domingo, 26 de maio de 2013

A senhorita Bremmenkamp e o clube clandestino dos judeus.


  A senhorita Bremmenkamp caminha graciosa e com classe pelas subidas do centro da cidade, sente o suor descendo por suas coxas brancas e o cansaço daquela cidade entediante e quente. A senhorita Bremmenkamp traz em sua bolsa um revólver .38, mas talvez não use-o dessa vez, talvez ela pegue a velha Luger que pertenceu a sua mãe, quando o pai da mesma faleceu ao término da segunda grande guerra e eles se mandaram pra cá. Os Bremmenkamp foram notórios entusiastas do Partido Nazista quando este encontrou seu auge e por isso eles tiveram que sair quando este encontrou o seu fim, no momento em que o terceiro Reich botou os miolos pra fora de sua cuca. Digo, na verdade eles não eram os Bremmenkamp ao chegarem aqui, o sobrenome era outro, reza a lenda que a família carrega em seu passado um nome pesado e cheio de sangue, por isso o trocaram quando mudaram de continente. O nome original desses alemães...não sei, ninguém sabe.
Voltando a senhora Bremmenkamp, que é a única alemã que realmente importa nessa história, ela agora desce uma rua arborizada que vai dar em frente a uma loja de canetas tinteiro, um negócio típico do velho centro da cidade. Ela mantém toda sua classe e andar alemão, como se desprezasse completamente qualquer outra pessoa de qualquer outro país. Seus olhos claros e cabelos negros parecem impor alguma coisa por onde passa, parecem ordenar aos outros que olhem para ela, para seu andar e indiferença quase nórdica. Dona Bremmenkamp, uma senhora de meia idade com tudo em cima, desce a rua inteira e entra na portinha escondida da loja de canetas tinteiro. Lá o dono é um velho judeu chamado Haym Cohen, que conta com a ajuda de seu sobrinho Yitshac, um jovem judeu que está sempre rindo e sonha em ser rabino, até onde a srta. Bremmenkamp procurou se interessar.
  • Shalom, fraulein Bremmenkamp! Mah nishmá? Como vai a senhora hoje? Está uma bela visão como sempre - pergunta o judeu mais velho, com voz calorosa. A senhora espera a porta se fechar atrás dela e caminha até a bancada dos judeus.
  • Bom dia, Herr Cohen. Estou igual a todos os dias nessa cidade quase africana em que vivemos. E você, garoto, como está a escola de rabinos?
  • Boa senhora, espero estar pronto o quanto antes – sorri o alegre Yitshac
  • O Isaac aqui é um garoto excepcional, passa as tardes estudando hebraico e o Torá, é como se não tivesse olhos para mais nada – diz o tio
  • E as garotas, Yi...Isaa..como pronuncia mesmo? Enfim, não tem uma namoradinha judia pra você?
  • Bom...ainda não me preocupo com isso, você sabe. Eles dizem que tenho que procurar uma boa garota judia pra mim, e que vou encontra-la, mas antes preciso dos estudos para ser um rabino...você sabe, né – responde o garoto envergonhado porém sorridente. A senhora Bremmenkamp acena com a cabeça, mesmo não entendendo muito o que ele quis dizer.
Haym ri forçado para os dois e um silêncio cai na loja por alguns instantes. Bremmenkamp olha as canetas no balcão, algumas são ridiculamente caras e não valem nem um terço daquilo que custam. Esses judeus não aprendem nunca, pensa Bremmenkamp sentindo seu histórico familiar subir a cabeça. Afasta as histórias que ouviu da avó e dos tios sobre esses tempos e se concentra nos dois judeus parados sorridentes à sua frente. São bons judeus.
  • Bom, eu vim para o clube – diz finalmente a senhora. Haym perde seu sorriso aos poucos, como se estivesse deglutindo a informação que lhe foi dada ainda e depois volta com seu sorriso hebraico.
  • Ah, mas é claro, minha fraulein. YITSCHA – grita o velho Haym em hebraico, seguido de uma porção de ordens na mesma língua para o garoto, que a mulher não entendeu nada e achou engraçado aquela língua estranha deles. Uma sujeira completa perto do puro alemão que aprendeu desde criança. O garoto acena com a cabeça para tudo o que o velho fala e responde apenas:
  • Ken, ken...regá.
  • Nós já estaremos prontos para a senhora descer, fraulein Bremmenkamp. A propósito, quantos a senhora vai querer?
A senhora sorri de forma macabra e seus olhos claros exaltam uma frieza alemã que esfria até os vasos sanguíneos do velho Haym Cohen, que sente por alguns segundos no ar o mesmo ódio que matou parte de sua família há algumas décadas atrás. Mas sabe que dona Bremmenkamp é apenas uma velha e constante cliente no clube que o senhor Cohen vem organizando há alguns tempos. Apenas mais alguém que desce até a loja de canetas tinteiro do velho Haym Cohen atrás de um pouco de paz de espírito. Eles ouvem o jovem Yitscha descer escadas no escuro e algumas coisas caindo no chão enquanto os dois lá em cima permanecem em silêncio, apenas esperando o sinal verde do futuro rabino. A senhora mantém seu olhar rígido, sem mover um músculo sequer do seu corpo, apenas com um suave riso no canto dos lábios avermelhados. Então ouvem um grito em hebraico do jovem Yitscha, Bremmenkamp não entende, é claro. Cohen grita "rega" para o garoto e e ele olha sorrindo para madame novamente
  • Estamos prontos, fraulein.
O judeu abriu uma porta quase imperceptível atrás dele e deu espaço para que a senhora fosse na frente, fazendo um sinal cavalheirístico com os braço. Entraram numa espécie de corredor completamente escuro, iluminado somente por uma lâmpada lá no fundo. Os olhos claros de Bremmenkamp reluziam aquela pequena luz amarela no fundo do corredor, o velho judeu ia atrás a passos lentos. A senhora começou a sentir o cheiro de mofo vindo das paredes do corredor, ouviu pequenas goteiras em algum lugar e imaginou-se em um túnel vietnamita ou alguma caverna subterrânea, sempre tinha essa sensação macabra quando descia nessa corredor. Descida essa que não sabia explicar se era mesmo uma descida ou apenas uma reta, com certeza haviam alguns degraus mas não pareciam fazer parte de uma descida ingrime, era um lugar muito, muito estranho. Até mesmo para um alemão.
Continuaram a caminhada lenta, silenciosamente e a fraulein sentiu que estavam chegando ao seu local, ao clube daqueles judeus. Apertou sua bolsa e sentiu o toque pesado e denso do revólver seguido do toque suave do coldre de couro de cabra, respirou fundo e sentiu os pêlos atrás de sua nuca e de seu braço se arrepiarem, sentiu um prazer sexual vindo de suas profundezas e mordeu o canto dos lábios discretamente. Hyam Cohen passou a sua frente logo após e abriu outra porta para ela, essa era uma porta pesada e parecia de aço ou coisa assim, como aquelas de bunkers antibombas. Ela agradeceu com o olhar e atravessou o limiar da porta. Uma luz intensa e branca cegou-a por uns breves segundos e então ela teve a visão daquela imensa sala que parecia prateada, com pequenas divisórias, espécies de cabines numeradas, quinze delas. Todas vazias naquele momento. O jovem Yitscha estava esperando pelos dois sentado em uma cadeira, manuseando uma espingarda de caça que Bremmenkamp achou maravilhosa, mas não comentou nada.
  • Então, senhorita Bremmenkamp, o jovem Isaac aqui já tem tudo pronto para a senhora – ele vira para o garoto e falam alguma coisa em hebraico novamente – Quantos alvos a senhorita deseja?
Bremmenkamp permanece em silêncio ainda, pensando, mesmo já tendo pensado o caminho todo. Aperta novamente sua bolsa, seu revólver .38 e diz:
  • Eu quero cinco, senhor Cohen. Cinco, variados, por favor.
  • Sem problemas, minha fraulein. YITSCHA! - grita mesmo com o jovem ao seu lado e manda-o buscar o que a madame havia requisitado.
  • E mais uma coisa, senhor Cohen. A pistola de meu avô que eu deixei aqui para reparos, a Luger que pertenceu a ele na...o senhor sabe se já está pronta?
Cohen demora a responder, como se não estivesse se lembrando. Mas um lampejo acerta sua mente e ele responde, surpreso por ter lembrado
  • Ahh, sim sim, dona Bremmenkamp. Está pronta, está perfeita, ótimo estado, parece que acabou de sair da fábrica...você verá, dona Bremmenkamp...já vou pega-la para a senhora...hahaha pois a senhora verá como ficou! Verá! - e saiu arrastando os pés com velocidade, como se estivesse muito empolgado para mostrar.
Deixaram-na sozinha na grande sala vazia, com as cabines numeradas e a espingarda de caça encostada. Bremmenkamp pegou a arma e passou as mãos pelo corpo de madeira, belíssima peça, talvez inglesa, sim, inglesa. Passou tanto tempo hipnotizada com a espingarda que não percebeu quando o jovem Yitscha, ou Isaac, chegou com os cinco alvos móveis que ela havia pedido. Posicionou-os numa distância considerável e assobiou para a senhora Bremmenkamp, que encostou a espingarda calmamente no canto da cabine 10 e olhou para o sorridente Yitscha, que estava parado ao lado de cinco pessoas encapuzadas e com as mãos amarradas para trás. Bremmenkamp fez um sinal para que o garoto tirasse o capuz daquelas pessoas e o mandou sair de perto. Olhou para cada rosto cuidadosamente quando o garoto tirava seu respectivo capuz. Um negro, um boliviano, uma garota oriental, um rapaz negro muito alto e outro meio branco que ela não conseguiu distinguir bem a nacionalidade, mesmo essa sendo uma de suas especialidades, por isso chutou ser outro latino. Encostou sua bolsa vinho em cima de uma das cabines, pegou um dos protetores de ouvido pendurados e tirou seu revólver da bolsa. Checou para ver se estava com todas as balas e deu um tiro a esmo, só para ver a reação dos cinco. Todos pularam com o eco ensurdecedor da sala e pareciam estar realmente apavorados, Bremmenkamp riu disso mas manteve a pose alemã séria. A garota oriental e o negro mais baixo gritavam desesperados por socorro, o boliviano parecia rezar em sua língua estranha e os outros dois estavam estranhamente quietos, com a cabeça baixa, talvez tentando acordar daquilo tudo. Senhorita Bremmenkamp agora aponta seu revólver de cano curto para o peito do negro alto que está em silêncio. Dispara. Ele cai no chão com um grito rápido e sangra e se debate inteiro por alguns segundos, enquanto todos os outros gritam como num coral, menos o sem nacionalidade. Seus movimentos vão cessando aos poucos, mas a senhora Bremmenkamp não se importa em checar se está vivo, atira agora na perna do boliviano, que atinge direto em seu fêmur e o baralho do osso rompendo ecoa tão alto quando o tiro. O boliviano cai desesperado, rezando aos gritos e pedindo perdão a Deus. O jovem Yitscha assiste a tudo como quem assiste a um programa dominical de ressaca, até com certo tédio.
  • Qual deve ser o próximo, Isaac? - diz a senhora com um tom maternal e calmo em meio aos gritos de todos, sobretudo da garota oriental, que tem um grito fino e insuportável.
  • Você é quem sabe, senhorita Bremmenkamp, você é quem está pagando pelos alvos.
A madame olha para os dois já caídos, que parecem ainda estarem vivos, decide deixa-los para o final e acalmar um pouco aquele lugar. Barulho contínuo a deixava muito estressada. Então mirou na boca da garota oriental que gritava como uma gralha e, quando apertou o gatilho, o grito havia parado antes mesmo do eco cessar.
  • TOV! - exclama em hebraico o jovem e sorridente Yitscha, aplaudindo a senhora.
Nesse momento o velho Haym Cohen volta com seus passinhos arrastados até aonde estavam os outros dois. Vem com a Luger na mão e Bremmenkamp a vê reluzindo de longe. Seus dedos até transpiram quando ela toca no metal gelado da Luger de seu avô. Os gritos e os súplicos até diminuíram de volume quando ela tocou em tamanha peça histórica. Ficou sem palavras para o velho Cohen, ele sim sabia fazer mágica com aquelas mãos judias.
  • O que achou, Bremmenkamp? Eu vi que nem esperou a pistola chegar para começar o treino.
  • Não consegui esperar...Haym Cohen...esse sim foi um trabalho impecável. E eu não sou uma pessoa que sai por aí distribuindo elogios, hein...aproveite os poucos que lhe dirijo. Olha isso – passou a mão pelo cano – não tem nem um pontinho de ferrugem, parece que nem passou por uma guerra mundial.
O velho senhor Cohen corou com os elogios e entregou para a moça dois pentes carregados para a Luger, mais uma porção de cartuchos que ela havia encomendado. A dona praticamente larga sua .38 em cima da cabine e não perde tempo em carregar e destravar sua nova velha Luger. Peso e design perfeitos, classe, história. A pistola perfeita para um alemão, pensa a retrógrada senhorita Bremmenkamp.
Ela olha para os dois que estão de pé. Olha no boliviano com o fêmur fraturado e mira sem pressa em seu estômago, tentar um tiro que não seja tão fatal assim. Gatilho puxado, estômago perfurado. O sangue de três dos cinco imigrantes ilegais se misturam no chão de azulejos do clube de tiro clandestino. O boliviano está agonizante, sangrando como um porco sendo abatido. Bremmenkamp mantém o olhar frio e mira no negro não tão alto. Tem cara de ser angolano, talvez nigeriano, não importa. Ela mira e decide dar-lhe algo rápido. Puxa o gatilho duas vezes numa velocidade tão rápida que os tiros acertam a cabeça dele praticamente juntos, que cai no chão duro e morto. Cohen e Yitscha se entreolham como que admirando a habilidade da senhorita Bremmenkamp.
O último dos moicanos, pensa a senhora. O rapaz sem nacionalidade ainda não grita, nem chora, está de cabeça baixa tentando não olhar para seus companheiros de morte quase todos mortos no chão ao lado, o sangue deles já atingia seu pé e ele tentava ficar longe daquilo. Os judeus e a senhora acharam graça daquilo e algum dos três até sentiu uma certa pena do rapaz. Mas certamente não foi a senhorita Bremmenkamp, que o acertou duas vezes no peito e uma no pescoço, esse último fazendo um esguicho de sangue jorrar por uns dois ou três metros. Um tiro certeiro na jugular que foi aplaudido pelos dois judeus e teria sido aplaudido pelos outros, se não estivessem mortos ou quase lá.
  • Muito bem! Muito bem, fraulein Bremmenkamp! Quanta habilidade! Quanta destreza nessas mãos e nesses seus belos olhos verdes.
Ela não responde, apenas sorri satisfeita com os elogios e pisca com um olho para o velho. Sai de sua cabine e vai em direção aos cinco atingidos a alguns metros dela. O sangue se espalhava cada vez mais, formando agora uma pequena piscina que devia já ter alguns litros de água vermelha. Imaginou que todos deviam estar mortos, menos o boliviano. E todos estavam mortos, menos o boliviano, que estava a dois passos disso. Ele ainda rezava em sua língua, embora agora parecesse mais balbucios sem sentido do que uma reza. Ela olhou para os outros e todos estavam com os olhos abertos, a garota oriental tinha uma aparência lastimável com a boca toda estourada, achou que ela até fosse sobreviver com o tiro, mas não, estava tão morta quanto os outros três. Virou-se novamente para o boliviano, que a olhava com tanto horror que até a dona Bremmekamp atrás de sua Luger sentiu um frio na espinha. Aliviou o frio atirando na testa do boliviano, espalhando parte de seus miolos naquela piscininha de sangue imigrante e um pouco em seu rosto branco.
  • Ui...le chaim - e percebeu que o jovem Yitscha estava ao seu lado – essa foi hardcore, como diriam os americanos.
  • Sabe, Isaac, ainda tenho uma bala na câmera e outra no pente. E ainda temos dois imigrantes nessa sala, não temos?
  • Sim? - ele não entende
E quando menos espera, Yitscha está com a Luger quase encostada em sua têmpora, com a senhorita Bremmenkamp sorrindo psicoticamente para ele. Yitscha fica sem o que falar e começa a tremer desesperado, se ao menos tivesse vindo com sua espingarda de caça até aonde estavam os imigrantes...mas não estava. Cohen levanta da cadeira que tinha acabado de sentar confortavelmente numa velocidade que nem ele sabia que alcançava mais.
  • Fraulein Bremmenkamp? O que a senhora está fazendo? Por favor....por favor....dona Bremmenkamp...meu Yitscha...meu Isaac, ele é bom menino. Menino estudioso, por favor.
A essa altura, o jovem Isaac já estava no limite de sujar suas cuecas. Já esperava o baque seco em seu ouvido, atravessando seu cérebro e batendo na parede. Pensou no Torá e nas garotas judias que o deixavam envergonhado, pensou no seu tio e em sua família, fechou os olhos e tentou pensar uma oração. Rezou e rezou e quando abriu os olhos, seu tio estava sentado novamente na cadeira e a Luger reformada não estava mais em sua têmpora, mas sim entrando na bolsa da madame Bremmenkamp, que ria sem parar da reação do garoto e limpava seu rosto respingado de sangue boliviano. Ele não achou muita graça daquilo, mas sabia que os alemães e seus descendentes tinham um senso de humor muito diferente dos judeus, muito diferente dos judeus mesmo. Percebe que suas pernas estão tremendo e vai devagar até a cadeira do tio, que acaba de se despedir da senhorita Bremmenkamp.
  • Até mais, Helga. Erev tov! Volte...sempre que quiser, eu acho.
Helga Bremmenkamp acena com a mão e manda um beijo para o garoto Isaac, que ainda está tremendo e suando. Eles perguntam se ela quer companhia até a porta, mas ela diz que sabe o caminho até a rua. Abre a porta e sobe aquele estranho corredor em direção à loja de canetas tinteiro que depois daria para a rua,imaginando porque o senhor Cohen a chamou pelo primeiro nome quando se despediu.

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