quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Paciente Leonard Naujocks, sessão nº 21.


Cena: O paciente Leonard Naujocks e o doutor Albert Serpens estão começando a consulta. Naujocks parece exausto e está quase deitado no diva. Dr. Serpens parece bem disposto em sua poltrona vinho.

O consultório é retangular e espaçoso, com uma estante de mogno no canto esquerdo e uma escrivaninha larga da mesma madeira na frente de uma janela com bastante entrada para o Sol, em cima da mesa há papéis, canetas, computador e alguns livros espalhados. Há alguns metros da mesa está a poltrona vinho do doutor e o divã preto no qual o paciente está acomodado. Os dois permanecem em silêncio um tempo, olhando um para o outro.

AS: Como vai, Leonard? Cara de cansado...

LN(olheiras e bocejo) Mal. Minha mulher....

AS: Acha que está traindo-o novamente?

LN: Não! Claro que não...espero muito que não. A maldita me chutou a noite inteira! Não dormi nada.

AS(ainda sério): Brigaram, Leonard?


LN: Nada disso, me chutou dormindo, achou que era um canguru pulando por aí, sei lá eu. Acho que sonhou que estava dentro das engrenagens no Tempos Modernos.

AS: ou então um cachorro perseguindo um coelho

LN: É, não tinha pensado nisso

Albert Serpens sorri e vai aprofundando na terapia

AS(voz amigável): E como vão as crianças, sr. Naujocks?

LN(bocejo demorado) ...Péssimas. Maria não fala comigo há uma semana e Junior t´´a mal na escola. Chamaram os pais mas é laro que Berenice me fez ir até lá e ficar com cara de babaca na frente do diretor e de uma caralhada de professor, coordenador, orientador, sei lá o que mais, tudo igual.

AS(olhar curioso): Todos? O que ele fez de tão sério?

LN: Um professor entrou na sala e o pegou praticando o que chamaram de discurso antisemita. Acredito nisso? Uma semana de suspensão! Viu o que o merdinha arruma pra minha cabeça? Disseram que estava até com o cabelo penteado pro lado gritando em cima da mesa com a mão no peito...meu Deus, vou coloca-lo no teatro quando chegar em casa.

AS: Você conversou com ele sobre?

LN: Ainda não, acabei de voltar da escola dela. Não ia nem passar aqui, passei porque era caminho, nem comi direito desde ontem. Eu saí de noite e acabei num karaokê, bêbado e cantando George Michael pra todo mundo que tava por lá. Meus amigos sumiram, me deixaram lá cantando para umas velhas cachaceiras. Filhos da puta, doutor, estou rodeado de filhos da puta. Por todos os lados. Um taxista queria me levar até em casa cantando marchinhas de carnaval porque estava sem rádio. Não tive escolha, Dr. Serpens, abri a janela e vomitei tudo na lateral do táxi. Eu avisei pra ele parar com aquilo, mas devia estar doido também. Ele me expulsou do carro, queria me fazer limpar aquela merda e eu chutei sua porta.

AS(abafando riso): E como voltou pra casa, sr. Naujocks? Estava longe?

LN(nervoso): Estava há milhas da minha casa, doutor! Tava puto! Fui andando mas voltei ao juízo e achei um ônibus pra me tirar daquele centro logo.

AS: E você tinha algum motivo pra beber no meio da semana?

LN(olhar confuso): E precisa de um motivo pra se beber algum dia?

AS: Leonard, você já pegou pra se perguntar se não é um alcoólatra? Digo, você sempre me conta pelo menos uma ou duas histórias com álcool ou bebedeiras homéricas quando sua mulher não está em casa ou quando você não está em casa. Acho que você já passou do nível social, entende?

LN(relaxando novamente no divã e bocejando): Não esqueça das bebedeiras quando não consigo escrever ou em convenções sociais insuportáveis. E não consigo escrever nem meu nome ultimamente.

AS: E as tais convenções sociais?

LN: Ando aparecendo em muitas ultimamente, entende?

AS(olhos para cima): Sr. Naujocks, o senhor se importa se eu fumar aqui?

LN: Não, não. É o seu consultório, oras.

Albert Serpens levanta-se com calma e vai até uma gaveta em sua escrivaninha, Retira seu cachimbo de madeira e pega o tabaco em um recipiente de vidro trabalhado em sua mesa, volta para a poltrona vinho e começa a preparar o cachimbo.

AS: Por favor, continue, Leonard. Você dizia sobre esse seu problema com a bebida...

LN(franzindo o cenho): Não falei que era um problema, consigo segurar essa onda numa boa. Você que tocou nesse assunto aí.

AS: Então sobre o que você que falar?

LN(pensando): Não sei...talvez sobre a minha teoria de que a primeira capa da Playboy não era Marilyn Monroe. Nunca que aquela garota é a Marilyn, doutor. Podiam ter colocado a Betty Boop, antes um desenho do que uma farsante, né?

AS(desanimado): Não sei, Leonard. Realmente não sei. Você disse que sua filha não falava com você há uma semana. Por que isso?

A primeiras baforada de fumaça sai da boca e do cachimbo do doutor Albert Serpens, cobrindo-o em uma neblina por um momento.

LN: Belíssima fumaça, doutor. Adoro o som do fumo queimando.

AS: Eu também, Leonard.

LN: Me lembra uma fogueira da Inquisição queima...

AS(impaciente): Leonard, sua filha?

LN:(lembrando-se da pergunta após um curto bocejo) Ahh, Maria não fala comigo porque dei em cima da amiga dela. Ou isso é o que ela diz. Eu só servi vinho pra garota enquanto minha filha estava lá em cima no banho e quando ela chegou achou que eu estava dando em cima.

AS: Não tentou explicar pra sua filha o que aconteceu?

LN(bem agitado): Claro que tentei, dr. Serpens. Acha que gosto de ser tirado de tarado? Mas ela é louca, minha família só tem doido, não acabei de falar daquele pirralho nazista discursando contra os judeus no meio da aula?! Comentei que a escola foi FUNDADA por malditos judeus? Eles são loucos, doutor, são todos loucos e estão me deixando doido igual a eles.

AS(ainda calmo perante o nervosismo do paciente): Mas a amiga não falou nada para explicar?

LN: NÃO! Estou rodeado de filhos da puta, doutor. Todos querendo que eu os arruma e os carregue nas costas.

Doutor Albert Serpens levanta novamente sem falar nada e vai até um quadro com a imagem de Sartre que fica ao lado da estante de mogno repleta de livros.

AS(encarando o quadro com uma das mãos no bolso): Sabe, Leonard, desconfio mesmo que seu problema nada mais é do que um estresse crescente e inacabável que o seu trabalho e vida familiar causam, ocasionando esses seus ataques de fúria, melancolia e descaso na voz e nas palavras quando fala da sua família, entende o que digo aqui?

LN: huum...

Serpens puxa o quadro com a mão, que abre para o lado como uma portinhola, revelando a porta de um pequeno cofre com abertura eletrônica.

LN(olhando para o cofre): Um clássico...

O doutor abre o cofre e tira de seu interior escuro dois copos e uma garrafa de conhaque.

As(voltando para sua poltrona vinho): Enfim, você está sob um estresse significante, não seria grave normalmente, mas acho que pode levar à depressão se você não der um jeito nisso agora.

LN(arregalando os olhos para a garrafa) E o senhor tem em mãos o melhor dos remédios para me passar, não?

AS(enchendo os copos): Acho que seria melhor o senhor tentar escrever mais e dar mais atenção à sua família. Diminuir a birita também, sr. Naujocks.

LN(nervoso): É isso? Eu pago cento e cinquenta pilas a hora para você vir e me dizer isso? Acha que não sei disso? (vira o copo num gole e coloca-o de frente para a garrafa, indicando para o doutor enche-lo novamente) Se eu soubesse não teria vindo aqui, iria gastar essa grana no spa, num restaurante, no bar, na porra do puteiro, não sei...

Albert olha para o paciente reclamar com o copo numa mão e o cachimbo soltando um filete de fumaça densa na outra, sem silêncio.

LN(decepcionado): E eu não consigo escrever nada, estou com aquela porra de bloqueio. Achei que isso não existia, mas agora parece que estou naquela perseguição no Blues Brothers. Minha ideia imortal está no carro, correndo de todo o contingente da polícia de Chicago e eu sou o capitão da polícia, com uma garrafa na mão e minha família embaixo das rodas da minha viatura .(para de falar por um momento) Ou então amordaçados no porta molas. Jogaram gás mostarda nas minhas ideias, doutor. Estão todas destruídas e mortas, com o pulmão todo furado e corroído pelo gás. (bebe mais um trago do copo que Serpens encheu) Trincheiras e mais trincheiras cheias de ideias mortas e vazias. Perdi a cabeça em algum lugar, doutor Serpens.

Doutor Serpens bebe um gole de conhaque e puxa seu cachimbo.

AS: Novamente, Leonard, você está passando por muito estresse, só isso. Não que não deva se preocupar, mas procure um esporte ou algo do tipo, arranje um animal de estimação que também ajuda muito.

LN: Não! Sem esportes, última competição que participei eu passei o resto do dia vomitando na privada.

AS: Que tipo de competição, Leonard?

LN: Era um de quem comia mais cachorros quentes em meia hora. Comi uma cacetada e em cheguei em terceiro. Sou um desastre em tudo, cara...

AS(impaciente, com olhos virados para cima): Você não se cuida e não cuida mais da sua família, está decepcionado com o jeito que as coisas estão em casa, está cansado dos problemas que seus filhos lhe aparecem e que não fazem o menor sentido, não aguenta mais o imperialismo de Berenice, tudo isso o leva a esse bloqueio de ideias, ou melhor, à sua crença de que nenhuma de suas ideias vale alguma coisa, porque você acha que não vale nada nem para a sua família. Mas pare para pensar como seria a vida deles sem você, Leonard. Onde estariam?

Leonard Naujocks termina seu copo novamente e permanece em silêncio na sala iluminado pelo Sol e os dois homens se encaram .

LN(mais nervoso e agitado do que antes): Estariam na merda sem mim! Só não estão na merda agora porque eu seguro essa merda inteira com as mãos, tenho que segurar toneladas e mais toneladas de coco mole todos os dias para que eles não tenham que engolir tudo de uma vez. E o que ganho por isso? Mais uma pratada de bosta pra comer, nem um bife ou Coca pra ajudar a engolir. Merda pura mesmo.

Albert permanece em silêncio e deixa Leonard falar, mas o paciente cala-se e olha para o teto, deitado no divã.

AS(apoiado no braço da poltrona vinho): Você toca algum instrumento, sr. Naujocks?

LN: Não encosto em um há tanto tempo quanto Mama Cass num microfone. Tenho tendinite, não consigo tocar nem cinco minutos de uma tocata bachiana ou um estudozinho de Villa-Lobos, meus dedos ficam duros que nem nervos de boi congelados e quando me dou conta estou parecendo o Aleijadinho Superstar tendo uma convulsão.

AS: Já pensou em meditação? Sei que é cético quanto a essas coisas, mas foi comprovado cientificamente os seus bene...

LN(cortando o doutor): Ahh, eu lá tenho cara de quem perde tempo meditando? Mantra? Iluminados e nirvana e essa porra toda...prefiro a iluminação de um poste de rua no meu rosto, caído chapado em alguma viela com um bando de vagabundos e

AS(também interrompendo e levantando-se para andar pela sala novamente) Leonard, desculpe, mas desde quando você se tornou um idiota? Nas suas primeiras consultas você parecia mais controlado e focado do que hoje. O senhor não se atém a nada além das suas neuroses familiares e crises clássicas de bloqueio de criatividade que qualquer escritor, melhor, qualquer artista tem durante sua existência. Você precisa se acalmar, pare e medite um pouco, porra (bate em sua mesa com pouca força, ajeita o cabelo com as mãos e deixa o cachimbo na mesa)

Leonard olha intrigado para o alterado doutor Serpens.

AS: Vá para a casa hoje e pense nessa sua bebedeira e na sua família, sr. Naujocks. Lute contra a sua submissão perante sua mulher e não eduque a porra dos seus filhos como nazistas ou patricinhas mimadas que só existem para arrancar o seu dinheiro.

Leonard olha perplexo para o psicólogo, que volta à razão e dirige-se ao paciente

AS(sem graça e envergonhado): Bom, sr. Naujocks...me desculpe...me alterei aqui...

LN(relaxando): Tudo bem, se você não estivesse certo eu até quebraria essa garrafa, depois de esvazia-la, na sua costela. Mas você infelizmente está certo, então foda-se isso.

Os dois se encaram e os copos estão vazios.

LN: Já vou indo, cansado demais para ficar de papo pro ar aqui, doutor. Ainda tenho uma tarde inteira para dormir. Uma última para a viagem de volta? (ergue o copo para Serpens)

AS(aparente alívio na voz) Por Freud, sim.

Doutor Alber Serpens vai até a garrafa de conhaque e enche os copos com doses generosas. Passa para o paciente que vira metade em um gole.

LN(suspirando): Caramba, esse conhaque é bom demais!

AS(após um gole): Eu sei, ganhei de um paciente. Vira e mexe a gente ganha alguma coisa nesse ramo. Pacientes agradecidos por alguma coisa que ainda não sei o que.

LN: Bom, até semana que vem então, doutor Serpens...eu acho. Aquela tarde não será dormida sozinha, haha. (vira o resto do conhaque e entrega o copo a Albert)

AS: Até, Leonard.

Leonard Naujocks aperta a mão do doutor, sai e fecha a porta do consultório
Albert Serpens vai até sua mesa e senta-se de frente com o Sol na janela, bebendo o conhaque.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Noite mais sombras.


À noite as sombras caem
cobrindo como uma manta negra
todas as vivas almas
os gatos bandolam
cães ladram
homens destroem seus templos
crianças dormem
poemas imortais nascem, filhos prodígios de milhões de vadios espalhados pelo escuro
as putas e os loucos
fazem parte da mesma massa.
Um tiro.
Dois tiros.
Latidos e miados, baratas por cima dos ratos
latas de lixo tombadas, vandalizadas, incendiadas
a Lua gorda é perfeita
sozinha no topo
estrelas não existem na cidade, não
nossa ignorância barra sua luz cósmica e pura.

Ninguém. Ninguém
apenas ruídos pela metade. E a Lua.

Uma parte da raça humana para.
                  Dorme.
Os vermes continuam trabalhando embaixo da terra.
                 Lá é sempre noite
Batalhões de formigas varam a floresta negra
onças bandolam como seus primos felinos
                           à noite.

Um bebum rola ladeira abaixo
e seu copo continua inteiro, noite.
As escolas parecem escombros de guerra sem a vivência do Sol,
os prédios são banhados pela sombra e o canto dos pássaros está morto até a próxima aurora,
noite.

sábado, 27 de outubro de 2012

Haikai I



Lá fora o gato ladra
A noite traga o ébrio
Tranco-me.

**

Pitangas vermelhas
o muro, a avenida
fumaça civil.

**

Silvo da noite
Um amigo se foi
A morte ronda.

**

Sentado como Buda
verão e o ancião
cigarrilhas de uva.

**

Verde montanhês
com esculturas brancas
monges e mantras.

**

Pequeno tatu,
  Hortelã o perfuma
        Charme natural.

**

Preso na gaiola
Verde com amarelo
Canto sem asas.

**

Cinco minutos,
sete sílabas justas
o tempo já planou.




quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Os dias correm como cavalos


Os dias correm como cavalos
e o Sol continua parado
e o vemos ir dormir
mas apenas giramos no espaço
enquanto ele está lá, incansavelmente
parado.
as pombas continuam cagando em nossas cabeças,
cagalhões maiores que dos cavalos
que correm tanto quanto os dias
de nós.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Run, Joe!


Se alguma coisa
música, livros
mulheres...
artistas de uma aurora
acrobatas nas quartas e domingos
se algum desses
atingirem o agrado
de todos

fuja, apenas fuja
e não olhe para trás
deixa a onda devastar a cidade
e se esconda, fundo.

DROP THE BOMB!

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Sometimes I feel I can't take five more minutes here.


You better shoot me
on the top of my head
and then it's gone, I'm not gonna
steal the precious oxygen
or contribute to the destruction of the Amazon and the rainforests
not gonna dream again
or fantasize
shoot me and I shall not feel miserable again
And nobody will have to live with me
or read the dull things I wrote
and you can set all of my books on fire
cut off all of my portraits
where my awful shape shows up
five or six may cry for a while
and then they'll keep their lifes again
and I'll be just what I always was
a shadow of laughs
of jokes
a storm of uselessness on a glass of water
The rainbows will still come out after the rain
The blondie girls and the brunette with green eyes and beautiful pink lips
will keep having their affairs
The pop songs will still be written and their artists will get laid several times
with their handsome faces
while I'll be in a room, in a box
with a bullet somewhere inside my head
laying down, resting
not feeling like some bum's crap
feeling only the blackout
The last Human Condition.

Sometimes I feel I can't take five more minutes on this world...
you know?

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Trombada.


Os primeiros raios laranjas
do Sol batem nas pálpebras
fechadas
do garoto moreno
elas se abrem
a esquina estava vazia e o
Sol iluminado
garrafas vazias, projetando seus próprios
arco-íris no chão
S    al   pi  c    a do de areia
um fino tapete
que vinha da praia durante o dia
e durante a noite também

Puxou o cobertor que cobria a ele e a sua mãe
-tomou cuidado para não acorda-la-
pegou a bolsa estropiada e
desbotada da mãe
procurou um pão
um pedaço
uma
migalha
cacos e mais cacos
nada que servisse para alimentação
deles de alguma forma;
jogou a bolsa de lado e ficou um tempo
sentado
na calçada, ao lado da adormecida maternal
pensando em uma padaria sem ninguém
só ele e sua mãe
e pães e leite
naquela hora era o que precisava ser pensado
apenas pensado mesmo.

Levantou-se com preguiça e jogou o seu pedaço de coberta
em cima do corpo da mãe
encarou seu rosto relaxado e adormecido
pensou na padaria novamente
e saiu andando para a rua logo depois da esquina.

O Sol laranja era lindo e simples
seus raios faziam o mar parecer
um show de fogo e água
lutando cada um por sua
beleza natural, dando o prêmio aos que madrugavam no litoral.
Forma natural da beleza. O garoto correu para a areia e seu pé sentiu
o frio
o formigamento
daquele terreno;
pensou em nadar
tomar um banho e tirar o cheiro de rua
"Não", pensou
-tinha comer, tinha que arranjar comida para a mãe, dinheiro talvez, não há tempo para brincar ou banhor de mar-
Tirou sua camiseta suja e doada pelo lixo
sentiu a brisa da manha bater em seu corpo de homem juvenil
as pequenas cócegas que seus quase que inexistentes pelos provocados pelo
vento fraco
fazem seu diminuto e já sofrido corpo
vibrar com vida;
fechou os olhos por um momento
para sentir aquela sensação que não custara nada
não matava, não dava fome ou atirava.
Estava simplesmente lá
aquela onda
o mar, a areia, o Sol laranja
seu corpo conectado a tudo isso
seus olhos fechados, sentindo-se bem
estava na padaria com a mãe, os pães, o leite, doces...

O mar batia atrás do garoto
enquanto voltava para a rua
a areia ficando mais fofa e fria
calçou aquela sandália que agora era um chinelo
subiu a escada
e estava na calçada salpicada de areia novamente.

Poucos carros e menos pessoas ainda
imaginou que devia ser algum feriado
-se fosse, havia acordado cedo, o dia não começaria aquela hora-

Caminhou olhando para o Grande Sol caminhar lentamente até o topo do dia
não estava mais laranjada, estava perdendo essa cor e tornando-se amarelado
aos poucos;
sua barriga roncou
sua barriga roncou
novamente
mudou de calçada
viu um boteco abrindo
o do seu Alfredo, velho bom
sempre o tratava como gente
como garoto
não o chutava ou expulsava
"Bom dia, garoto" – sorriu o velhote
o garoto sorriu e abanou com as mãos
viu umas bandejas e salgados embaçando o vidro do balcão
sua barriga roncou
e roncou tão forte que até o seu Alfredo ouviu e sentiu um frio subindo pela sua espinha velha:
"Quer comer um desses, menino?" - perguntou
o garoto magrelo sentiu uma pontada na cabeça e sua barriga cantou uma canção apaixonada
"Qual você quer?"
ele olhou para todos aqueles salgados
uns maiores, outros mais recheados
mais oleosos. Apontou para a coxinha,
o senhor abriu a portinhola de vidro
fumaça cheirosa, fresca, os salgados respirando o ar matinal
agarrou a coxinha com um guardanapo
o óleo ao redor molhou o guardanapo
os olhos do garoto
se abriram
brilharam
aquela bela e recheada coxinha, cheia de frango
ele ia ganhar aquilo. Seu Alfredo mais uma vez foi bom;
ele esticou a mão
Alfredo esticou a mão com o guardanapo manchado de óleo
ao redor do corpo redondo da coxinha

Abocanhou
Quente
Saliva
Dentes
Engole

Era perfeito. Olhou para o velho:
"Obrigado"- envergonhado
Alfredo sorriu. Apenas sorriu
voltou para seu trabalho na pia.

O menino sentou na guia, de frente para o mar
agora perdendo as chamas
aquela coxinha perfeita
o garoto a devorava em grandes dentadas
e pensou em guardar um pedaço para a mãe
ia comer metade
guardar o resto
ela ainda deixaria umas mordidas
para o rebento;

Observou a rua e imaginou como seria escrever
e ler
e saber o que tinha no jornal
e na internet
o que aparecia nas TV's dos bares e padarias
decidiu que ia aprender a ler
e ensinar sua mãe depois
aí poderiam ler os jornais que achavam
que dormiam, que tentava decifrar aquelas desenhos e o que os personagens falavam nas tirinhas.

Pensou nisso tão profundamente que esqueceu de guardar o pedaço para a mãe.
Enfiou o último naco na boca
e lembrou
não podia fazer mais nada. Mastigou o último pedaço quente da coxinha
engoliu, ótimo café da manha.

Não poderia saber quando teria outra dessas novamente.
Sua barriga pediu mais
ele a ignorou
ela devia dar-se por satisfeita.

Ouviu chiados vindo há poucas quadras
chiados que pausavam
continuavam
um parava e outro começava
formando uma sintonia de chiados
ele já havia ouvido esses chiados
se aproximou dos chiados que chiavam
e viu no chão a origem de tanta chiagem
constante, o que imaginava
garotos de boné, pixando um muro branquinho
skates no chão, jets chiando no muro
umas espécies de letras e números
-imaginou o garoto-
que vidrou naqueles cinco garotos de boné
no raiar da manha
desenhando a parede com belos rabiscos e tintas coloridas;
eles perceberam o garoto
comentaram algo entre eles
um deles com pele cor de papelão
e um boné cinza
-que o menino gostou-
entregou-lhe um spray vermelho
o menino sabia o que fazer
mas não como fazer
e ficou apontando com o spray vermelho na parede sem saber como aciona-lo
e se o conseguir, o que escrever?
Não sabia escrever. Sabia uns desenhos
o garoto do boné cinza e
pele cor de papelão
riu e explicou-lhe como fazer
pegou em sua esquelética e esfomeada mão
a mão cor de papelão cobriu toda a mãozinha do garoto, ele apertou seu dedo com aparência de palito
e um jato vermelho pintou a parede
e escorreu um pouco
"sangue", pensou o pequeno
desvencilhou-se da mão de boné cinza
e fez um risco na parede
em seguida lembrou de um dos únicos desenhos que sabia
um balão
pixou o balão, que chiou
e ficou bonito
e os cinco garotos de boné
e skate
riram e conversaram com o menino
e parabenizaram-no pelo balão vermelho
o garoto sorriu e se despediu
e seguiu seu rumo
em busca de sobrevivência
apenas.

Aquela manha parecia passar rápido
o Sol subiu apressado
e as pessoas começavam a aparecer
pelas ruas
amareladas pela estrela acima de todos.

O garoto sentiu que precisava
dar de comer
para a mãe dormindo
não tinha dinheiro, nem mesmo moedas
nem mesmo a bondade das pessoas da cidade
que era inexistente;
o ronco de sua barriga acompanhou o sol das ondas quebrando
aquele coxinha não fora suficiente
embora o tivesse dado uma energia naquela manha
pensou na mãe, arranjaria um presente para ela
algo para comer ou usar
ou vender
não tinha como arranjar grana naquele momento
honestamente
não queria ter que correr da polícia
e se arriscar
porém avistou uma moçoila
dando mole
um colar grosso de ouro
brincos e pulseiras, celular na orelha
agiu por instinto quando a loira passou ao seu lado. Pulou em sua cintura e escalou até o pescoço feito um macaco
puxou o pingente dourado
na descida do corpo da moça
puxou duas pulseiras
-uma prata, uma dourada- foi ver mais tarde
a mulher gritou, é claro
o menino correu
a moça gritou
o menino correu mais
a garota ainda gritava
alguém o perseguia
ele corre mais
SLAM – AHHH
Algo o atingiu com força na costela
ele não para, não para
alguém ainda o persegue
o Sol estava lindo
viu um muro que dava para uma vila, de lá entranhava-se nas ruas e estava livre
correu
a polícia o perseguiu com o cacete em punho
pulou
agarrou o muro num esforço só
já estava do outro lado
a polícia gritou do outro lado
ele diminuiu o ritmo mas ainda corria para o outro muro da vila
um ou outro olhavam
as mãos do trombada reluziam com a luz do Sol
ele riu
pulou, esforço único, rua. Voltou a andar
achou seus atalhos e escondeu os presentes de sua mãe na calça
estava atento para qualquer coisa
estava de manha
as árvores faziam sombras suaves e ainda era possível ouvir as ondas quebrando e morrendo na praia.
Como sempre devia ser.
Pensou naquela padoca
e ela não parecia tão distante assim agora
sorriu de leve e foi correndo para a mãe.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Do mundo e da fantasia.


Ando perdido
distante da realidade, com reflexões fantásticas
sobre o futuro, sobre a vontade do destino que parece desgostoso

Ando num mundo imaginário
atrás de uma floresta de ligações
cerebrais, rios e cachoeiras e
depressões de serotonina
neurônios como lufadas de ar
mandando mensagens auditivas para meus ouvidos
tornando as fantasias assustadoras

Ando fantasiando sobre tudo
muito mais que o recomendado pelos doutores
mundo fantástico
grandes personagens, grande protagonista ou figura pública escarrada
boêmia e festas sujas

As pessoas vem e vão, assim como o tempo
mudamos e crescemos e evoluímos e continuamos os mesmos até cumprirmos nosso papel
até lá nós continuamos fantasiando e mandando e afundando e capengando
eu sim, outros também. Espero
ou seria mais um doido na rua querendo atenção por alguns minutos enquanto riem de sua cara.

Converso com velhos bêbados e sozinhos nas ruas
e me sinto melhor do que com os outros
não sei e não quero saber o motivo
eles tem assunto, tem histórias
viveram e fantasiaram suas fantasias nas ruas
na cachaça, na loucura
já as esqueceram por completo, foram apagadas de suas memórias intoxicadas e de seus seres
agora são como cães querendo atenção
por aí
eu dou atenção
não tenho mais nada a oferecer mesmo
não costumo me arrepender
me arrependo menos do que conversando com outros, com suas realidades comuns e mesquinhas; fantasias iguais enaltecendo gostos conservadores
radicalismo de berço de ouro

e os bêbados e loucos são apenas bêbados e loucos, cumprem muito bem essa simples função
eu ainda não sei a minha, logo
não sou som em nenhuma
apenas em conversar com eles
e fantasiar como ninguém
a todo o momento agora
agorinha mesmo
enquanto procuro palavras para terminar isso
e alguém nasce e outro perde a cabeça
em algum canto do mundo e da fantasia.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

two guys, a girl, a bar and a soda.


Two guys, a girl, a bar and a soda
that's what it was need it that night
this night
when we talked for hours, sweat a lot
like three crazy amount of existence
different kinds of existence.

we walked to some dark and kinda big park
then we spent some time talking
two guys, a girl and a soda
we drank a lot of soda
the night was dark and nothing great was happening
we found a bar
the two guys
the girl
and the damn soda
we're all just feeling fine
the two guys
us
were talking
and drinking that soda
not feeling like drinking beer or anything
just were talking a lot
playing some snooker
we sucked at this
the two guys
and we were enjoying the company of the nice girl
kinda hot
carol is her name, i guess
we didn't ask her
but we enjoy
she blew us sometimes, both of us
that white skinned girl made the two of us happy for a moment
they were talking and she were blowing them
both of them
us
two guys, a girl, a bar and a soda

we get out of that bar
we were tired of playing that game
the two guys sucked on that game
like that girl sucked
she don't worth shit
but what the two guys, us, could do?
She wants to make them feel good
because they've been passing through some fuckin' problems
lately
not real problems
but little things that make normal
and crazy people
go mad.

That white and brunette girl was there with them
us
two guys, a girl, a bar and a soda
they were just hanging out
on their neighborhood, in the middle of the week
just good time
chatting, playing, laughing and getting pissed with silly things
normal things
I thought about my friend
a girl
that i met again, two streets below mine
she's so pretty since the last time we talk
and lives just around me
for years
maybe i'll try something with her, when the white and brunette girl stops blowing me and him
two guys
drinking soda
then a beer, we don't really want to drank that beer
but we drank it anyway... beer, man!

The
two guys, a girl, a bar and the soda
get out of the bar
enough of the fucking table with the balls we can't catch
fuck off the old bartender
conservative fucker
we drop out of that boat
and started to walk
no destiny
riding across the dark streets
talking like never
the two guys
the girl was quiet now
she blew us and then she did what every cunt should do
shut the fuck up; what a pleasant evening, ladies and gentleman.

They, us
walked through some dark places
very dark places
full of high on shit dudes
wanting some fun with our white and brunette girl
but they won't get it nothing from us
not even from her
even being a freaking cock-loving bitch.

After a while we went to our houses
two guys and a another soda
i picked up a book on my brother's house
the girl went away for her house
the two guys
us
kinda missed her
she's a nice company
but she'll be around sometimes
a hot girl like her wouldn't hang out alone on those dark and dangerous streets
we'll protect her from all the lunatics and motherfuckers
from us
from the bar
and then we'll split apart again
two guys, a girl, a bar and soda.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O cão ladrava pelas ruas...




O cão ladrava pelas ruas de um bairro residencial qualquer, em uma cidade movimentada qualquer, pra ele não fazia diferença. O céu já estava escuro e o cão andava de cabeça e cauda para baixo, com frio e procurando algum saco de lixo para revirar, talvez achando um osso com fiapos de carne ou resto do que os bichos maiores deixavam para fora de suas moradias. Abocanhou um saco branco parado na sarjeta e o levou até um canto escuro, aonde a luz forte daquele poste não o revelava na calada da noite. Mordeu até rasgar o nó que fechava o saco e jogou todo o seu conteúdo no chão: papéis sujos, úmidos, palitinhos azuis sujos de amarelo nas pontas, "Merda", pensou o cão, e foi andando pelo meio daquela rua escura e parcialmente inóspita.
Carros passavam apressados pelo cão, com seus donos xingando e discutindo entre si. O cão ia pela calçada quando avistava ou ouvia um carro com outros animais dentro se aproximando, já havia perdido companheiros para aqueles animais e aprendeu da forma mais cruel como se portar naquelas ruas aparentemente calmas e vazias. Ia passando por uma casa pintada toda de azul e, em frente ao portão, percebeu uma pequena pilha de sacos de lixo e de mercado. Foi empolgado em direção ao lixo e olhou para os lados procurando algum outro cachorro que quisesse disputar a posse daquele lixo. Estava tudo limpo e ele seguiu alegre para os restos deixados pelos humanos. Abriu um dos sacos lá mesmo e se deparou com um cheiro maravilhoso quando enfiou o focinho dentro, fuçou e fuçou e agarrou restos de uma lasanha em um prato de plástico. Lambeu o prato até sentir que não havia nenhum vestígio e pariu para a próxima sacola, aonde achou um pouco de arroz, feijão e o seu preferido, o prato da noite, carne. Bom, um pedaço de osso com fiapos e gordura, mas mesmo assim era carne e devorou tudo com vontade e sua cauda balançava com entusiasmo em movimentos involuntários. Achou um pouco mais de comida e umas frutas podres em outra sacola mas não teve tempo de comer porque um homem saiu de uma de suas casas e expulsou o cão a pauladas, gritando e amaldiçoando-o em língua humana. O cão saiu daquele rua o mais rápido o possível, com a barriga cheia e rindo do homem que queria espanca-lo.
O cão divertia-se e distraia-se com os cheiros e criaturas da noite, andava com o focinho apontando para o chão, guiando-se mais pelos cheiros daquelas ruas do que pelo que seus olhos viam. Já parecia estar bem de noite e o cão parou para dar uma cagada no calçada. Estava terminando quando viu um vulto acizentado passar de uma calçada a outra numa velocidade impressionante, seus olhos já ficaram em alerta e foi à procura do vulto que tinha passado atrás de um carro e não saído de lá. Foi calmamente em direção ao carro e, conforme se aproximava, sentia aquele cheiro ficando mais forte, um cheiro que de alguma forma sempre o instigava e o deixava furioso. Chegou perto da roda do carro e começou a cheirar tudo o que podia, enquanto aquele aroma que vinha do vulto estava no seu ápice. Chegou na roda traseira e o gato saiu correndo em um pinote só pela rua, o cão começou a correr o máximo que podia e deu uns latidos para o gato, mandando-o parar. O gato provavelmente não entendia a língua dos caninos e correu e correu até achar um muro de uma escola e dar um jeito de subi-lo enquanto via o cão diminuir a velocidade e olhar para gato parado lá em cima, sereno e imóvel como se não tivesse quase sido despedaçado por um cão de rua. O cão rosnou para o gato, que respondeu com um miado agudo e despreocupado. Pulou o muro e caiu do lado de dentro da escola, aonde foi tratar de sua vida e o cão fez o mesmo, seguindo para uma praça onde avistou uns seres fazendo algo.
Três humanos estavam sentados nos bancos fazendo alguma coisa e bebendo o que parecia água para o cão. Sentiu sede e foi se aproximando deles, alerta para qualquer hostilidade vinda daqueles seres do sexo masculino. Tudo parecia bem e ele chegou aonde os três estavam sentados, eles conversavam em sua língua e tentavam chamar a atenção do cão que se aproximava deles. O cão roçou na perna de um e cheirou sua mão, um dos homens começou a afagar os pêlos sujos e fedidos do cão e parecia não se importar com isso, "tomara que ele não cheire a pata depois", pensou. Os três olhavam para ele e faziam brincadeiras com o cão, que se sentia um tanto quanto à vontade naquela praça escura, na presença daqueles três outros animais. Viu aquela água na mão deles e abriu a boca e pôs a língua pra fora, como se estivesse pedindo pela água. Os homens comentaram algo entre eles e um deles esticou a garrafa para o cão cheirar, tinha um cheiro forte e o cão não se lembrava de ter sentido um cheiro assim. Se interessou e o homem deixou um copo até a metade com aquela água no chão, para ele beber. Meteu a língua dentro do copo e aquilo tinha um gosto estranho demais, forte demais e quase fez o cão sair daquele lugar, mas aquela água esquentou sua língua e sua garganta e ele se sentiu bem com aquilo e deu mais umas linguaradas no copo. Os humanos pareciam se divertir com aquela cena e o cão, após sorver metade da quantidade de líquido que tinham lhe dado, deitou embaixo do banco onde eles estavam e ficou lá por um tempo. Se sentiu estranho depois de alguns minutos deitado lá, tonto e com o corpo mole, levantou-se e deu uma volta pela praça, cambaleava um pouco de um lado para o outro e ouviu os humanos dando risadas, Não entendia o que estava acontecendo e deitou-se novamente próximo aos homens, ficou lá um bom tempo, sentindo-se tonto e mole, estranhamente alegre, enquanto os três homens brincavam e conversavam com ele. Colocaram mais daquela água no copo do cão e ele bebeu um pouco mais. Passado uns trinta minutos os homens se despediram do cão e foram embora, deixando-o com o seu porre, sozinho.
O cão vadiou mais um tempo na praça, deu mais umas linguaradas no copo até não atingir mais o líquido no fundo do recipiente e foi dar uma volta novamente pelas ruas. Havia muito silêncio e solidão naquele bairro aquela noite, pensou ter sentido frio, mas ainda estava zonzo e anestesiado pela água mágica que os humanos deram-lhe na praça. Andou e andou e começou a sentir muita sede, não sabia aonde poderia arranjar água naquela solidão de ruas apagadas e sonolentas. Parou ao lado de um carro e deu uma bela e longa mijada em sua rua até se sentir completamente aliviado e até mais leve. Subiu umas ruas e o cheiro dos outros cachorros era forte, casas de humanos formavam um grande corredor com seus portões grandes, pequenos arame farpado e cercas elétricas, árvores fazendo sombras nas sombras da noite e o cão andava ébrio no meio daquele corredor e aquilo reacendeu uma estranha e esquecida fagulha de memória na mente do cão, aquelas casas e aqueles portões lhe eram mais familiares do que pareciam, as árvores na porta e os cachorros vizinhos pareciam ser algo vívido em sua cabeça, de alguma forma, mas o efeito da água mágica o fez esquecer logo daquela fagulha que tentava se acender no fundo de seu inconsciente e voltar sua atenção para a noite que vivia agora. Passado alguns metros, um cachorro começou a latir furiosamente para o cão, que se assustou mas não perdeu o andar na frente do semelhante trancado do lado de dentro do portão. Latiu de volt dizendo: "Imbecil, fica preso aí e só sai quando o deixam", o outro ouviu e respondeu nervoso "Seu vagabundo sujo, fica ladrando e só come quando tem um lixo que ainda não foi revirado por outro cachorro vadio", "Fresco", "Vira lata". E seguiu seu rumo, ignorando o latido de outros cachorros que quiseram se intrometer na discussão. O cão aproveitava sua aparência de lobo para obter mais respeito vindo dos outros seres, os cachorros da rua latiam até vê-lo passar calmamente, não dando bola, e depois calavam-se novamente perante seus longos pêlos escurecidos em umas partes, esbranquiçados em outras e orelhas levantadas, deixando parecer que havia se perdido de sua alcateia.
Chegou ao final daquele corredor de caninos acordando seus donos e ainda se sentia baleado e confuso e estranhamente alegre pela água amarga que havia tomado, "Podia ter dado mais uns goles", lamentou, mas aquela água havia deixado-lhe com mais sede do que antes e pensou que foi melhor não ter tomado mais daquela coisa mesmo.
O sono e o cansaço atingiram finalmente o pobre cão vagabundo e agora somavam-se à sede que o atormentava. Não se sentia mais tão tonto ou quente, apenas cansado e muito sonolento, continuou andando e enxergou de longe uma espécia de recipiente na calçada, se aproximou e tinha água lá dentro. Água de verdade! Estava suja mas não importava para ele naquele momento, bebeu até se sentir cheio e hidratado novamente, bebeu metade da água que havia dentro daquele pote de sorvete que alguma velha tinha deixado para os animais que moravam nas ruas. Saiu da calçada com a cauda involuntariamente empolgado e avistou uma grande árvore que o deixaria protegido durante o resto da noite caso algo acontecesse. Deitou perto do grosso tronco daquela árvore anciã, no final de alguma rua igualmente velha, e se sentiu muito bem. Comeu, bebeu, perseguiu, brigou de certa forma e agora iria dormir até a hora em que a luz do dia esquentasse os seus grossos e longos pêlos sujos. Sorriu e dormiu em questão de segundos.