A senhorita
Bremmenkamp caminha graciosa e com classe pelas subidas do centro da
cidade, sente o suor descendo por suas coxas brancas e o cansaço
daquela cidade entediante e quente. A senhorita Bremmenkamp traz em
sua bolsa um revólver .38, mas talvez não use-o dessa vez, talvez
ela pegue a velha Luger que pertenceu a sua mãe, quando o pai da
mesma faleceu ao término da segunda grande guerra e eles se mandaram
pra cá. Os Bremmenkamp foram notórios entusiastas do Partido
Nazista quando este encontrou seu auge e por isso eles tiveram que
sair quando este encontrou o seu fim, no momento em que o terceiro
Reich botou os miolos pra fora de sua cuca. Digo, na verdade eles não
eram os Bremmenkamp ao chegarem aqui, o sobrenome era outro, reza a
lenda que a família carrega em seu passado um nome pesado e cheio de
sangue, por isso o trocaram quando mudaram de continente. O nome
original desses alemães...não sei, ninguém sabe.
Voltando a senhora
Bremmenkamp, que é a única alemã que realmente importa nessa
história, ela agora desce uma rua arborizada que vai dar em frente a
uma loja de canetas tinteiro, um negócio típico do velho centro da
cidade. Ela mantém toda sua classe e andar alemão, como se
desprezasse completamente qualquer outra pessoa de qualquer outro
país. Seus olhos claros e cabelos negros parecem impor alguma coisa
por onde passa, parecem ordenar aos outros que olhem para ela, para
seu andar e indiferença quase nórdica. Dona Bremmenkamp, uma
senhora de meia idade com tudo em cima, desce a rua inteira e entra
na portinha escondida da loja de canetas tinteiro. Lá o dono é um
velho judeu chamado Haym Cohen, que conta com a ajuda de seu sobrinho
Yitshac, um jovem judeu que está sempre rindo e sonha em ser rabino,
até onde a srta. Bremmenkamp procurou se interessar.
- Shalom, fraulein Bremmenkamp! Mah nishmá? Como vai a senhora hoje? Está uma bela visão como sempre - pergunta o judeu mais velho, com voz calorosa. A senhora espera a porta se fechar atrás dela e caminha até a bancada dos judeus.
- Bom dia, Herr Cohen. Estou igual a todos os dias nessa cidade quase africana em que vivemos. E você, garoto, como está a escola de rabinos?
- Boa senhora, espero estar pronto o quanto antes – sorri o alegre Yitshac
- O Isaac aqui é um garoto excepcional, passa as tardes estudando hebraico e o Torá, é como se não tivesse olhos para mais nada – diz o tio
- E as garotas, Yi...Isaa..como pronuncia mesmo? Enfim, não tem uma namoradinha judia pra você?
- Bom...ainda não me preocupo com isso, você sabe. Eles dizem que tenho que procurar uma boa garota judia pra mim, e que vou encontra-la, mas antes preciso dos estudos para ser um rabino...você sabe, né – responde o garoto envergonhado porém sorridente. A senhora Bremmenkamp acena com a cabeça, mesmo não entendendo muito o que ele quis dizer.
Haym ri forçado
para os dois e um silêncio cai na loja por alguns instantes.
Bremmenkamp olha as canetas no balcão, algumas são ridiculamente
caras e não valem nem um terço daquilo que custam. Esses judeus não
aprendem nunca, pensa Bremmenkamp sentindo seu histórico familiar
subir a cabeça. Afasta as histórias que ouviu da avó e dos tios
sobre esses tempos e se concentra nos dois judeus parados sorridentes
à sua frente. São bons judeus.
- Bom, eu vim para o clube – diz finalmente a senhora. Haym perde seu sorriso aos poucos, como se estivesse deglutindo a informação que lhe foi dada ainda e depois volta com seu sorriso hebraico.
- Ah, mas é claro, minha fraulein. YITSCHA – grita o velho Haym em hebraico, seguido de uma porção de ordens na mesma língua para o garoto, que a mulher não entendeu nada e achou engraçado aquela língua estranha deles. Uma sujeira completa perto do puro alemão que aprendeu desde criança. O garoto acena com a cabeça para tudo o que o velho fala e responde apenas:
- Ken, ken...regá.
- Nós já estaremos prontos para a senhora descer, fraulein Bremmenkamp. A propósito, quantos a senhora vai querer?
A senhora sorri de forma macabra e seus olhos claros exaltam uma
frieza alemã que esfria até os vasos sanguíneos do velho Haym
Cohen, que sente por alguns segundos no ar o mesmo ódio que matou
parte de sua família há algumas décadas atrás. Mas sabe que dona
Bremmenkamp é apenas uma velha e constante cliente no clube que o
senhor Cohen vem organizando há alguns tempos. Apenas mais alguém
que desce até a loja de canetas tinteiro do velho Haym Cohen atrás
de um pouco de paz de espírito. Eles ouvem o jovem Yitscha descer
escadas no escuro e algumas coisas caindo no chão enquanto os dois
lá em cima permanecem em silêncio, apenas esperando o sinal verde
do futuro rabino. A senhora mantém seu olhar rígido, sem mover um
músculo sequer do seu corpo, apenas com um suave riso no canto dos
lábios avermelhados. Então ouvem um grito em hebraico do jovem
Yitscha, Bremmenkamp não entende, é claro. Cohen grita "rega"
para o garoto e e ele olha sorrindo para madame novamente
- Estamos prontos, fraulein.
O judeu abriu uma porta quase imperceptível atrás dele e deu espaço
para que a senhora fosse na frente, fazendo um sinal cavalheirístico
com os braço. Entraram numa espécie de corredor completamente
escuro, iluminado somente por uma lâmpada lá no fundo. Os olhos
claros de Bremmenkamp reluziam aquela pequena luz amarela no fundo do
corredor, o velho judeu ia atrás a passos lentos. A senhora começou
a sentir o cheiro de mofo vindo das paredes do corredor, ouviu
pequenas goteiras em algum lugar e imaginou-se em um túnel
vietnamita ou alguma caverna subterrânea, sempre tinha essa sensação
macabra quando descia nessa corredor. Descida essa que não sabia
explicar se era mesmo uma descida ou apenas uma reta, com certeza
haviam alguns degraus mas não pareciam fazer parte de uma descida
ingrime, era um lugar muito, muito estranho. Até mesmo para um
alemão.
Continuaram a caminhada lenta, silenciosamente e a fraulein
sentiu que estavam chegando ao seu local, ao clube daqueles judeus.
Apertou sua bolsa e sentiu o toque pesado e denso do revólver
seguido do toque suave do coldre de couro de cabra, respirou fundo e
sentiu os pêlos atrás de sua nuca e de seu braço se arrepiarem,
sentiu um prazer sexual vindo de suas profundezas e mordeu o canto
dos lábios discretamente. Hyam Cohen passou a sua frente logo após
e abriu outra porta para ela, essa era uma porta pesada e parecia de
aço ou coisa assim, como aquelas de bunkers antibombas. Ela
agradeceu com o olhar e atravessou o limiar da porta. Uma luz intensa
e branca cegou-a por uns breves segundos e então ela teve a visão
daquela imensa sala que parecia prateada, com pequenas divisórias,
espécies de cabines numeradas, quinze delas. Todas vazias naquele
momento. O jovem Yitscha estava esperando pelos dois sentado em uma
cadeira, manuseando uma espingarda de caça que Bremmenkamp achou
maravilhosa, mas não comentou nada.
- Então, senhorita Bremmenkamp, o jovem Isaac aqui já tem tudo pronto para a senhora – ele vira para o garoto e falam alguma coisa em hebraico novamente – Quantos alvos a senhorita deseja?
Bremmenkamp permanece em silêncio ainda, pensando, mesmo já tendo
pensado o caminho todo. Aperta novamente sua bolsa, seu revólver .38
e diz:
- Eu quero cinco, senhor Cohen. Cinco, variados, por favor.
- Sem problemas, minha fraulein. YITSCHA! - grita mesmo com o jovem ao seu lado e manda-o buscar o que a madame havia requisitado.
- E mais uma coisa, senhor Cohen. A pistola de meu avô que eu deixei aqui para reparos, a Luger que pertenceu a ele na...o senhor sabe se já está pronta?
Cohen demora a responder, como se não estivesse se lembrando. Mas um
lampejo acerta sua mente e ele responde, surpreso por ter lembrado
- Ahh, sim sim, dona Bremmenkamp. Está pronta, está perfeita, ótimo estado, parece que acabou de sair da fábrica...você verá, dona Bremmenkamp...já vou pega-la para a senhora...hahaha pois a senhora verá como ficou! Verá! - e saiu arrastando os pés com velocidade, como se estivesse muito empolgado para mostrar.
Deixaram-na sozinha na grande sala vazia, com as cabines numeradas e
a espingarda de caça encostada. Bremmenkamp pegou a arma e passou as
mãos pelo corpo de madeira, belíssima peça, talvez inglesa, sim,
inglesa. Passou tanto tempo hipnotizada com a espingarda que não
percebeu quando o jovem Yitscha, ou Isaac, chegou com os cinco alvos
móveis que ela havia pedido. Posicionou-os numa distância
considerável e assobiou para a senhora Bremmenkamp, que encostou a
espingarda calmamente no canto da cabine 10 e olhou para o sorridente
Yitscha, que estava parado ao lado de cinco pessoas encapuzadas e com
as mãos amarradas para trás. Bremmenkamp fez um sinal para que o
garoto tirasse o capuz daquelas pessoas e o mandou sair de perto.
Olhou para cada rosto cuidadosamente quando o garoto tirava seu
respectivo capuz. Um negro, um boliviano, uma garota oriental, um
rapaz negro muito alto e outro meio branco que ela não conseguiu
distinguir bem a nacionalidade, mesmo essa sendo uma de suas
especialidades, por isso chutou ser outro latino. Encostou sua bolsa
vinho em cima de uma das cabines, pegou um dos protetores de ouvido
pendurados e tirou seu revólver da bolsa. Checou para ver se estava
com todas as balas e deu um tiro a esmo, só para ver a reação dos
cinco. Todos pularam com o eco ensurdecedor da sala e pareciam estar
realmente apavorados, Bremmenkamp riu disso mas manteve a pose alemã
séria. A garota oriental e o negro mais baixo gritavam desesperados
por socorro, o boliviano parecia rezar em sua língua estranha e os
outros dois estavam estranhamente quietos, com a cabeça baixa,
talvez tentando acordar daquilo tudo. Senhorita Bremmenkamp agora
aponta seu revólver de cano curto para o peito do negro alto que
está em silêncio. Dispara. Ele cai no chão com um grito rápido e
sangra e se debate inteiro por alguns segundos, enquanto todos os
outros gritam como num coral, menos o sem nacionalidade. Seus
movimentos vão cessando aos poucos, mas a senhora Bremmenkamp não
se importa em checar se está vivo, atira agora na perna do
boliviano, que atinge direto em seu fêmur e o baralho do osso
rompendo ecoa tão alto quando o tiro. O boliviano cai desesperado,
rezando aos gritos e pedindo perdão a Deus. O jovem Yitscha assiste
a tudo como quem assiste a um programa dominical de ressaca, até com
certo tédio.
- Qual deve ser o próximo, Isaac? - diz a senhora com um tom maternal e calmo em meio aos gritos de todos, sobretudo da garota oriental, que tem um grito fino e insuportável.
- Você é quem sabe, senhorita Bremmenkamp, você é quem está pagando pelos alvos.
A madame olha para os dois já caídos, que parecem ainda estarem
vivos, decide deixa-los para o final e acalmar um pouco aquele lugar.
Barulho contínuo a deixava muito estressada. Então mirou na boca da
garota oriental que gritava como uma gralha e, quando apertou o
gatilho, o grito havia parado antes mesmo do eco cessar.
- TOV! - exclama em hebraico o jovem e sorridente Yitscha, aplaudindo a senhora.
Nesse momento o velho Haym Cohen volta com seus passinhos arrastados
até aonde estavam os outros dois. Vem com a Luger na mão e
Bremmenkamp a vê reluzindo de longe. Seus dedos até transpiram
quando ela toca no metal gelado da Luger de seu avô. Os gritos e os
súplicos até diminuíram de volume quando ela tocou em tamanha peça
histórica. Ficou sem palavras para o velho Cohen, ele sim sabia
fazer mágica com aquelas mãos judias.
- O que achou, Bremmenkamp? Eu vi que nem esperou a pistola chegar para começar o treino.
- Não consegui esperar...Haym Cohen...esse sim foi um trabalho impecável. E eu não sou uma pessoa que sai por aí distribuindo elogios, hein...aproveite os poucos que lhe dirijo. Olha isso – passou a mão pelo cano – não tem nem um pontinho de ferrugem, parece que nem passou por uma guerra mundial.
O velho senhor Cohen corou com os elogios e entregou para a moça
dois pentes carregados para a Luger, mais uma porção de cartuchos
que ela havia encomendado. A dona praticamente larga sua .38 em cima
da cabine e não perde tempo em carregar e destravar sua nova velha
Luger. Peso e design perfeitos, classe, história. A pistola perfeita
para um alemão, pensa a retrógrada senhorita Bremmenkamp.
Ela olha para os dois que estão de pé. Olha no boliviano com o
fêmur fraturado e mira sem pressa em seu estômago, tentar um tiro
que não seja tão fatal assim. Gatilho puxado, estômago perfurado.
O sangue de três dos cinco imigrantes ilegais se misturam no chão
de azulejos do clube de tiro clandestino. O boliviano está
agonizante, sangrando como um porco sendo abatido. Bremmenkamp mantém
o olhar frio e mira no negro não tão alto. Tem cara de ser
angolano, talvez nigeriano, não importa. Ela mira e decide dar-lhe
algo rápido. Puxa o gatilho duas vezes numa velocidade tão rápida
que os tiros acertam a cabeça dele praticamente juntos, que cai no
chão duro e morto. Cohen e Yitscha se entreolham como que admirando
a habilidade da senhorita Bremmenkamp.
O último dos moicanos, pensa a senhora. O rapaz sem nacionalidade
ainda não grita, nem chora, está de cabeça baixa tentando não
olhar para seus companheiros de morte quase todos mortos no chão ao
lado, o sangue deles já atingia seu pé e ele tentava ficar longe
daquilo. Os judeus e a senhora acharam graça daquilo e algum dos
três até sentiu uma certa pena do rapaz. Mas certamente não foi a
senhorita Bremmenkamp, que o acertou duas vezes no peito e uma no
pescoço, esse último fazendo um esguicho de sangue jorrar por uns
dois ou três metros. Um tiro certeiro na jugular que foi aplaudido
pelos dois judeus e teria sido aplaudido pelos outros, se não
estivessem mortos ou quase lá.
- Muito bem! Muito bem, fraulein Bremmenkamp! Quanta habilidade! Quanta destreza nessas mãos e nesses seus belos olhos verdes.
Ela não responde, apenas sorri satisfeita com os elogios e pisca com
um olho para o velho. Sai de sua cabine e vai em direção aos cinco
atingidos a alguns metros dela. O sangue se espalhava cada vez mais,
formando agora uma pequena piscina que devia já ter alguns litros de
água vermelha. Imaginou que todos deviam estar mortos, menos o
boliviano. E todos estavam mortos, menos o boliviano, que estava a
dois passos disso. Ele ainda rezava em sua língua, embora agora
parecesse mais balbucios sem sentido do que uma reza. Ela olhou para
os outros e todos estavam com os olhos abertos, a garota oriental
tinha uma aparência lastimável com a boca toda estourada, achou que
ela até fosse sobreviver com o tiro, mas não, estava tão morta
quanto os outros três. Virou-se novamente para o boliviano, que a
olhava com tanto horror que até a dona Bremmekamp atrás de sua
Luger sentiu um frio na espinha. Aliviou o frio atirando na testa do
boliviano, espalhando parte de seus miolos naquela piscininha de
sangue imigrante e um pouco em seu rosto branco.
- Ui...le chaim - e percebeu que o jovem Yitscha estava ao seu lado – essa foi hardcore, como diriam os americanos.
- Sabe, Isaac, ainda tenho uma bala na câmera e outra no pente. E ainda temos dois imigrantes nessa sala, não temos?
- Sim? - ele não entende
E quando menos espera, Yitscha está com a Luger quase encostada em
sua têmpora, com a senhorita Bremmenkamp sorrindo psicoticamente
para ele. Yitscha fica sem o que falar e começa a tremer
desesperado, se ao menos tivesse vindo com sua espingarda de caça até
aonde estavam os imigrantes...mas não estava. Cohen levanta da
cadeira que tinha acabado de sentar confortavelmente numa velocidade
que nem ele sabia que alcançava mais.
- Fraulein Bremmenkamp? O que a senhora está fazendo? Por favor....por favor....dona Bremmenkamp...meu Yitscha...meu Isaac, ele é bom menino. Menino estudioso, por favor.
A essa altura, o jovem Isaac já estava no limite de sujar suas
cuecas. Já esperava o baque seco em seu ouvido, atravessando seu
cérebro e batendo na parede. Pensou no Torá e nas garotas judias
que o deixavam envergonhado, pensou no seu tio e em sua família,
fechou os olhos e tentou pensar uma oração. Rezou e rezou e quando
abriu os olhos, seu tio estava sentado novamente na cadeira e a Luger
reformada não estava mais em sua têmpora, mas sim entrando na bolsa
da madame Bremmenkamp, que ria sem parar da reação do garoto e
limpava seu rosto respingado de sangue boliviano. Ele não achou
muita graça daquilo, mas sabia que os alemães e seus descendentes
tinham um senso de humor muito diferente dos judeus, muito diferente
dos judeus mesmo. Percebe que suas pernas estão tremendo e vai
devagar até a cadeira do tio, que acaba de se despedir da senhorita
Bremmenkamp.
- Até mais, Helga. Erev tov! Volte...sempre que quiser, eu acho.
Helga Bremmenkamp acena com a mão e manda um beijo para o garoto
Isaac, que ainda está tremendo e suando. Eles perguntam se ela quer
companhia até a porta, mas ela diz que sabe o caminho até a rua.
Abre a porta e sobe aquele estranho corredor em direção à loja de
canetas tinteiro que depois daria para a rua,imaginando porque o
senhor Cohen a chamou pelo primeiro nome quando se despediu.
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