o que também achei estranho, talvez alguns tragos o fizessem se sentir melhor com aquilo tudo e ele pudesse aproveitar mais aqueles momentos estranhos, se é que tinham algo para se aproveitar.
A madrugada chegou e a chuva se foi e ainda não tinha sono, havia dormido grande parte da manha e cochilei novamente durante a tarde, aquele dia tinha sido um grande marasmo para compensar a loucura do dia anterior. Parei para lembrar disso e realmente havia acontecido muita doideira naquele dia, muitas nós lembraremos sempre e outras foram apenas para tingir de colorido aqueles instantes lisérgicos rio acima e nunca mais nos lembraríamos delas. Todos já estavam dormindo e eu fazia companhia para Aldo que contava sobre seus filhos perdidos pelo mundo e as mulheres doidas que conheceu por aí. Era um cara muito legal e já havia feito muita palhaçada por aí, veio parar no exército depois de umas noites de bebedeira contínua e gostou do que viu. Estava por aí agora, sem ter pra onde ir e tendo todos os lugares que queria ao mesmo tempo, estava no meio dessa guerra porque queria, se quisesse ir embora simplesmente desapareceria por aí na selva ou no rio com o seu barco e nunca mais ouviríamos falar de Aldous Bhatnagar, contador de suas histórias malucas.
Ouvi alguém subindo a escada e achei que seria Gerald me mandando ir dormir e trocar o vigia, mas era Ian que subia a pequena escada com sua cara de sono e seu olhar ainda cinzento. Olhei para ele e ele sorriu e disse, balançando o baralho de cartas na mão:
  • Querem jogar um pouco?
  • Valendo umas cervejas – concordei
Jogamos por vários minutos, talvez até algumas poucas horas, não me lembro. Jogamos e rimos e conversamos e parecia que Ian estava se sentindo bem novamente, falando bastante e rindo de qualquer coisa, filosofamos sobre a vida e sobre a guerra, criamos roteiros para filmes e poemas na hora, Aldo entrou no meio e ficou recitando alguns de seus poemas, que eram muito bons e bem escritos. Ganhei umas e ele ganhou outras, não sei quem ganhou mesmo no final, mas decidimos que beberíamos as cervejas de qualquer forma e fumamos um antes de irmos dormir. Sabia que seria sofrível para acordar na manha seguinte, se Aldo continuasse naquele ritmo chegaríamos ao destino antes do almoço. Dei boa noite para os dois e fui dar uma mijada antes de dormir, estava lá me aliviando e no horizonte comecei a ver uns clarões, sem som, apenas clarões brancos e o que me parecia alguns vultos no céu. Na hora pensei que aquele ácido devia estar fazendo efeito novamente na minha cabeça, que algum resquício dele ainda estava no meu organismo, mas Aldo também viu aqueles clarões e nos olhamos e não falamos nada. Fechei meu zíper e desci as escadas para dormir algumas horas antes de chegarmos ao fim da viagem. E aqueles relâmpagos ainda iluminavam o horizonte quando dei a última olhada.
XI
Acordamos todos juntos com o som seco de um fuzil sendo disparado. Um único tiro e uma revoada de pássaros saiu assustada. Pegamos nossas coisas e subimos para o convés num pulo só, e a primeira coisa que vi foi uma cápsula rolar solitária pelo chão e um filete de sangue descendo tranquilamente em direção aos nossos pés. Seguimos o rastro de sangue corria e vi o Ian deitado no chão do barco, com seu fuzil ainda fumegante e sua cabeça explodida pela bala que entrou pela boca e saiu deixando um buraco do tamanho de uma bola de baseball atrás. Na hora não me passou pela cabeça que ele havia se matado, pensei que estivéssemos sendo atacados por franco atiradores escondidos nas árvores, mas uma fração de segundos depois eu percebi que aquilo não faria sentido e enxerguei de fato o que ele havia feito. Gerald olhou para o corpo e para a poça de sangue que se formava, seus miolos escorrendo lentamente junto com o sangue denso e uma leve fumaça saindo de sua boca aberta. Aquele M16 havia feito um estrago e tanto na cabeça do pobre jornalista, ainda não entendia como ele tinha feito aquilo, achei que estivesse se sentindo melhor depois da noite passada, que rimos e conversamos por horas e jogamos cartas até cansarmos. Lembrei daquelas cervejas que nunca mais tomaria com ele, teria que ser com outra pessoa, um substituto de Ian para aquela ocasião Fechei os olhos por uns segundos e tentei tirar aquela imagem e aquelas mortes da minha cabeça. E Pablo disse com um tom de desespero na voz:
  • Que porra é essa, cara? Por que ele fez isso?
  • Meu Deus...ele....meu Deus... - tentava falar August
Gerald continuava olhando e não falava nada. Aldo fingia que aquilo não acontecia, tentava fugir daquela cena grotesca, sem sucesso:
  • Você viu o que aconteceu, Aldo? - perguntei
  • Ele subiu mais cedo e......olhou para mim.....deu um bom dia e foi aí pra trás, continuei olhando pra frente e depois....ouvi o tiro e vocês apareceram – tentava explicar ofegante
Em menos de quarenta e oito horas dois dos nossos morreram e não sabíamos o que acontecia, aquilo era louco demais, ninguém imaginava que ele seria capaz de fazer algo assim, e não deixou nada, nem um bilhete dizendo seus motivos ou uma despedida formal. Apenas o fez, discreto e silencioso, como era o seu estilo. O Sol saia e o sangue brilhava mais do que nunca, pedaços do seu cérebro ganhavam uma forma mais viva com toda aquela iluminação matinal batendo neles. De certa forma parecia um tipo de arte não valorizada, o vermelho perfeito espirrado por todo o barco e as pernas de Ian Goldberg, jornalista deixado no meio de uma guerra, jogadas de qualquer forma, cruzadas e seus braços respingados de sangue que vazava de sua boca e do que outra hora foi a parte de trás de sua cabeça. Olhei para o rio e ainda dava pra ver um pouco de sangue e massa cefálica boiando despreocupadamente pelas águas calmas da manha. Ouvi um soluçar e o tenente Gomes chorava, com todo o peso da morte de seus homens em cima de sua cabeça:
  • Não devia, cara...não devia ter aceitado, cara...não devia – dizia em choque
  • Calma, tenente, não é culpa sua uma merda dessas acontecer – Pablo tentava consolar
  • É, ele fez isso porque ele quis, problemas dele, nada a ver com você ou com a gente, tenente. Só não sei por que ele fez isso... - disse
  • Não devia...NÃO DEVIA! Ter trazido vocês! NINGUÉM! Eric.....Goldberg...Merda – chorava desesperado
Não sabia como ajudar o aterrorizado comandante e fiz o que achei que seria o padrão, o abracei com força e esperei que ele se acalmasse um pouco. O levei até lá embaixo, aonde ele se deitou e tentou dormir, subi novamente para ver o que faríamos com o corpo do jornalista suicida e ver quanto tempo faltava para sairmos daquele barco ensanguentado.
Subi e ajudei os rapazes a ajeitar o corpo de Ian em algum canto, limpar a sujeirada que ele fez com seu sangue e cérebro e deixar tudo parecer menos asqueroso possível. O clima agora era mais pesado do que nunca e todos estavam deprimidos pelo desfalque em nosso grupo e por ter que limpar restos de nosso amigo suicida de cima do barco. Ainda não devia ser nem 10:00 da manha e a chuva havia desaparecido mesmo e não devia voltar por um tempo. Sem nuvens, sem cinza, apenas o azul e o amarelo no céu, refletindo nos bilhões de litros de água daquele rio e fazendo tudo parecer um espelho brilhante e cristalino. Minha cabeça rodava e me sentia mal, com sono, cansado, voltei para me deitar um pouco e tentar esquecer toda aquela merda que acontecia ao nosso redor e toda a loucura que havia vivido nos últimos dias. Dormi pesado e sonhei com praias brancas e o céu vermelho, clarões e corpos caindo como chuva, devo ter visto Eric no meio do sonho, porque acordei pensando nele, olhava para as pessoas que caíam mortas ou gritando e elas não pareciam ter rosto, apenas sangue e terror no lugar de olhos e boca. Fiquei apavorado com aquilo, suei frio durante as três horas e pouco em que cochilei, terrível.

Um final rápido

Quando o Sol estava em nossas cabeças e imaginei ser mais ou menos meio dia, Aldo avisou que estávamos para chegar em nosso destino. O frio na barriga foi sentido por todos, imagino, eu senti com certeza. A água parecia inquieta e refletia o que se passava por nossas cabeças, pássaros voavam e via os peixes correndo loucos por debaixo do espelho brilhante e vivo em que navegávamos. Olhei para o horizonte e não via nada, nem sinal de acampamento ou de fumaça ou de homens ou de nada. Achei que teríamos que andar bastante até o lugar, não queria mais sair daquele barco, queria fazer o que tinha que fazer lá de dentro e mandar todo o resto pelo ares.
Fomos nos aproximando lentamente e Gomes tentava ver algo com o binóculo, parecia tudo muito calmo e não sabia se ficava feliz ou triste com isso. Talvez fosse mais fácil do que havíamos pensado, apenas acharíamos os quatro caras e a garota e daríamos um jeito neles, não sei bem se teríamos que mata-los, mas certamente não havia espaço no barco para prisioneiros ou caroneiros. Não ligava se tivesse que matar todos, já que estava no meio daquela merda toda, que se afunde de vez. O barco estava chegando perto da margem novamente e começamos a ver o motivo de tanto silêncio e nenhum movimento por lá, tudo estava destruído, bombardeado, fuzilado, toda aquela área havia sido incendiada durante a noite e a fumaça deve ter se dissipado com a brisa da madrugada ou enquanto lidávamos com o problema de Ian. Haviam corpos e restos de um acampamento, capacetes e fuzis espalhados pelo chão, nem uma viva alma por lá. O barco parou e fomos descendo e pisando em terra firme de novo, aquela sensação era sempre boa, como voltar para casa depois de ficar a noite inteira bebendo e se drogando e seu corpo encostar na sua cama quentinha de novo, aquela velha amiga nos esperando com seus braços relaxantes e macios:
  • O que aconteceu por aqui? - perguntou Pablo
  • Não sei...não tem ninguém vivo, não? - disse o tenente
Andamos em formação, com os nossos fuzis nas mãos, por entre corpos de nossos homens e dos inimigos, uma loucura, mutilados, ensanguentados, pensei ter ouvido um gemido de dor em um canto, depois em outro, mas não tinha como achar. Estava tudo muito sujo naquele lugar, lama e destruição davam uma ótima combinação num conflito daqueles, no meio da selva e às margens de um belo rio como o que estávamos navegando. Ficamos em silêncio procurando por alguém que nos explicasse o que tinha acontecido no lugar que tínhamos que descer e fomos surpreendidos por uma voz suave e amigável há poucos metros de nós:
  • Ei, amigos, aqui!
  • Quem é? - sussurei para August
  • Vou saber?
  • Bom, está do nosso lado...vamos logo – ordenou o comandante
Nos aproximamos do rapaz um tanto quanto gordo e barbudo, com um cabelo na testa e usando óculos, estava todo sujo de lama e sei lá mais o que, devia ter passado a noite embaixo de uma vala pra tentar salvar seu rabo. Ele acenava com as mãos para que nos aproximássemos e fomos acompanhando sua mão como filhotes de cachorro seguindo a mãe, ele tinha um sorriso calmo no rosto e parecia estar num parque, não num lugar onde havia ocorrido uma chacina. Suas roupas estavam rasgadas em alguns cantos e sua testa sangrava um pouco, no seu jaleco lia-se o sobrenome Braga. Chegamos e o tenente foi tirar suas duvidas, mas antes o rapaz se apresentou:
  • Olá, tenente Gomes. Sou o capitão Braga, mas me chamem de Charlie que é a mesma merda por aqui.
  • Como sabe o meu nome, senhor? E o que aconteceu por aqui? Temos ordens para descer aqui e...
  • Estou ciente de suas ordens, tenente. Eu e meus homens estávamos esperando pelos senhores ontem à noite, bicho. Iríamos escolta-los porque a coisa ficaria feia...e realmente ficou. Tiveram sorte! - riu o capitão
  • Bombardearam tudo? - perguntei
  • Sim, é claro, não estão vendo? Noite passada eles estavam acabando com a gente, estávamos quase que todos atrás das árvores há algumas dezenas de metros dessa área, os vermelhos estavam descendo bala em cima da gente e tivemos que chamar um ataque aéreo ou não sobraria nenhum de nós...e quase não sobrou mesmo..
Na hora lembrei dos clarões que havia visto na noite passada com Aldo e pensei que aquilo devia ter vindo na minha cabeça na hora. Fiquei quieto e não falei nada sobre aquilo, não achei que faria grande diferença também saberem disso ou não.
  • Hum, então acho que tivemos sorte de não ter alcançado esse lugar ontem de noite, senhor. Agora só temos que fazer nosso trabalho e ir embora – comemorou Pablo
  • Oh, sim...eu diria até que estão com mais sorte ainda, cabo. Porque o trabalho de vocês já está pronto – sorriu Charlie
  • Como assim, senhor? - Gomes levantou a sobrancelha
  • Bom, se não me engano vocês vinham até aqui para achar e apagar alguns espiões ou coisa do tipo, não é?
  • Sim, senhor. Quatro agentes e uma mulher infiltrados – confirmou Gerald
Olhamos um para o outro e senti que a nossa ida até lá havia sido a coisa mais inútil daquela guerra:
  • Todos...foram capturados ontem à noite – Charlie sorriu ainda mais
  • Como assim, senhor? Capturados? Nós que devíamos pega-los e dar um jeito neles - uma clara confusão parecia crescer cada vez mais dentro do nosso tenente
  • Tenente, olhe para esse inferno – e apontou para aquele campo lamacento – acha que tinha como ter controle de alguma coisa aqui? Enquanto vocês estavam por aí curtindo a natureza o bicho pegava por aqui, bicho! As pessoas morriam e desapareciam.
  • Mas como chegaram até eles, senhor? Não estavam aqui no meio dançando e cantando esperando por nós, certo?
  • Isso é confidencial, tenente. Posso apenas lhes dizer que um informante nos indicou a posição deles e fomos lidar com isso. Depois tudo foi pelos ares e agora me perdi de todos os meus homens.
  • Então não sabe onde estão as nossas pessoas?
  • Bom, na verdade não, bicho. Estão por aí, ou com nossos homens ou mortas, mas não estão mais em atividade, isso com certeza
Gerald parecia estressado, muito estressado, sentia sua raiva crescendo dentro de cada um de nós, fomos até lá para nada, perdemos dois companheiros para nada, toda aquela loucura e aquele rio foram nada no final de tudo. Aquela história toda cheirava muito estranha para mim, não acreditei naquilo de que foram capturados e agora estavam perdidos junto com os outros homens do capitão Braga, mas novamente fiquei na minha e não falei nada. Ficamos em silêncio um tempo e o sorridente capitão ainda sorria para nós e ninguém sorria de volta. Olhei para o barco que nos trouxe até aquele ponto inútil e lembrei do corpo do nosso jornalista que já ia começar a feder com aquele Sol em cima dele o dia inteiro:
  • É...tenente? Temos que dar um jeito com Ian lá dentro do barco.
  • Ahhh, e tem mais essa ainda. Temos um homem morto lá dentro, precisamos enterra-lo antes de...o que nós faremos agora, capitão?
  • Tenente, agora vocês podem voltar, oras. Desçam o rio.
  • Você está brincando, senhor, não está? - Gomes tinha uma certa agonia em sua voz
  • Como assim, cara?
  • Viemos até aqui e perdemos dois de nossos homens, senhor. Não seria justo com eles nós simplesmente voltarmos de mãos abanando para esse Sol, entende?
Charlie murmurou algo que não consegui ouvir ou ler em seus lábios o que era:
  • Sinto muito, tenente. Vocês podem ficar e me ajudar na procura de meus homens e depois ajudar com essa bagunça sem fim por aqui. E eu realmente adoraria se vocês o fizessem, apesar de não serem suas ordens. Mas, do contrário, não há mais nada para se fazer por aqui, não para vocês, bicho.
Gerald respirou fundo algumas vezes e pensou um momento no que fazer, a frustração em seu rosto era clara e senti pena por ele e por Eric e por Ian e por todos nós lá. Virou para nós e disse:
  • Rapazes, vamos dar um jeito no corpo de Ian, ajudar um pouco nessa bagunça e depois vamos. Não quero uma palavra, apenas vamos. Depois vocês falem o que vocês quiserem e eu finjo que ouço tudo.
Ninguém falou nada e seguimos para o barco, deixando o capitão sorrindo atrás de nós e procurando algum sobrevivente no meio de todos aqueles corpos nojentos.
As moscas já dançavam por cima da capa que cobria o cadáver de Ian Goldberg e o Sol parecia acelerar o cheiro de morte que começava a exalar. Aldo olhou para nós e não disse uma palavra, sabia ficar na sua quando devia, sabia a hora de ficar calado e isso vale ouro no nosso mundo. August e eu pegamos o corpo de Ian e a capa descobriu um pouco sua cabeça, que tinha uma aparência realmente asquerosa e aquilo me embrulhou o estômago na hora, engoli um seco e continuei sem olhar para aquilo, descemos do barco com cuidado e fomos andando até perto das árvores, onde tinha menos lama e deixamos o corpo no chão enquanto começávamos a cavar sua sepultura. Ficamos lá cavando por não sei quanto tempo e nem uma palavra foi reproduzida, se não me falha a memória. Quietos e obedientes, Gerald nos mandava fazer algo e fazíamos, estávamos no automático, estávamos putos pra caralho. Pablo Valdéz trouxe as coisas de Ian Goldberg e abri sua mochila para ver o que tinha lá dentro. Revistas, livros, letras de música e alguns poemas, bons poemas, bons contos, muitos desenhos, desenhos do nosso cotidiano e desenhos inspirados naquele LSD poderoso. Achei o desenho de quando Pablo e eu lutamos e ele estava de canto rabiscando alguma coisa, eramos nós dois lutando lá naquele papel, um ótimo desenho, guardei no meu bolso. O resto joguei tudo junto com o cadáver, seus lápis e seu equipamento, seus cadernos e seus escritos. Adeus, Ian. Desculpe-nos por sua morte desnecessária e suja.
Terminamos de enterrar nosso amigo e fomos ajudar a organizar aquele lugar, passamos a tarde recolhendo corpos dos nossos homens e ajudando a cavar algumas covas rasas para enterrarmos seus corpos, passamos a tarde naquilo e já estava cansado demais. Dias subindo o rio para chegar e ter que enterrar corpos? Só podia ser brincadeira. Mas continuávamos cavando e jogando homens dentro dos buracos, tirávamos as plaquetas de seus pescoços e munição de seus equipamentos e fuzis e os jogávamos dentro das covas e cobríamos novamente com aquela terra lamacenta. A tarde passou e joguei a pá no chão. Foda-se. Não ia mais fazer aquilo, não ia fazer mais nada e voltei para o barco, minutos depois August apareceu e se deitou no piso, ficamos lá conversando por algum tempo e ninguém veio falar nada. Trabalhamos duro, Gerald viu isso, acho que ele quis nos dar um descanso. Comentei com ele sobre aquela história mal explicada dos agentes ou sei lá o que que havíamos pegar, ele concordou comigo mas também não quis fazer nada. Não tinha nada para se fazer também. Pensamos em fumar um baseado mas estava preocupado com a reação do capitão se aparecesse por lá, apesar de parecer mais um hippie do que um militar, mas preferimos não arriscar e esperamos até sairmos daquele lugar.
Todos voltaram para o barco, inclusive o capitão, e comemos alguma coisa, finalmente. Estávamos exaustos e já havia passado da hora de partir, agora que nossa missão havia sido enfiada no cu da selva:
  • Obrigado pela sua ajuda e a de seus homens nisso aqui, tenente. Eu ia ter que fazer isso sozinho já que ninguém apareceu aqui desde ontem à noite – agradeceu Charlie
  • Não é nada, capitão. Viemos até aqui para nada, alguma coisa tínhamos que fazer antes de partirmos – disse Gomes
  • Sinto muito pelos seus homens mortos. Aqui nós perdemos nossos melhores amigos que nem perdemos a chave do carro. É uma merda completa.
  • Eu sei, senhor. Obrigado
Nos despedimos depois de comer e conversar por uma meia hora e Aldo ligou o barco. Capitão Braga abraçou o tenente e o agradeceu novamente por sua ajuda, nos abraçou também e nos desejou uma viagem de volta em segurança. Parecia ser um cara legal, apesar de sua história não ter colado muito. O barco acelerou e levantou bastante água, a noite começava a cair azulada e bela, os insetos começavam a cantar e acasalar nas folhas das árvores e os mamíferos iam dormir um pouco, lembrei de Eric von Demark e lembrei de Ian Goldberg e de toda a loucura que vivemos subindo o lisérgico rio que agora descíamos, e Gomes mandou Aldo acelerar aquela lata velha como nunca antes. Ele obedeceu. Obedeceu e fomos. E voltamos.