domingo, 26 de maio de 2013

A senhorita Bremmenkamp e o clube clandestino dos judeus.


  A senhorita Bremmenkamp caminha graciosa e com classe pelas subidas do centro da cidade, sente o suor descendo por suas coxas brancas e o cansaço daquela cidade entediante e quente. A senhorita Bremmenkamp traz em sua bolsa um revólver .38, mas talvez não use-o dessa vez, talvez ela pegue a velha Luger que pertenceu a sua mãe, quando o pai da mesma faleceu ao término da segunda grande guerra e eles se mandaram pra cá. Os Bremmenkamp foram notórios entusiastas do Partido Nazista quando este encontrou seu auge e por isso eles tiveram que sair quando este encontrou o seu fim, no momento em que o terceiro Reich botou os miolos pra fora de sua cuca. Digo, na verdade eles não eram os Bremmenkamp ao chegarem aqui, o sobrenome era outro, reza a lenda que a família carrega em seu passado um nome pesado e cheio de sangue, por isso o trocaram quando mudaram de continente. O nome original desses alemães...não sei, ninguém sabe.
Voltando a senhora Bremmenkamp, que é a única alemã que realmente importa nessa história, ela agora desce uma rua arborizada que vai dar em frente a uma loja de canetas tinteiro, um negócio típico do velho centro da cidade. Ela mantém toda sua classe e andar alemão, como se desprezasse completamente qualquer outra pessoa de qualquer outro país. Seus olhos claros e cabelos negros parecem impor alguma coisa por onde passa, parecem ordenar aos outros que olhem para ela, para seu andar e indiferença quase nórdica. Dona Bremmenkamp, uma senhora de meia idade com tudo em cima, desce a rua inteira e entra na portinha escondida da loja de canetas tinteiro. Lá o dono é um velho judeu chamado Haym Cohen, que conta com a ajuda de seu sobrinho Yitshac, um jovem judeu que está sempre rindo e sonha em ser rabino, até onde a srta. Bremmenkamp procurou se interessar.
  • Shalom, fraulein Bremmenkamp! Mah nishmá? Como vai a senhora hoje? Está uma bela visão como sempre - pergunta o judeu mais velho, com voz calorosa. A senhora espera a porta se fechar atrás dela e caminha até a bancada dos judeus.
  • Bom dia, Herr Cohen. Estou igual a todos os dias nessa cidade quase africana em que vivemos. E você, garoto, como está a escola de rabinos?
  • Boa senhora, espero estar pronto o quanto antes – sorri o alegre Yitshac
  • O Isaac aqui é um garoto excepcional, passa as tardes estudando hebraico e o Torá, é como se não tivesse olhos para mais nada – diz o tio
  • E as garotas, Yi...Isaa..como pronuncia mesmo? Enfim, não tem uma namoradinha judia pra você?
  • Bom...ainda não me preocupo com isso, você sabe. Eles dizem que tenho que procurar uma boa garota judia pra mim, e que vou encontra-la, mas antes preciso dos estudos para ser um rabino...você sabe, né – responde o garoto envergonhado porém sorridente. A senhora Bremmenkamp acena com a cabeça, mesmo não entendendo muito o que ele quis dizer.
Haym ri forçado para os dois e um silêncio cai na loja por alguns instantes. Bremmenkamp olha as canetas no balcão, algumas são ridiculamente caras e não valem nem um terço daquilo que custam. Esses judeus não aprendem nunca, pensa Bremmenkamp sentindo seu histórico familiar subir a cabeça. Afasta as histórias que ouviu da avó e dos tios sobre esses tempos e se concentra nos dois judeus parados sorridentes à sua frente. São bons judeus.
  • Bom, eu vim para o clube – diz finalmente a senhora. Haym perde seu sorriso aos poucos, como se estivesse deglutindo a informação que lhe foi dada ainda e depois volta com seu sorriso hebraico.
  • Ah, mas é claro, minha fraulein. YITSCHA – grita o velho Haym em hebraico, seguido de uma porção de ordens na mesma língua para o garoto, que a mulher não entendeu nada e achou engraçado aquela língua estranha deles. Uma sujeira completa perto do puro alemão que aprendeu desde criança. O garoto acena com a cabeça para tudo o que o velho fala e responde apenas:
  • Ken, ken...regá.
  • Nós já estaremos prontos para a senhora descer, fraulein Bremmenkamp. A propósito, quantos a senhora vai querer?
A senhora sorri de forma macabra e seus olhos claros exaltam uma frieza alemã que esfria até os vasos sanguíneos do velho Haym Cohen, que sente por alguns segundos no ar o mesmo ódio que matou parte de sua família há algumas décadas atrás. Mas sabe que dona Bremmenkamp é apenas uma velha e constante cliente no clube que o senhor Cohen vem organizando há alguns tempos. Apenas mais alguém que desce até a loja de canetas tinteiro do velho Haym Cohen atrás de um pouco de paz de espírito. Eles ouvem o jovem Yitscha descer escadas no escuro e algumas coisas caindo no chão enquanto os dois lá em cima permanecem em silêncio, apenas esperando o sinal verde do futuro rabino. A senhora mantém seu olhar rígido, sem mover um músculo sequer do seu corpo, apenas com um suave riso no canto dos lábios avermelhados. Então ouvem um grito em hebraico do jovem Yitscha, Bremmenkamp não entende, é claro. Cohen grita "rega" para o garoto e e ele olha sorrindo para madame novamente
  • Estamos prontos, fraulein.
O judeu abriu uma porta quase imperceptível atrás dele e deu espaço para que a senhora fosse na frente, fazendo um sinal cavalheirístico com os braço. Entraram numa espécie de corredor completamente escuro, iluminado somente por uma lâmpada lá no fundo. Os olhos claros de Bremmenkamp reluziam aquela pequena luz amarela no fundo do corredor, o velho judeu ia atrás a passos lentos. A senhora começou a sentir o cheiro de mofo vindo das paredes do corredor, ouviu pequenas goteiras em algum lugar e imaginou-se em um túnel vietnamita ou alguma caverna subterrânea, sempre tinha essa sensação macabra quando descia nessa corredor. Descida essa que não sabia explicar se era mesmo uma descida ou apenas uma reta, com certeza haviam alguns degraus mas não pareciam fazer parte de uma descida ingrime, era um lugar muito, muito estranho. Até mesmo para um alemão.
Continuaram a caminhada lenta, silenciosamente e a fraulein sentiu que estavam chegando ao seu local, ao clube daqueles judeus. Apertou sua bolsa e sentiu o toque pesado e denso do revólver seguido do toque suave do coldre de couro de cabra, respirou fundo e sentiu os pêlos atrás de sua nuca e de seu braço se arrepiarem, sentiu um prazer sexual vindo de suas profundezas e mordeu o canto dos lábios discretamente. Hyam Cohen passou a sua frente logo após e abriu outra porta para ela, essa era uma porta pesada e parecia de aço ou coisa assim, como aquelas de bunkers antibombas. Ela agradeceu com o olhar e atravessou o limiar da porta. Uma luz intensa e branca cegou-a por uns breves segundos e então ela teve a visão daquela imensa sala que parecia prateada, com pequenas divisórias, espécies de cabines numeradas, quinze delas. Todas vazias naquele momento. O jovem Yitscha estava esperando pelos dois sentado em uma cadeira, manuseando uma espingarda de caça que Bremmenkamp achou maravilhosa, mas não comentou nada.
  • Então, senhorita Bremmenkamp, o jovem Isaac aqui já tem tudo pronto para a senhora – ele vira para o garoto e falam alguma coisa em hebraico novamente – Quantos alvos a senhorita deseja?
Bremmenkamp permanece em silêncio ainda, pensando, mesmo já tendo pensado o caminho todo. Aperta novamente sua bolsa, seu revólver .38 e diz:
  • Eu quero cinco, senhor Cohen. Cinco, variados, por favor.
  • Sem problemas, minha fraulein. YITSCHA! - grita mesmo com o jovem ao seu lado e manda-o buscar o que a madame havia requisitado.
  • E mais uma coisa, senhor Cohen. A pistola de meu avô que eu deixei aqui para reparos, a Luger que pertenceu a ele na...o senhor sabe se já está pronta?
Cohen demora a responder, como se não estivesse se lembrando. Mas um lampejo acerta sua mente e ele responde, surpreso por ter lembrado
  • Ahh, sim sim, dona Bremmenkamp. Está pronta, está perfeita, ótimo estado, parece que acabou de sair da fábrica...você verá, dona Bremmenkamp...já vou pega-la para a senhora...hahaha pois a senhora verá como ficou! Verá! - e saiu arrastando os pés com velocidade, como se estivesse muito empolgado para mostrar.
Deixaram-na sozinha na grande sala vazia, com as cabines numeradas e a espingarda de caça encostada. Bremmenkamp pegou a arma e passou as mãos pelo corpo de madeira, belíssima peça, talvez inglesa, sim, inglesa. Passou tanto tempo hipnotizada com a espingarda que não percebeu quando o jovem Yitscha, ou Isaac, chegou com os cinco alvos móveis que ela havia pedido. Posicionou-os numa distância considerável e assobiou para a senhora Bremmenkamp, que encostou a espingarda calmamente no canto da cabine 10 e olhou para o sorridente Yitscha, que estava parado ao lado de cinco pessoas encapuzadas e com as mãos amarradas para trás. Bremmenkamp fez um sinal para que o garoto tirasse o capuz daquelas pessoas e o mandou sair de perto. Olhou para cada rosto cuidadosamente quando o garoto tirava seu respectivo capuz. Um negro, um boliviano, uma garota oriental, um rapaz negro muito alto e outro meio branco que ela não conseguiu distinguir bem a nacionalidade, mesmo essa sendo uma de suas especialidades, por isso chutou ser outro latino. Encostou sua bolsa vinho em cima de uma das cabines, pegou um dos protetores de ouvido pendurados e tirou seu revólver da bolsa. Checou para ver se estava com todas as balas e deu um tiro a esmo, só para ver a reação dos cinco. Todos pularam com o eco ensurdecedor da sala e pareciam estar realmente apavorados, Bremmenkamp riu disso mas manteve a pose alemã séria. A garota oriental e o negro mais baixo gritavam desesperados por socorro, o boliviano parecia rezar em sua língua estranha e os outros dois estavam estranhamente quietos, com a cabeça baixa, talvez tentando acordar daquilo tudo. Senhorita Bremmenkamp agora aponta seu revólver de cano curto para o peito do negro alto que está em silêncio. Dispara. Ele cai no chão com um grito rápido e sangra e se debate inteiro por alguns segundos, enquanto todos os outros gritam como num coral, menos o sem nacionalidade. Seus movimentos vão cessando aos poucos, mas a senhora Bremmenkamp não se importa em checar se está vivo, atira agora na perna do boliviano, que atinge direto em seu fêmur e o baralho do osso rompendo ecoa tão alto quando o tiro. O boliviano cai desesperado, rezando aos gritos e pedindo perdão a Deus. O jovem Yitscha assiste a tudo como quem assiste a um programa dominical de ressaca, até com certo tédio.
  • Qual deve ser o próximo, Isaac? - diz a senhora com um tom maternal e calmo em meio aos gritos de todos, sobretudo da garota oriental, que tem um grito fino e insuportável.
  • Você é quem sabe, senhorita Bremmenkamp, você é quem está pagando pelos alvos.
A madame olha para os dois já caídos, que parecem ainda estarem vivos, decide deixa-los para o final e acalmar um pouco aquele lugar. Barulho contínuo a deixava muito estressada. Então mirou na boca da garota oriental que gritava como uma gralha e, quando apertou o gatilho, o grito havia parado antes mesmo do eco cessar.
  • TOV! - exclama em hebraico o jovem e sorridente Yitscha, aplaudindo a senhora.
Nesse momento o velho Haym Cohen volta com seus passinhos arrastados até aonde estavam os outros dois. Vem com a Luger na mão e Bremmenkamp a vê reluzindo de longe. Seus dedos até transpiram quando ela toca no metal gelado da Luger de seu avô. Os gritos e os súplicos até diminuíram de volume quando ela tocou em tamanha peça histórica. Ficou sem palavras para o velho Cohen, ele sim sabia fazer mágica com aquelas mãos judias.
  • O que achou, Bremmenkamp? Eu vi que nem esperou a pistola chegar para começar o treino.
  • Não consegui esperar...Haym Cohen...esse sim foi um trabalho impecável. E eu não sou uma pessoa que sai por aí distribuindo elogios, hein...aproveite os poucos que lhe dirijo. Olha isso – passou a mão pelo cano – não tem nem um pontinho de ferrugem, parece que nem passou por uma guerra mundial.
O velho senhor Cohen corou com os elogios e entregou para a moça dois pentes carregados para a Luger, mais uma porção de cartuchos que ela havia encomendado. A dona praticamente larga sua .38 em cima da cabine e não perde tempo em carregar e destravar sua nova velha Luger. Peso e design perfeitos, classe, história. A pistola perfeita para um alemão, pensa a retrógrada senhorita Bremmenkamp.
Ela olha para os dois que estão de pé. Olha no boliviano com o fêmur fraturado e mira sem pressa em seu estômago, tentar um tiro que não seja tão fatal assim. Gatilho puxado, estômago perfurado. O sangue de três dos cinco imigrantes ilegais se misturam no chão de azulejos do clube de tiro clandestino. O boliviano está agonizante, sangrando como um porco sendo abatido. Bremmenkamp mantém o olhar frio e mira no negro não tão alto. Tem cara de ser angolano, talvez nigeriano, não importa. Ela mira e decide dar-lhe algo rápido. Puxa o gatilho duas vezes numa velocidade tão rápida que os tiros acertam a cabeça dele praticamente juntos, que cai no chão duro e morto. Cohen e Yitscha se entreolham como que admirando a habilidade da senhorita Bremmenkamp.
O último dos moicanos, pensa a senhora. O rapaz sem nacionalidade ainda não grita, nem chora, está de cabeça baixa tentando não olhar para seus companheiros de morte quase todos mortos no chão ao lado, o sangue deles já atingia seu pé e ele tentava ficar longe daquilo. Os judeus e a senhora acharam graça daquilo e algum dos três até sentiu uma certa pena do rapaz. Mas certamente não foi a senhorita Bremmenkamp, que o acertou duas vezes no peito e uma no pescoço, esse último fazendo um esguicho de sangue jorrar por uns dois ou três metros. Um tiro certeiro na jugular que foi aplaudido pelos dois judeus e teria sido aplaudido pelos outros, se não estivessem mortos ou quase lá.
  • Muito bem! Muito bem, fraulein Bremmenkamp! Quanta habilidade! Quanta destreza nessas mãos e nesses seus belos olhos verdes.
Ela não responde, apenas sorri satisfeita com os elogios e pisca com um olho para o velho. Sai de sua cabine e vai em direção aos cinco atingidos a alguns metros dela. O sangue se espalhava cada vez mais, formando agora uma pequena piscina que devia já ter alguns litros de água vermelha. Imaginou que todos deviam estar mortos, menos o boliviano. E todos estavam mortos, menos o boliviano, que estava a dois passos disso. Ele ainda rezava em sua língua, embora agora parecesse mais balbucios sem sentido do que uma reza. Ela olhou para os outros e todos estavam com os olhos abertos, a garota oriental tinha uma aparência lastimável com a boca toda estourada, achou que ela até fosse sobreviver com o tiro, mas não, estava tão morta quanto os outros três. Virou-se novamente para o boliviano, que a olhava com tanto horror que até a dona Bremmekamp atrás de sua Luger sentiu um frio na espinha. Aliviou o frio atirando na testa do boliviano, espalhando parte de seus miolos naquela piscininha de sangue imigrante e um pouco em seu rosto branco.
  • Ui...le chaim - e percebeu que o jovem Yitscha estava ao seu lado – essa foi hardcore, como diriam os americanos.
  • Sabe, Isaac, ainda tenho uma bala na câmera e outra no pente. E ainda temos dois imigrantes nessa sala, não temos?
  • Sim? - ele não entende
E quando menos espera, Yitscha está com a Luger quase encostada em sua têmpora, com a senhorita Bremmenkamp sorrindo psicoticamente para ele. Yitscha fica sem o que falar e começa a tremer desesperado, se ao menos tivesse vindo com sua espingarda de caça até aonde estavam os imigrantes...mas não estava. Cohen levanta da cadeira que tinha acabado de sentar confortavelmente numa velocidade que nem ele sabia que alcançava mais.
  • Fraulein Bremmenkamp? O que a senhora está fazendo? Por favor....por favor....dona Bremmenkamp...meu Yitscha...meu Isaac, ele é bom menino. Menino estudioso, por favor.
A essa altura, o jovem Isaac já estava no limite de sujar suas cuecas. Já esperava o baque seco em seu ouvido, atravessando seu cérebro e batendo na parede. Pensou no Torá e nas garotas judias que o deixavam envergonhado, pensou no seu tio e em sua família, fechou os olhos e tentou pensar uma oração. Rezou e rezou e quando abriu os olhos, seu tio estava sentado novamente na cadeira e a Luger reformada não estava mais em sua têmpora, mas sim entrando na bolsa da madame Bremmenkamp, que ria sem parar da reação do garoto e limpava seu rosto respingado de sangue boliviano. Ele não achou muita graça daquilo, mas sabia que os alemães e seus descendentes tinham um senso de humor muito diferente dos judeus, muito diferente dos judeus mesmo. Percebe que suas pernas estão tremendo e vai devagar até a cadeira do tio, que acaba de se despedir da senhorita Bremmenkamp.
  • Até mais, Helga. Erev tov! Volte...sempre que quiser, eu acho.
Helga Bremmenkamp acena com a mão e manda um beijo para o garoto Isaac, que ainda está tremendo e suando. Eles perguntam se ela quer companhia até a porta, mas ela diz que sabe o caminho até a rua. Abre a porta e sobe aquele estranho corredor em direção à loja de canetas tinteiro que depois daria para a rua,imaginando porque o senhor Cohen a chamou pelo primeiro nome quando se despediu.

domingo, 19 de maio de 2013

Cinco noites em branco.


   Rua das Palmeiras, 113, Santa Cecília. Não é o endereço da minha casa, nem da casa dos meus pais ou de ninguém da minha família. Era o endereço de Paulo e Fernando naquela região do centro, no apartamento apertado, sujo e bagunçado que eles dividiam há alguns meses. Alguns meses em que ninguém acreditava que ainda estavam vivos. Drogados e bêbados quase vinte e quatro horas por dia, sem comer ou dormir. Na última semana em que tive contato com eles, haviam acabado de arranjar meio quilo de cocaína de boa qualidade e estavam de férias de seus empregos entediantes e com os bolsos cheios de grana que não gastavam com outra coisa senão com droga, goró e pacotes e mais pacotes de miojo que serviam para deixa-los de pé.
Fernando trabalhava carregando caminhões com caixas pesadas de ração para animais. Paulo era empregado em um banco importante e conseguia tirar uma boa grana daquele serviço, o que dava para pagar o aluguel e as despesas ilícitas daqueles dois. Os dois não tinham feito faculdade alguma e haviam parado de estudar há um bom tempo, no tempo livre ficavam em casa cheirando e vendo TV ou matando tempo em algum bar.
1

Fernando jogou o saco branco em cima da mesinha de centro na sala apertada e o seu peso quase estraçalhou o fino vidro daquela mesa vagabunda. Quinhentos gramas de cocaína para os dois. Quanto tempo duraria aquele pacote? Menos que eles talvez? Mais do que poderiam aguentar? Duvidavam daquilo. Quinhentas formas puras de sair do que chamamos de real, quinhentos motivos para se afundarem naquele saco branco na mesinha de centro. Paulo sorriu e deu uma risada empolgado:
  • AHHHH! - Gritou excitado e riu mais
  • HAHAHA Quinhentos gramas, cara. Eu falei que ia conseguir, não falei? - disse Fernando
  • Abre aí e põe pra gente
  • Calma, calma, tudo a seu tempo.
Fernando foi até a cozinha, que não estava a nem quinze passos de distância e pegou um prato escuro dentro de um dos armários. Voltou para sala e pegou seu canivete que ficava ao lado do telefone cortado há alguns dias porque esqueceram de pagar. Abriu um buraco no saco fechado a vácuo e o pó branco começou a sair por lá, seus olhos brilharam e jogou uma quantidade boa da droga dentro do prato escuro. Ajeitou dois rabiscos grandes e Paulo já enrolava uma nota de vinte dólares que sempre usava para cheirar. Entregou a nota para Fernando, que abaixou e mandou aquele tiro numa só. Respirou fundo e entregou o canudo para o amigo, que fez o mesmo.
  • CARALHO! - exclamou Paulo, coçando o nariz
  • Não acredito que a gente tem meio quilo disso aqui à nossa vontade, cara!
  • Nossa, foda...
  • Já tô sentindo o suadouro vindo...calor do caralho.
  • Muito, é pura mesmo essa aí cara. Purinha.
  • Pura vida, hermano – disse Fernando
E riram e cheiraram muito até aquele dia acabar. E depois até a noite acabar e aquele prato e o saco ainda estavam cheios de cocaína pura e os dois acharam que tudo era possível enquanto aquele saco existisse dentro daquela casa, cheio é claro.

2

Estavam virados e na televisão dizia que passavam das dez da manha. Estavam os dois de cueca e se sentindo inteiros como se tivessem dormido dias e dias seguidos. Ainda cheiravam ininterruptamente e tentavam achar coisas pra se fazer naquela casa minúscula. Não queriam sair, não havia nada de interessante na rua, pelo menos não mais interessante que aquele meio quilo na mesinha de centro da sala, de frente pra televisão. Combinaram depois que chegou perto do almoço que deveriam parar de cheirar por um momento e tentar comer alguma coisa, ou não conseguiriam ficar de pé ou vomitariam bílis pelo tapete velho e seria uma merda pra limpar tudo. Foram e cozinharam quatro miojos dentro de uma panela, cada um de um sabor pra ver no que dava. Socaram e socaram e mesmo assim não conseguiam sentir apetite por aquela gororoba, enfiavam na boca e bebiam um gole de refrigerante pra engolir rápido. Depois de algumas garfadas de cada um, largaram a panela em cima do fogão e deixaram pra mais tarde, quando o corpo começasse a suplicar por comida mais do que por droga. Cheiraram mais e esperaram a tarde passar rapidamente:
  • Vou comprar cigarro, cara – disse Paulo
  • Ok, compra umas cervejas e mais uns maços também – e Fernando esticou uma nota de cinquenta para o amigo
  • Sim, não cheira tudo sozinho, hein...
  • Vou tentar.
Paulo foi em sua missão, com um saquinho fechado por um arame cheio do pó e Fernando ficou sozinho com aquele quase meio quilo em cima da mesinha. Já haviam usado bastante pra nem um dia de uso, tiveram que encher o prato duas ou três vezes desde que haviam começado a nóia. Fernando pensou que aquilo era sujo, sujo e maravilhoso. Sentia que sua vida era tão mais fácil quando não tinha aquilo por perto, mas tão mais aceitável quando tinha para usar o quanto quisesse. O mundo é estranho, pensou, um grande equilíbrio em que nada é 100% alguma coisa. O bom tem ruim e o ruim tem bom e os dois parecem lutar pelo domínio da mente humana constantemente. A cocaína tinha seu lado bom, com certeza, o prazer era a procura do ser humano e aquilo era o prazer pleno e instantâneo. Poucas sensações haviam superado a da cocaína para Fernando, apesar de não ser sua droga preferida ele gostava de abusar algumas vezes. Não ligava para consequências, nenhum dos dois ligava. Sabiam que elas existiam e que eram graves, mas quando entravam juntos de cabeça em uma onda autodestrutiva, demorava um tempo até que os dois se acertassem novamente. Juntos eram uma bomba relógio, morando juntos nem eles mesmo sabiam como ainda estavam vivos e sempre faziam e ouviam piadas a respeito. Armou mais um mas pensou em esperar seu amigo voltar antes de fazer novamente, queria ver se aguentaria a ansiedade de ver toda aquela droga na ponta do seu nariz e decidir a não usa-la porque simplesmente não queria. Mas só de ter pensado nisso já começou a sentir vontade, mas esperou bastante tempo olhando para o prato escuro que estava coberto de pó branco e Paulo não voltava de jeito nenhum. Onde ele foi comprar cigarro? Tinha uma padaria lá perto e um mercadinho não muito longe aonde ele certamente encontraria os cigarros e as cervejas, mas onde foi pegar os dois? Merda, merda...ele não aparecia. Pegou o canudo e mandou aquele tiro que estava namorando desde que o amigo saiu. Olhou na televisão e não tinham passado nem dez minutos.
Paulo voltou e trazia três sacos em suas mãos:
  • O que é isso aí?
  • Uma tequila e duas vodkas vagabundas. Não tinha cerveja.
  • Sem cerveja?
  • Sim, depois eu volto lá qualquer coisa, foda-se. Bota um pra mim aí, vai
Fernando esticou e passou a nota para o amigo, que lhe entregou um cigarro. Conversaram sobre parar de usar e sobre vícios. Depois fizeram outro acordo, de que não iam mais falar sobre parar de usar e sobre vícios enquanto restasse um grama de droga dentro daquele saco. Apertaram as mãos e abriram uma garra de vodka vagabunda, encheram dois copos de dose e viraram. Encheram mais dois e viraram. Mais dois e viraram. Assim talvez sentissem o álcool subir no meio de todo aquele torpor ilusivo causado pela cocaína e pelo sono atrasado e barriga vazia. Sim, a barriga vazia com certeza ajudou a vodka a subir mais rápido, mas a droga os mantinha sãos e de pé e continuaram mamando naquela vodka de pouco em pouco até a noite chegar ao fim. A noite, nem Paulo e nem Fernando sentiam cansaço ou algum tipo de fome. Ainda acordados e nem pensavam em dormir ou comer, estavam naquela mesma fissura há mais de um dia e seus narizes já estavam vermelhos de tanto esfregar e assoar. Durante a madrugada jogaram video game e beberam mais. Estavam tortos e falando coisas sem sentido, Paulo ameaçou desmaiar mas Fernando o pôs de pé com um raio de cocaína maior que seu antebraço:
  • Você tá bem, cara? - perguntou o amigo preocupado
  • Sim, mas vou esperar um pouco até o próximo tiro. Comer aquele miojo
  • É, eu também. Que horas são?
  • Não faço ideia, talvez....cacete, tô bebão nessa porra, nem essa farinha toda tá me endireitando mais – Paulo cambaleava pela casa, se apoiando nas paredes
  • Amanha a gente volta a beber. Quer tentar dormir um pouco depois?
  • Não
  • Nem eu.
Tentaram comer e ainda era impossível. Paulo achou uns pães velhos e recheou-os com o macarrão frio, talvez assim fosse mais fácil de engolir e alimentaria mais aquelas barrigas ilusoriamente cheias. Comeram um cada um e usavam o refrigerante para que tudo descesse rápido pela glote fechada. Ainda tinha sobrado miojo naquela panela e deixaram para o café da manha, se é que teriam um.
3

15h. Sem dormir e comendo o mínimo necessário para se manter de pé. Ainda tinham muita droga em cima da mesa e pareciam exaustos, apesar de não terem sono. Paulo fazia caretas involuntárias e às vezes falava coisas sem sentido. Fernando estava no mesmo caminho, mas ao invés das caretas ele tinha tiques nervosos que iam dos pés até os fios do cabelo, tinha taquicardia constantemente e seu nariz estava pior, mesmo não sentindo nada. Começaram a fazer desenhos com o canivete e com um canetão que acharam em uma das gavetas. Desenharam nas paredes e nas mesas, fizeram frases usando a cocaína do prato e depois cheiravam tudo, discutiram política e um futuro bar que poderiam abrir algum dia. Onde todos poderiam beber, fumar, cheirar e fazer o que bem entendessem lá dentro. O lugar perfeito para os amigos. Abriram a tequila e pegaram sal e limão para fazer aquilo direito. Não tinha limão então pegaram umas laranjas azedas que estavam por lá, beberam algumas doses e fumaram cigarros. Três dias naquela casa e nada de novo havia sido produzido. A televisão estava ligada desde então e já tinha rodado por todos os canais diversas vezes. Fernando olhou-se no espelho do banheiro e disse:
  • Puta merda, acho que vou tomar um banho, cara. Tô podre, preciso dar uma assoada nesse nariz e me limpar um pouco. Escovar os dentes, quem sabe.
  • Bichinha, vai lá tomar bainho vai – caçoou o amigo
  • Vai à merda, vai.
Fernando cheirou mais um pouco e subiu para tomar banho. Paulo pegou um papel e fez uns rabiscos loucos que em sua cabeça pareciam naturais, símbolos e alfabetos que havia criado em sua mente misteriosa e atormentada pela loucura da vida que ia levando há um tempo. Tentou parar com as caretas mas era algo involuntário. Olhou para o prato e riu da submissão daqueles dois jovens por algo tão insignificante e pequeno. Eram fracos e miseráveis, seus seres já estavam apodrecendo nas celas de sua cabeça. O mundo não significava mais nada ultimamente, apenas os campeões ganham os louros, a várzea come o que sobra nos pratos de porcelana chinesa. Mas naquele prato na mesinha de centro não ia sobrar nada, os pegadores e os fodões não encostariam naquele prato, não encostariam naqueles dois garotos destrutivos, estavam protegidos lá dentro e o mundo inteiro estava jogado às traças lá fora, ainda havia uma chance. Enquanto aquele prato mantivesse seu conteúdo e o saco branco servisse de refil, haveria uma chance para aqueles dois. Bebeu uma dose de tequila. Aquilo o fazia forte, aquilo o afastava do resto. As pessoas podiam se matar lá fora por um pedaço de pão, elas não eram mais importantes para Paulo do que aquela dose de tequila amarga. Sentia cada vez mais nojo por elas e sair na rua estava se tornando mais raro e deprimente. Cheirou. Fungou. Seu coração palpitava como o de um beija flor e seus olhos piscavam sem parar, sentia o corpo pedindo por descanso e comida, mas não tinha a vontade de nenhum dos dois. Sabia que precisava comer mas não queria naquela hora. O saco ainda estava cheio, o prato estava pela metade e alguns tiros já estavam esticados, prontos para a volta de Fernando do seu banho. Paulo escreveu em seu diário com o seu misterioso alfabeto de símbolos enquanto esperava o amigo sair do banheiro e foi até a cozinha beber água para repôr o que perdeu em todo aquele suadouro. Fernando desceu do banho com o corpo ainda úmido e cheiraram.
O resto da tarde só serviu para fomentar mais a insanidade crescente em suas cabeças. Começaram a ver séries de psicopatas e programas de investigação policial. Serial killers e assuntos do gênero sempre foram do interessante comum de ambos. Nas conversas que tinham durante as madrugadas jogando jogos de tabuleiro ou tentando escrever algo sempre arranjavam um jeito de colocar o assunto no meio. Fernando se interessava em como alguém se tornava um assassino, um manipulador de pessoas, um líder mundial; Paulo em seus pensamentos sombrios e secretos escondia uma estranha admiração e identificação naquelas pessoas sem sentimento, que podiam se passar por qualquer outra ou simular qualquer situação para poder chegar em quem quer. Os programas passavam um atrás do outro e os dois agitados ficavam ou sentados ou de pé ou andando ou indo de um cômodo para o outro, mas ouvindo tudo o que falavam sobre os loucos e os esquizofrênicos, toda aquela informação sendo bombardeada em suas cabeças já fodidas e exaustas pela droga. Senis e fisssurados, sem ter como pensar devido ao bloqueio que estavam colocando em suas frentes. Um bloqueio de cocaína da boa.
Naquela noite eles empurraram mais um pouco de comida pra dentro da barriga e tentaram parar de cheirar um pouco para poder dormir. Paulo conseguiu e dormiu por duas horas pausadas e mal dormidas, Fernando continuou mandando até o dia nascer novamente.

4

Refrigerante foi o café da manha, muito refrigerante para adocer aquele amargo seco. Fernando saiu para comprar mais e voltou com alguns cigarros e a cerveja. Paulo não estava em condições de sair de casa ou o mandariam para um manicômio devido aos seus espasmos musculares involuntários e sua aparência lamentável de quem não tomava um banho ou qualquer outro tipo de higiene básica há dias. Havia parado de rabiscar as paredes e agora desenhava em seu braço, coisa que mais tarde Fernando percebeu que era o início de tudo aquilo, mas estava chapado há tempo demais naqueles dias para perceber qualquer coisa de errado com ele ou com o amigo. Símbolos que pareciam de culturas desaparecidas há milênios cobriam o antebraço esquerdo de Paulo e agora partia para trabalhar o direito. Os dois achavam aquilo estiloso e então Fernando decidiu aprender um pouco daquele alfabeto misterioso e desenhou em seu braço alguns de seus poemas. Tiraram fotos de tudo aquilo. O saco perdia volume e o prato estava sempre carregado e com os tiros armados. Mais perto do que para as pessoas normais e sóbrias seria o almoço, Paulo perguntou:
  • Será que a cerveja gelou?
  • Não sei. Deve ter. Mas tava querendo mesmo era aquela Coca.
  • Tem aí à vontade – riu Paulo
  • A outra, a neguinha.
  • Vai lá ver, vai
  • Tsc... e Fernando foi até a cozinha
Voltou com duas cervejas e pareciam já estar geladas. Abriram e cheiraram antes do primeiro gole. Gelada.
  • Cacete, a gente tá cheirando há quantos dias? Fernando babou o líquido em seu peito
  • Acho que uns três e meio ou quatro. CACETE! Quatro dias virado nessa porra!
  • Puta merda, cara....queria ter um baseado agora pra acalmar.
  • Queria uma NEGRA pra eu SODOMIZAR o rabo e depois deixar o corpo numa vala por aí – pulou Paulo do sofá e sua expressão era de total insanidade
  • Seu pau não ia subir nem se ela fizesse o melhor dos boquetes em você, cara. Vai por mim...
  • Pior que eu sei, mas eu dou um jeito. Essa droguinha aí não me domina não.
Os dois riram e terminaram suas cervejas. Na televisão os programas policiais ainda rodavam sem parar, comendo suas mentes.
Foi durante aquela tarde que recebi uma ligação deles me chamando para visita-los e cheirar com eles aquela cocaína branquinha. Tinha algumas coisas para resolver e disse que passaria por lá mais pro final da tarde. Disseram que estariam me esperando e que trouxesse maconha e uma chave inglesa comigo. Não entendi o motivo daquela porra de pedido mas como eles estavam noiados e eu estava em casa e tinha uma dessas por lá, peguei e deixei no carro. A maconha já tinha em mãos. Busquei minha mãe em sua casa e a levei até o hospital para que cuidassem de sua perna operada, ela não quis que eu ficasse e também não insisti muito, de forma que só passei no shopping ao lado para comer e comprar um tênis e depois seguir para a rua das Palmeiras, 113, Santa Cecília, apartamento dos dois. Imaginava se havia mesmo tudo aquilo de droga que eles disseram que havia na casa pelo telefone e não duvidei da loucura nem de um, nem do outro. Já havia visto aqueles corpos enfiados em tanta merda que qualquer coisa era de se esperar deles depois de um tempo. Eram únicos.
Estava chegando perto da rua deles e podia ouvir um som alto vindo de algum lugar. Não pode ser, pensei, não tem como a música estar tão clara assim vindo do apartamento deles, nem saí do carro ainda, o MEU rádio ainda estava ligado. Procurei por algum carro tocando Marilyn Mason na rua e não havia ninguém. Só conhecia Paulo que ouvia Marilyn Manson e ainda mais naquele volume. Os vizinhos iam mandar expulsa-los do apartamento se não abaixassem aquele som maldito e tratei de parar logo o carro e ir avisa-los para abaixar aquela maldição.
Subi e o som estava mais alto. O elevador parou, saí e bati na porta. Bati de novo e me senti idiota com aquele chave inglesa na mão parecendo um encanador casual. Fernando abriu a porta.
  • E aí, bicho! Como vai? Entra aí. - sorriu e abriu toda a porta.
Entrei. O lugar estava caótico, muito pior do que qualquer história ou testemunha poderiam descrever. Papéis, canetas, objetos da casa, tudo jogado no chão ou em algum canto. Latas e garrafas vazias por todos os lados, papéis usados para assoar o nariz até no teto. Algumas paredes tinham desenhos e podia jurar que muitos foram feitos com sangue de algum ser. A aparência dos dois era apenas o reflexo do que o ambiente havia se tornado. Olheiras maiores que suas bochechas, hematomas por todo o corpo e aquele odor de suor azedo e velho empesteando a casa inteira. Fernando estava suando às bicas e Paulo estava dando mais um tiro quando o cumprimentei.
  • Cacete, caras...há quanto tempo vocês estão nessa?
  • Calculamos que agora deve ter completado o quarto dia...mas não temos certeza – respondeu Paulo
  • Puta que pariu! - exclamei. Eles tremiam como se fosse algo normal.
  • Foda, cara. Mas olha aí a nossa filha. Da um shot e diz o que acha! - e Paulo apontou o dedo para o prato.
  • Puta que pariu!
Nunca havia visto tanta cocaína antes na minha vida. Não pra se usar até a hora que cair duro no chão. Meio quilo, bom, agora já devia ser bem menos do que a quantia inicial mas se juntassem o que tinha naquele prato mais o que restava dentro do saco...talvez tivesse 350g de cocaína na casa. Isso se não contasse o que já estava em seus organismos há dias. Encarei aquela quantidade toda por alguns segundos e era mais do que eu imaginava que seria. Paulo esticou umas carreiras e vi os desenhos medonhos em seu braço, vi os de Fernando e tudo o que aquela droga havia feito com a cabeça dos dois. Estavam acabados, física e psicologicamente, só de entrar na casa e ficar cinco minutos já era possível perceber aquilo. Não falei nada, apenas enrolei uma nota e nós três abaixamos e mandamos ao mesmo tempo. Paulo tinha esticado uma gorda pra mim e aquilo foi que nem uma bala pro meu nariz:
  • Caralho, é boa mesmo, cara...
  • É, bicho. Espera uns dois minutinhos pra você ver. Vai subir as paredes, hahaha – riu Fernando
  • Eu não pretendo cheirar muito não, caras.
Paulo e Fernando olharam um para o outro e começaram a rir. Achavam que eu não aguentaria não cheirar aquela cocaína quase pura. E não aguentei mesmo. Ficamos lá conversando e mandando e fui percebendo o quão fodido eles estavam. Paulo tinha espasmos que faziam seu corpo inteiro tremer e Fernando parecia estar desligado do mundo, numa espécie de limbo esquizofrênica. Ainda sem comentar nada, perguntei:
  • E esses desenhos? Na parede, em vocês... o que é?
  • Brisa, cara...- e não falaram mais nada
A noite caía e bebemos tequila com cocaína. O amargo ao quadrado. Começamos a misturar cocaína com as bebidas que havia na casa só pelo fato de que tínhamos muito ao nosso dispor e eles não davam a mínima enquanto tivessem aquele saco até a metade. Refrigerante, cerveja, vodka água, suco...água era o pior, de alguma forma misturar a pureza da água com toda aquela merda tóxica e venenosa não caía bem no organismo e nem na brisa. Paramos e continuamos com o resto. Fiquei bêbado mas o pó falava mais alto e nem me senti alterado pelo goró, apenas o pó fazia efeito. Eu estava ainda no processo de ficar pego e aqueles já estavam calejados nesse estágio há dias antes de mim, mas de qualquer forma eu estava muito louco e as maluquisses que aqueles dois diziam como se fossem as coisas mais normais do mundo até começaram a fazer sentido pra mim. Algumas horas se passaram e aquela situação, apesar de extremamente prazerosa, começava a me dar algum frio na espinha. Não sabia o que era, não era falta da droga, porque aquilo era o único problema que não estava por perto naquela hora. Não era uma bad. Era uma sensação de que não devia estar lá fazendo aquilo com aqueles caras. Isso se intensificou quando passei da sala para a cozinha e vi Paulo encarando o espelho do banheiro sem demonstrar nenhuma expressão. Estava apenas olhando para o seu reflexo no espelho há muito tempo e seu olhar era vazio e parecia que havia algo de malígno crescendo dentro dele. Tentei chama-lo e toquei em seu ombro algumas vezes, nada, estava em transe na mais profunda fissura que o pó poderia lhe dar. Sua mente estava esgotada e pensei no cansaço que todos sentiríamos depois que aquilo passasse. Mas se continuassem daquele jeito que estavam eles ficariam naquele estado até a hora que deixariam de sentir a vida e morressem de exaustão ou overdose. Fui até Fernando e expliquei o que estava acontecendo, ele foi até Paulo e tentou chama-lo algumas vezes. Nada ainda:
  • Caramba, cara...o que aconteceu com ele? - Perguntou preocupado
  • Não sei, bicho. Ele surtou! O que a gente faz?
  • Eu já o vi assim antes. Acho que mais tarde melhora, mas é que ele tá com um olhar muito cabuloso!
  • Eu sei, man! Achei que ele fosse pular em cima de mim quando o cutuquei, mas ficou lá parado que nem estátua vendo o reflexo no espelho.
  • Tá em alguma viagem doida da cabeça dele. Você conhece o Paulo, né?
Um momento depois ele saiu do banheiro como se nada tivesse acontecido e parecia não se lembrar muito bem de ter ficado no banheiro por mais de quinze minutos encarando o próprio reflexo. Sugeri que fumássemos um baseado para nos acalmar um pouco e aquela havia sido a decisão mais bem pensado até aquele momento. O único problema nisso era que nenhum dos três conseguia bolar aquela erva porque tremíamos mais que idosos com Parkinson. Passei para Paulo que passou para Fernando que tentou por um bom tempo bolar aquele baseado. Estragou duas sedas e na terceira ele simplesmente surtou. Levantou do chão e começou a chutar o sofá, jogou as almofadas pro alto e quebrou um vaso velho que estava lá por algum motivo desconhecido, ninguém sabia de quem era. Ele sentou-se novamente e seu coração parecia que ia sair pela boca, suava feito um jogador de futebol aposentado e seu olhar também era maligno igual ao de Paulo. Vou ficar assim daqui a pouco?, pensei, não comentei e Paulo resolveu aquela situação do baseado amassando uma das latas de cerveja e improvisando um cachimbo nela. Fernando se acalmou depois de alguns tragos na lata e parecia estar muito abalado ainda pelo acesso de raiva que havia acabado de ter. Colocamos no canal de música e aproveitamos um pouco aquele efeito relaxante da cannabis, deixando os pensamentos da cocaína bem longe da gente. Apesar daquela pequena cordilheira de farinha na mesinha embaixo dos nossos narizes não ajudar muito nessa tarefa, rimos e foi uma risada espontânea e não mais uma ilusão prazerosa que a coca trazia pra nossa cabeça, com explosões de serotonina e dopamina por todo o nosso cérebro impedindo-nos de dar risada de alguma besteira que um de nós soltava de hora em hora. Os espasmos de Paulo diminuíram com o efeito da erva, mas ainda estavam lá, estávamos mais relaxados mas ainda exaustos, principalmente eles. Bebemos mais umas cervejas e entramos em uma conversa totalmente sem sentido:
  • Me imagino enfiando uma FACA em alguém, sabem? - soltou Fernando
  • Não sei, dependendo da situação eu também faria – falei
  • Se o cara merecesse eu não pensaria duas vezes. Ou então se um dia eu perdesse a cabeça de vez ia sair matando quem eu quisesse por aí, queria que tudo fosse pra merda.
  • Se eu fosse fazer uma coisa dessas seria muito bem pensado. Ia fazer bem feito pra poder fazer outras vezes. Não ia ficar marcando bobeira pra ser preso ou alguém me matar – Paulo parecia ter pensado bastante no assunto
  • Mataria um cara que tentasse te assaltar? Perguntei
  • Se eu corresse risco de me foder, com certeza ia, viixi – Paulo fechou os olhos e simulou uma pessoa sendo degolada. Rimos
Fernando deu um longo gole em sua cerveja e a jogou para outro canto da casa, no meio de tantas outras:
  • Não sei, às vezes quando tô chapadão fico pensando se eu não seria capaz de estuprar alguém.
  • Sério, bicho?
  • É, cara...às vezes passo por aí e a brisa do pó vai indo embora ou estou bêbado e vejo uma mulher andando na rua de noite. Imagino que é muito fácil subjugar uma pessoa daquelas, levar pra algum lugar escuro o suficiente e fazer o que quiser com ela. Nunca teve uma coisa dessas passando pela sua cabeça, Paulo?
  • Já pensei nisso, mas não dessa forma. Não sei, talvez você seja louco mesmo cara.
  • Disse o sujeito que não lembra de ter encarado o próprio reflexo por quinze minutos no espelho com a gente te cutucando pra sair daquela brisa. Coisa feia do demônio.
  • Vixi...essa aí foi intensa, meu. Não lembro MESMO de ter ficado todo esse tempo olhando pro espelho.
  • Foi uma cena bem medonha, cara – falei
  • Vamos rir disso um dia.
  • Já estamos.
Já era pra lá da madrugada quando percebi que devia ir embora. Estava cheirado, bêbado, fumado e começando a ficar exausto. Toda a loucura daquele ambiente já havia me consumido e agora eu era parte da decoração da casa, assim como aqueles dois perdidos, mas tinha que ir embora antes que algo de ruim acontecesse e eu estivesse por perto. Ou algo de ruim acontecesse e fosse comigo. Me despedi dos dois, cheiramos as últimas carreiras juntos e Fernando me entregou um saquinho cheio até a boca e gordo de cocaína, talvez o dobro do que eu havia cheirado hoje com eles. Agradeci o presente e olhei para a chave inglesa que havia trazido e deixado em cima da mesa. Fernando abriu a porta e estava pra sair quando perguntei:
  • O que vocês queriam fazer com essa porra dessa chave inglesa?
  • Hahaha, cara...umas coisas estranhas.
SLUM. Bateu a porta.
Andei até o carro e certifiquei-me de que não tinha ninguém me esperando do lado de fora para levar as chaves ou o presente que havia ganho dos rapazes. Entrei e fiquei lá por uns minutos, apenas parado e vendo o movimento morto daquela rua do centro na madrugada. Estiquei um rabisco, cheirei e dei partida no carro. Estiquei outro e mandei. Ainda tinha um longo caminho até em casa, mas tinha com o que fazer o tempo passar.

5

Não sei muito bem o que fizeram depois que saí daquele apartamento. Devem ter continuado o processo de degradação química que haviam iniciado alguns dias antes, é claro. Continuaram se matando tiro por tiro e terminando aquelas garrafas de bebida, gorfado no vaso e no chão do banheiro, terminado de rabiscar as paredes encardidas e destruir todo o apartamento. Quero dizer...poderiam ter feito isso e continuado aproveitando a subvida que levavam do jeito que achassem mais podre. Mas aquela porra de mente fodida que os dois compartilhavam como se fossem siameses ainda iria colocar a dupla de imbecis no meio de uma cagada.
Um pouco antes do amanhecer os dois já estavam pior do que zumbis tirados do cu de um elefante decrépito, desistiram de banho ou de qualquer coisa, a pulsão dentro deles pulsava somente para a droga, pedindo mais conforme fosse necessário para o corpo. Já nem estavam frenéticos na cheirada, iam aos poucos, mantendo a forma monstruosa que queriam permanecer. O saco ainda estava consideravalmente cheio para uma pessoa normal.
Eu estava sem conseguir dormir desde que cheguei em casa e tinha aquele saquinho inteiro para mim. Nem tentei dormir, na verdade. Fernando e Paulo já haviam esquecido esse conceito e decidiram sair um pouco e aproveitar finalmente o que a madrugada paulistana poderia proporcionar a dois retardados. Colocaram uma mochila nas costas de Paulo e foram até um bar que ficava em uma das inúmeras esquinas com bar do centro, aonde permaneceram sentados, bebendo refrigerante e conversando, jogando sinuca e bebendo refrigerante, tendo uma conversa agradável com os clientes, notórios bêbados e viciados da nossa gloriosíssima cidade. Mataram o tempo e comeram os amendoins, alertas ao primeiro sinal de discussão. Esperaram e esperaram, alguma coisa iria acontecer naquela biboca, sempre acontece, é claro. E aconteceu. Alguém empurrou ou pisou no pé de outro alguém, importa? Esse alguém ficou puto pra caralho e começou a falar algo pro outro alguém, os dois começaram a trocar uns sopapos e o dono os mandou ir pra fora do bar para resolver seus negócios. Os brigões foram e os cheirados foram atrás, como quem aposta em uma briga. O que pisou no pé do outro terminou no chão. O que ganhou voltou ao bar e virou uma dose de velho barreiro com limão. Os dois amigos, Paulo e Fernando, ajudaram o do chão a se levantar calmamente. Então Paulo puxa de sua mochila semi aberta a chave inglesa que eu trouxera mais cedo para os dois, veio correndo na direção do vencedor da luta, sentado ao balcão, e desferiu apenas um golpe em seu crânio, que se partiu em dois pedaços na mesma hora. O velhote caiu no chão sangrando pela cabeça igual a um porco e os dois amigos saíram correndo na hora. Não sem Fernando olhar para o que o amigo havia feito e visto a merda que eles estavam dentro. Paulo saiu nervoso e rindo, não havia processado o ocorrido ainda em seu cérebro provavelmente atrofiado e seriamente lesionado.
Depois disso os dois obviamente correram de volta para o apartamento, que parecia estar incrivelmente distante. Paulo me disse que foi se dando conta daquela insanidade enquanto entrava pelo portão do prédio e sentia que o olhar do porteiro era de espanto e medo. Imaginou estar cheio de sangue no rosto e achava que ainda estava com a chave inglesa nas mãos. Se deu conta que a havia jogado dentro do bueiro somente quando eles entraram em casa e ele olhou dentro de sua mochila. Fernando surtou e começou a socar o amigo, não acreditava que ele havia feito aquela merda, mas o que eles queriam fazer com a chave inglesa? Eles não sabiam dizer depois, apenas pediram que eu trouxesse e não sabiam o que fazer, não lembravam qual era o motivo inicial daquela maldita chave inglesa. Brigaram e se esmurraram, queriam esquecer aquela cagada, mas tinham que pensar em como se limpar dela. Não tinha como, simplesmente não tinha como. Seriam presos os dois, um por assassinato e outro por ser cúmplice do assassinato daquele velho cachaceiro que provavelmente ninguém sentiria falta e que trazia mais problemas pra família vivo do que morto. Acalmaram-se os dois por um tempo, ficaram deitados no chão, com manchas de sangue um do outro em suas roupas, desesperados por dentro, sentindo aquela farinha toda não fazer mais sentido algum.
  • Me dá um tiro agora, pelo amor de deus – disse Fernando
Paulo não falava, levou suas mãos ao rosto e estava com a cabeça baixa, horrorizado com ele mesmo, imaginando seu futuro daqui pra frente, as próximas horas seriam as mais agonizantes, esperando aquele carro chegar, esperando o fim de sua vida inútil e envenenada. Mas sua. Agora estaria à mercê do governo, à mercê das leis e da opinião pública, que não tem um histórico muito simpático com a causa pró drogas que os dois seguem a tempo considerável.
Não tinha o que fazer, a merda estava feita. Mas o que fazer? Agora iriam esperar a polícia chegar e se depararem com toda aquela droga e um assassinato a sangue frio? Começaram a cheirar tudo de novo, os narizes recusavam, fodidos até o talo por todo o excesso corrosivo da química louca que eles consumiram por dias a fio. Paulo foi se livrar do sangue em sua roupa e em sua mão, seu rosto estava limpo pelo menos, mesmo com todo o sangue que espirrou e esguichou por todo o bar na horar da pancada. Ele nem ao menos viu aonde foi a pancada, viu o sangue e viu a cabeça sangrando, viu o olhar de terror de quem estava lá na hora. Depois só viu as coisas correndo por seus olhos e ele se empenhando contra sua sombra na maior corrida que já fez em sua vida até o prédio em que morava com o amigo.
Eles mandaram e pensaram e tentaram trazer as vibrações positivas para dentro da casa, mas não tinha como ter um final feliz, é claro. E eu não estaria contando essa história porque eles conseguiram se safar e agora estão curtindo uma vida mais séria e sóbria em alguma cidade do interior, trabalhando em multinacionais ou grandes fazendas milionárias, apenas dando risada e tentando arranjar alguma garota que quisesse alguma coisa com dois caras com tanta história lunática para compartilhar. Não. Eles se foderam. Se foderam bonito depois disso tudo. Fiquei sabendo da prisão deles algumas horas mais tarde naquele dia, perto do almoço, quando recebi uma ligação me chamando para a delegacia. Lá me foi explicado o ocorrido, não a história toda, apenas a parte do bar e da apreensão da droga na casa dos dois. A história toda eu ouvi dos dois nas visitas que eu fazia àquelas pobres cabeças, poucos do nosso ciclo de amigos veio visita-los. Não por falta de consideração, apenas porque não queriam e sempre enviavam seus recados e cartas através de mim. Os dois pareciam entender e não ligar.

A droga em si não trouxe grandes problemas, já haviam usado tanto daquela quantidade e jogado uma parte pela privada que, pela hora que a polícia chegou, já não tinha um B.O tão relevante assim, apenas algo para deixa-los em maus lençóis por um tempo e salpicar o molho de fezes que a morte quase instântanea do sr. Carlos no bar do Tim havia causado em cima deles. Fernando assumiu ser o dono da quantidade e Paulo assumiu a pancada letal na cabeça do velho. Foram presos e ainda estão pra ser julgados por algum tribunal que os colocará num mundo de merda. Fernando talvez tenha sorte e pegue dois ou três anos, Paulo eu simplesmente não sei, talvez fique lá por um bom tempo. Talvez...o sr. Carlos não era lá uma figura tão adorada no bairro também, se tivesse sido o outro senhor, o que perdeu a luta, provavelmente a própria rua do bar já teria linchado os meus dos amigos lá mesmo. Esse senhor da briga, o tal de Leopoldo, irá testemunhar à favor dos dois, aparentemente. Ainda não sei entendo o motivo também, mas imagino que ele deve ter apreciado os miolos do seu Carlos esparramos no chão daquele bar imundo.
Eles me contaram a história aos poucos, detalhadamente, pode ser que eu tenha adicionado uma outra parte, ou um ou outro diálogo da forma que interpretei. Mas não muda o que foi, não muda o que eles foram e são, eles não são nada diferentes do relatado. Dois malucos, dois malucos que não sabiam de nada e achavam saber, dois caras legais que se foderam porque escolheram se foder, ou simplesmente não pensaram em se foder ou não, apenas foram na onda....foram na onda por cinco dias em branco Eles já haviam perdido a mente, os dois. Suas cabeças nunca foram normais, precisaram apenas de todo o esgotamento do narcótico para atingirem seu Id, seus animais primitivos originais. Para se tornarem dois exemplos que os filhos de seus amigos conheceriam e ouviriam falar muito bem durante a infância. Mais dois caras que se perderam no centro da cidade.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Acompanhantes.


  Passaram o dia inteiro juntos no quarto dela, abraçados, assistindo aos programas imbecis da televisão no final de semana, falando bobagens nos ouvidos um do outro, criando receitas para o café da manha, almoço e dando pequenas mordidas em suas orelhas , como cãezinhos brincando depois de mamarem na mãe cachorra.
A garota levanta da cama usando apenas sua calcinha rosa que lhe dava um jeito de adolescente e aquilo deixava o cara doidão por ela. Caminhou pelo quarto atrás do resto de sua roupa, fazia um pouco de frio e ela não gostava muito daquilo, ficava envergonhada quando estava sem roupa do lado de alguém que gostava. Vestiu o sutiã e uma camiseta cumprida. Ela fica cada vez mais linda, pensa o cara deitado na cama, usando os braços como apoio para poder enxerga-la agindo naturalmente pelo quarto. Julie olha para o rapaz e sorri para ele, algo que ele vê como uma das principais qualidades da garota que está saindo há uns meses. Romulo olha para o relógio rosa da Moranguinho que fica em cima do criado mudo da garota, ri do jeito meigo dela ser, 16:47. O dia está cinza e frio.
Os dois se vestem finalmente e vão para a sala, decidem não ligar a televisão mas sim o rádio, já que um pouco do old-fashionable sempre será bem vindo. Tocam algumas músicas idiotas e Julie vai guardar as louças do almoço no armário. Romulo senta na cadeira da cozinha e a observa fazendo aquilo, seus cabelos incrivelmente escuros, o corpo pequeno para aquela camiseta vermelha enorme que ele tem, seus olhos se confundindo com as cores claras da cozinha. Ele tinha se dado muito bem dessa vez.
O telefone toca na cozinha e a garota atende depois de três vezes.
  • Alô? Oi, meu amor – Romulo escuta a conversa inteira com a mesma expressão que a assistiu trabalhando na cozinha, ela parece combinar alguma coisa com um homem, pelo som que ouve do fone, sua voz é mais doce e parece forçar isso para a pessoa do outro lado da linha – Uhuum, sim, e o que mais? Você sabe que precisa acertar o preço antes e tal...ótimo, querido. Eu cobro três mil por esse programa, ok? Que horas quer passar aqui? Já tem o endereço? Então nos vemos mais tarde, amorzinho.
Ela desliga o telefone e continua guardando as louças, ele continua olhando pra ela
  • Quem era dessa vez? Alguma despedida de solteiro? Irlandeses intercambistas?
  • Não...um senhor aí que me liga de vez em quando, ele é uma gracinha.
  • E três mil pilas?! O que ele vai fazer com você? Melhor, o que ele quer que você faça com ele? Enfiar o punho inteiro no....
  • Não, seu idiota – responde a Julie rindo do companheiro- Nem todos os velhos que saem com acompanhantes são enrustidos querendo achar alguém pra enfiar algo na bunda deles. Alguns são só homens de idade querendo companhia.
  • Hahahaha, companhia. Mas é uma boa grana que você vai tirar desse tiozão, hein honey doll?
Julie dá de ombros. Talvez aquilo seja só uma margem baixa de lucro para ela, com aquele rosto e aquele corpo ela poderia arranjar muito mais. Só com o jeito naturalmente lindo dela de ser, ela já conseguiria muito mais nesse mundo repleto de homens perdedores de todas as espécies, em todos os aspectos da vida. Ela vivia em um apartamento legal na Zona Sul e tinha seu carro, suas compras, seus móveis, seus clientes pagando por sua adorável companhia e agora parece que tinha um rapaz que não ligava muito para o fato de outros pagarem para ter a companhia dela da forma que desejarem. Talvez Romulo valesse algum ouro, enfim.
Romulo a abraça por trás e beija seu pescoço. A tarde começa a querer se entregar à noite. Os dois ficam parados na cozinha abraçados como recém casados na casa nova. Ambos sentem isso e vão cada um pra um canto, lentamente. Tudo a seu tempo, crianças.
  • E que horas o sr. Ricaço vai colar pra cá?
  • Por volta das 23:30.
  • E aonde ele vai te levar?
  • Não sei ainda. Talvez pra jantar primeiro e depois...sei lá, o que ele quiser.
Romulo fica em silêncio um tempo.
  • Não sabe aonde ele vai te levar? E se ele te levar pra um beco no fim da estrada e te enfiar uma picareta no olho? Não tem medo disso acontecer não?
  • Hum...pelo dinheiro, nem tanto.
Essas mulheres são capazes de tudo por dinheiro mesmo, pensa Romulo consigo mesmo, quase deixando escapar, mas acho que iria ofender sua garota. Mas ele sabia que tinha razão e que se falasse provavelmente arranjaria argumentos o suficiente para deixa-la quieta. Não sentia essa necessidade infantil de querer humilhar Julie, até porque era ela quem tinha carro e uma casa própria, mesmo que comprado com o dinheiro de incontáveis bimbadas e jantares caros com velhos decrépitos e arrogantes que procuram um pouco de felicidade por uma noite. Ele pelo menos não tinha que pagar e podia ter quase toda a hora que quisesse aquele rabo branco lindo. Romulo se sente mal por pensar essas coisas da garota que está saindo e muda de assunto em sua cabeça, voltando a focar na Julie ali na cozinha, fora do trabalho.
A tarde chega ao fim e a noite dá suas caras, Julie ainda vai demorar para ir trabalhar e os dois aproveitam o frio para deitar no quarto com a televisão ligada em um volume quase inaudível, apagam as luzes e cochilam por algumas horas, abraçados como dois namoradinhos da primeira série. Romulo sonha com Julie e pensa se isso é bom. Digo, no sonho ele se pergunta se é bom pensar tão profunda e intimamente assim na garota, talvez não, talvez a profissão dela se torne uma barreira mais tarde, ou talvez ele continue não ligando tanto assim. Mas ele liga um pouco, claro que ele liga. Julie não se lembra do que sonhou, ela nunca se lembra de seus sonhos. Mas ela estava feliz por alguém não ter que pagar para tê-la, que não tenha que necessariamente despi-la quando estão numa cama, como nesse momento. Ela acorda, sente os braços do rapaz desmaiado em volta do seu corpo e volta a cochilar, não sem antes sorrir para si mesma.
O relógio da Moranguinho toca uma cançãozinha que tira os dois de seus sonos. Uma música insuportável para Romulo, mas que parece despertar Julie com bastante humor.
  • Vou tomar banho, daqui a pouco tenho que sair
O rapaz olha no relógio rosa, 21:00, ainda poderiam dormir mais uma horinha.
  • É cedo ainda...deita mais.
  • Não posso. Não sou que nem você que fica pronto em cinco minutos, contando o tempo do chuveiro. Tenho que valer três mil contos hoje, docinho.
Romulo não gostou muito do "docinho", soava como quando ela fala com seus clientes no telefone. Cheio de "queridinho", "amorzinho", "queridinhos"...ele não achou legal, mas também não achou um problema a se colocar em pauta no momento.
Julie começa a andar pra lá e pra cá no quarto, separando roupas, pequenas bolsas, sapatos, um spray de pimenta, brincos, colares e outros acessórios. Romulo assiste a tudo deitado preguiçoso na cama e a garota começa a se despir para o banho. Ele a espera entrar e continua em silêncio ouvindo a água cair no corpo escultural de Julie. Então ele tira a roupa e vai para o banheiro aproveitar a água que cai. A suíte dela é grande, o banheiro é quase do tamanho do quarto do rapaz, ele sente sua masculinidade ferida de alguma estranha forma por isso e abre a porta de vidro do banheiro. Ela é linda fazendo as coisas naturais de um ser vivo: quando comia, tomando banho, andando...talvez até arrotando e cagando ela continuasse angelical. Novamente ele se sente feliz e sortudo por estar saindo com ela. Julie sorri com todos os dentes quando ele entra no chuveiro e os dois se beijam aqui e ali por uns instantes. A garota gostava disso porque a lembrava dos mocinhos e mocinhas de filmes se beijando na chuva. O garoto gostava porque ela era simplesmente sensacional.
As mãos dele descem um pouco, mas a garota pela primeira vez se esquiva delas. Ele não entende e ela diz:
  • Não posso ficar cansada, tenho que ficar 100% pra ele.
Romulo não diz nada, apenas sorri com o canto da boca, decepcionado. Julie percebe o que falou e que deve ter deixado-o triste. Às vezes ela lida com homens simplesmente como se eles fossem seus clientes, mecanicamente, agindo seguindo um roteiro mental que ela cria para cada situação, mas que na verdade é a mesma coisa de sempre adaptada para meios diferentes, com caras mais diferentes ainda. Ela coloca as mãos ao redor de seu rosto, algo que raramente faz no trabalho por achar pessoal demais, beija sua boca de uma forma que nunca beija ninguém. Romulo percebe esse beijo diferente.
  • Você sabe que depois eu sou toda sua, não sabe? - ela fala com seu sorriso hipnotizante e seus olhos e seu cabelo escorregando toda aquela água tiram as palavras de Romulo, que a beija novamente.
  • Por todo o final de semana? - ele diz quando suas bocas se separam
  • Hmmm...veremos. - ela tem um olhar de deboche para ele, os dois riem e ficam no chuveiro por bem mais tempo do que o planejado por Julie, apenas abraçados com a água.
Atrasada. Bom, não que o velho vá se importar em esperar um pouco, afinal de contas, Julie vale a espera, com certeza. Mas ela não gosta de atrasar, prefere ser profissional o máximo que conseguir. Atrasos são para encontros pessoais, ela precisa ser pontual no serviço, nesse serviço. Romulo está de cueca e despreocupado com a hora, deitado na cama king size da garota. Assiste Julie correndo novamente pelo quarto, com roupas, maquiagens, acessórios e tudo que foi citado anteriormente. Ele nem sabe como uma mulher consegue passar e esconder tantas coisas só na região do rosto e do cabelo, ainda mais pra Julie que não precisava de maquiagem alguma para ter aquele rosto perfeito, talvez um batom e um lápis para dar uma profundidade naquele olhar, mas talvez até isso fosse desnecessário. Ela era linda maquiada, ela era perfeita natural.
Julie colocava um vestido verde escuro, a cor preferida de Romulo. Parecia que ia pra um casamento ou evento importantíssimo, pelas roupas que ia usar. Até que esse emprego não é nada mal, pensou ele. Estava quase pronta e ele observava todo o processo, eles conversavam banalidades no meio tempo mas a mente dele estava focado na visão da garota de costas pra ele e de frente para o espelho, terminando de se maquiar. Ele olhou no relógio da Moranguinho, 23:08 já. Logo menos eles iriam se despedir um do outro e ele não gostou de pensar nisso, apesar de ter ignorado o pensamento e o fato de não gostar dele logo em seguida. Começou a se trocar também e se perguntava se sairia junto com ela ou sairia antes para que não se metesse na situação constrangedora de trombar com o velho tarado. Foi se deixando pelo pensamento e pelo seu colocar de calças e camiseta lento, até que o tempo foi passando rapidamente e logo menos o velho estaria ali, logo menos mesmo. Ele se apressa e vai se preparando para despedir-se de Julie, quando pensa ter ouvido o interfone tocar. Mas foi sua imaginação, que bom. Vai até a porta do banheiro:
  • Ju, acho que já vou....
TRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIM. Interfone. Droga, pensa Romulo. Ele olha para o relógio da Moranguinho enquanto Julie vai até a cozinha atender. 23:30. Malditos velhos pontuais. Senta na cama enquanto ouve Julie atendendo o interfone, ela aparece logo depois no cômodo e fala:
  • Ele tá aí embaixo, vamos.
Pegam o elevador e Romulo se despede da garota lá dentro com um beijo longo e molhado. Não trocam muitas palavras um com o outro e chegam ao térreo. Um Aston Martin que parecia ser azul escuro parado na frente do prédio, com certeza era aquele velho. Parecia mais que o James Bond ia levar Julie para sair, Romulo se sentiu rebaixado. Mas pelo menos não precisava pagar para ter a companhia da morena. Julie vai até o carro do velho, que abaixa o vidro e troca umas palavras rápidas com ela, depois olha para Romulo e pergunta para a moça:
  • E quem é ele?
  • É um amigo meu – ela responde
O velho acena para Romulo, que acena de volta timidamente, um tanto quanto constrangido.
  • Chama ele pra vir junto então.
Julie olha para Romulo, que fingi não ter ouvido o que ouviu. Ir junto? Pra que raios de lugar ele quer levar os dois? Que porra era aquela de ir junto? Julie olha para o rapaz e acena com a mão para que venha, ele permanece parado como uma estátua no portão do prédio e um impulso inconsciente movimenta suas pernas em direção ao carro. Foda-se, pensou. Abriu a porta, que tinha uma maçaneta engraçada e elegante. O interior do carro era até melhor que o do James Bond, detalhes em madeira e o que parecia ser um veludo muito bom de se passar a mão, Julie foi no banco da frente, evidentemente. Romulo foi no de trás como se fosse o filho do casal, sentado no banco do meio para ouvir os dois conversando, não sabia porque estava fazendo aquilo, não sabia porque estava ali.
  • E qual é o seu nome, filho? - pergunta o senhor rico
  • Hmm...Romulo. E o seu?
  • Meu nome é Svevan. Diferente demais, eu sei.
  • Svevan...é o que? Dinamarquês, sueco, o que? S-V-E-V-A-N?
  • Norueguês. Se escreve com a mesma estranheza que se pronuncia. Mas eu não sou de lá, minha família inteira é, mas sou nascido aqui.
Noruegueses milionários e os nativos comendo lixo nas ruas, pensou Julie. Bom pra mim, pensou novamente.
  • Você conhece esse mocinho simpático há quanto tempo, meu doce? - o velhote tinha um tom de salafrário na sua voz e Romulo pressentiu algo ruim.
Julie comentou uma história qualquer sobre como os dois se conheceram, mas o rapaz sentado no banco de trás pensava o que estava fazendo ali. Não pensou direito o que o simpático e aparentemente milionário senhor Svevan planejava para aquela noite. Sabia que iriam jantar em algum lugar antes, isso tudo bem, estava com fome mesmo. O que o tirava do sério naquele banco de trás era o que aconteceria após a janta, pra que lado aquele velho ia levar os dois e o que ele queria fazer? Queria comer Julie enquanto Romulo assiste a tudo? Queria que Romulo e Julie fizessem suas intimidades com o velho assistindo tudo? Talvez ele quisesse comer os dois, ou que os dois comessem ele. Talvez eles estivessem indo pra uma orgia da terceira idade e os dois jovens novinhos em folha seriam o prato principal da noite. Ele teve um tremelique ao pensar isso em sua cabeça. Se as coisas ficassem sérias demais ele simplesmente abria a porta do carro e pularia fora, Julie que se livrasse desse problema por si só, ela que o havia colocado nele a princípio. Ficou pintando as paredes da sua cabeça com todas as imagens mentais mais bizarras que poderia imaginar com aquele velho, pensou por tanto tempo e tão profundamente que nem percebeu quando a garota se dirigia a ele ao final de sua história.
  • Não é verdade, Rô?
  • Hm? - saindo de seu devaneio
  • O show de bossa nova que nós nos conhecemos.
  • Ah...sim...verdade, hahaha - Não sabia muito bem do que ela falava.
O velho olha para o garoto através do retrovisor e dá um sorriso:
  • haha, não é comum achar jovens com um gosto musical apurado assim. Acho muito bonito isso.
Romulo sorri de volta um riso amarelo. Esse velho tem a maior pinta de bichona, pensa. Mas vai continuar em silêncio no seu canto daquele Aston Martin magnífico, nem tudo é o que parece ser no final das contas. Os semáforos parecem obedecerem a um comando próprio do carro e estão todos verdes no caminho inteiro até seja lá aonde estivessem indo. Romulo não reconhece o caminho e parece que estão seguindo para alguma estrada, os carros que passam por ele passam quase voando e parecem ser todos muito mais caros do que os que Romulo e Julie viam no dia a dia de seus bairros de classe média. Svevan os levava para algum lugar caro, com certeza, sem surpresas. O rapaz se acalmou ao perceber isso e até conseguiu conversar um pouco com o senhor, que já chamava sua atenção por causa de seu silêncio pelo percurso quase inteiro.
  • Bom, já estamos quase chegando. Vocês vão achar o lugar muito apropriado, já estiveram no Hipódromo?
  • Uma vez, sim – responde Julie
  • Hipódromo...Jockey Club?- pergunta Romulo, surpreso enfim.
  • Sim, já esteve lá?
É claro que ele nunca esteve lá, não tinha dinheiro nem pra saber como chegar naquele lugar. Sempre teve uma grande curiosidade nos cavalos e nas apostas e corridas, claro. Achava algo para sujeitos com muita classe e posses, achava legal. Respondeu a pergunta do senhor Svevan com um "não" tímido que teimou em sair da sua boca. Julie olha pra ele com um sorrisinho igual ao de uma mãe querendo alegrar seu filho com um passeio inédito em sua vida. Ele responde de volta com outro sorriso e as imagens do pós jantar escatológico voltam com tudo em sua mente, mas são ofuscadas pelas luzes do Jockey Club se aproximando deles aos poucos. Romulo repara as pessoas e os carros e tenta calcular quanto dinheiro não deve rodar por aí todos os dias, com esse bando de velho sozinho e tarado querendo gastar sua pensão exorbitante com corpinhos apertados de morenas branquinhas. Imaginou se Svevan é casado, olha em suas mãos e não vê nem sombra de um anel. Não parecia ser viúvo também, parecia apenas solitário de uma estranha forma.
Tudo ao redor parecia muito bonito e iluminado. Bela clientela você tem, gata, pensa Romulo e guardou o comentário para depois que a noite acabasse, caso não fosse estuprado até desmaiar antes disso. Svevan estacionou o carro e abriu a porta para os dois jovens, como um cavalheiro europeu. Cumprimentou Romulo mais formalmente com um aperto de mão e os dois foram andando até o restaurante que Svevan escolheu. Quer dizer, ele disse que eles iriam escolher, mas como Julie e Romulo não faziam nem ideia dos nomes dos restaurantes e muito menos dos pratos do cardápio, ou menu, fingiram serem cordiais quanto a isso, deixando Svevan escolher um bom lugar de frente para a pista e para aquele monte de cavalos.
O serviço do lugar era espetacular e Svevan mostrou-se uma das pessoass mais carismáticas e adoráveis que Romulo havia conhecido até então. Trabalhou nos negócios da família a vida inteira, algo dentro de importações e essas coisas. Viajou uma grande fatia do mundo, parte pelo trabalho e parte pelo lazer. Adorava corridas de cavalos e tinha alguns em um sítio no interior do estado. O jovem casal nunca tinha conhecido ninguém tão rico quanto Svevan e, se existisse, estava jantando e apostando naquele mesmo hipódromo. Comeram três lagostas e Romulo quase pediu uma segunda quando Svevan ofereceu, mas achou que não seria muito educado e só aceitou a sobremesa com algum nome francês que os dois nunca tinham ouvido falar. O senhor elogiava a beleza de ambos os jovens, elogiava a educação e a cultura dos dois, que não era nada fraca. Romulo ficou sem graça com os elogios, Julie estava corada. O rapaz havia até esquecido dos pensamentos pós jantar que teve no caminho todo até o hipódromo, estava tão dentro da conversa com o velho e tão dentro das apostas impossíveis de entender que faziam naqueles cavalos puro sangue. Parecia que estavam saindo com um rico tio-avô distante que veio visitar os netinhos, não era um pervertido, era um gentleman com tudo que se tem direito. Usava até um relógio de bolso!, observou Romulo quando já terminavam suas xícaras de café de cinco reais. Svevan tirou aquela peça dourada amarrada a um cordão do bolso de seu colete:
  • Hum, acho que já está na hora de partirmos. Perdemos totalmente a noção do tempo conversando aqui. O que acham de ir?
Romulo olha no seu modesto relógio de pulso e percebeu que ficaram sentados naquele lugar por pelo menos quatro horas, ele nem tinha visto o tempo passar praticamente.
  • Nossa! Perdi completamente a noção da hora – comenta – Vamos indo mesmo.
  • Esse lugar te prende de verdade, parece aqueles cassinos em Vegas – diz o senhor
Eles concordam, mesmo nenhum dos dois tendo ido visitar Las Vegas nos últimos anos. Svevan pede a conta e Romulo treme ao imaginar a quantidade de zeros nela.
  • É o ambiente, sabe? Muito bonito, pessoas decentes, jovens casais...tudo isso colabora pra gente perder a hora. Mas enfim, o que vocês acharam?
  • Maravilhoso, docinho. Nunca achei que teria uma noite tão interessante quando você me ligou. O Romulo deve ter pensado o mesmo, não é?
  • Ah...com certeza, sim – disse sem graça
A conta chega. Romulo lembra que não tinha nem um centavo em mãos, mesmo sendo óbvio que Svevan pagaria, já que só o preço da cadeira devia ser mais do que o rapaz fazia em um ano. O velho olhou para o papel e sua expressão continuou a mesma, como se já tivesse calculado o preço gasto no jantar horas antes de pedir a conta. Pegou o cartão de crédito e colocou na maquininha. Julie esticou o pescoço gentilmente e olhou de relance para a conta, seus olhos saltaram de forma discreta das globos oculares, Romulo percebeu sua reação e fez o mesmo, só que devido à proximidade que estava do velho, viu o número inteiro. Quatro mil pilas. Quatro mil pilas. Ele gastou quatro mil notas de um real num jantar com dois jovens. Mais três mil pela companhia de Julie. Mais a gorjeta. Aquilo era irreal para Romulo, para Julie até que era mais comum, mesmo sendo um caso raro. Não conseguia nem imaginar o que saiu tão caro. Uma lagosta por mil pratas? Não, eles também beberam duas garrafas de vinho tinto espetacular, que Romulo aproveitou para mamar nas duas como se fossem os peitos da mãe, pediram outras coisas que nem lembrava mais o que eram, mas eram boas e em pequena quantidade, logo caras. Sentiu-se envergonhado pela conta que deixaram para Svevan pagar, mas a verdade é que foi ele e apenas ele quem escolheu o lugar e o roteiro da noite. E ainda teria mais o que fazer nesse roteiro, se quisesse. Romulo deu um tremilique em sua cadeira com esse pensamento. Levantaram-se e se despediram do maitre, Svevan ainda deixou uma nota de cinquenta na lapela do homem e Romulo fingiu que aquilo era normal.
No caminho até o carro, Svevan pegou na mão de Julie, que pareceu não se importar, é claro, e foram os três conversando até o carro. Romulo voltou a ter as ideias sobre como seria o final daquele noite e não conseguia se livrar das mesmas novamente. Sentou no banco de trás e Svevan apareceu em sua mente deitado na cama, algemado e de cueca, com suas rugas e seu cu velho empapados em óleo, de quatro em seu colchão gigantesco para um homem só. Começou a sentir nojo do velho, nojo daquele cu seco e daquele pau murcho querendo penetrar o corpinho lindo de Julie. Mas por outro lado o velho havia sido um verdadeiro cavalheiro aquela noite, aquilo devia valer de algo. Caras muito piores se davam tão bem quanto ele e tinham que gastar e falar muito menos do que o pobre Svevan. Talvez ele não fosse um pirado sexual, só quisesse um pouco de carinho ou atenção. Romulo não deixaria ele enfiar nada em seu rabo ou em qualquer parte de seu corpo, isso com certeza não. Mas talvez não se importasse tanto em dar um pouco de alegria ao velhote milionário. O sujeito parecia ser tão sozinho quanto tudo, não foi casado e nunca encontrou um amor de verdade em sua vida, sua alegria era sair com belas garotas de idades variadas como Julie, e às vezes com seus jovens quase namorados, como Romulo, como disse durante a janta. De repente, Romulo percebeu que não havia agradecido ao senhor Svevan pelo inesquecível jantar.
  • Muito obrigado pelo jantar, Svevan. Foi inesq....muito boa a comida e o lugar. Obrigado
Svevan olha pelo espelho para Romulo e sorri como um avô ao neto.
  • De nada, meu filho. Foi um prazer até agora.
Julie estava quieta no banco, não pensando muito em o que se seguiria depois disso. Se divertiu a noite inteira tentando imaginar o que passava pela cabeça de Romulo naquele jantar. Deve ter pensado o tempo todo que o velho ia querer umas esquisitices depois de saírem do Hipódromo. Julie olha para Romulo, que está absorto nesses exatos pensamentos, e ri do pobre garoto. Ainda tinha muito o que experimentar naquela vida. E muito o que ver em cada pessoa que conhecia. Pousou sua mão na perna de Svevan, que pareceu não demonstrar muita coisa nesse gesto, apenas sorriu olhando para a estrada escura. Julie gostava quando os homens não pareciam uns macacos tarados querendo resolver tudo em cinco minutos. Gostava quando a tratavam como um homem trata uma mulher em um encontro normal, aquilo fazia muita diferença no final da noite, isso diferenciava muito a satisfação do cliente para com ela, eles só não sabiam chegar nesse ponto e eram em sua maioria afobados e selvagens. Svevan não, era muito educado e respeitoso, um gentleman.
O Aston Martin rasgava a estrada e a escuridão. Romulo pensava em alguém rasgando seus fundilhos, pensava na orgia de velhos à lá Requiem for a Dream, pensava em Julie penetrando seu rabo com um pinto postiço e sentia suas nádegas formigarem no banco macio do carro, estava apreensivo. Estava apreensivo mas sentia sua psique aliviando a situação e anestesiando-o a cada quilômetro que andavam, teria que aguentar qualquer coisa depois de uma noite de sete mil reais que Svevan gastou com os dois. Virei uma puta agora, pensou no banco macio do Aston Martin. Sim, havia virado já que havia concordado em entrar no carro aquela hora. Mas estava arrependido? Havia ido a um lugar que sempre quis ir, comido coisas que nunca havia experimentado e que provavalmente nunca experimentará novamente. Quem sabe ele não teria uma experiência nova que valesse a pena com o velho Svevan e a adorável Julie? Concordou que sim, mesmo com o fundo de sua mente dizendo que talvez não. Se aproximavam da cidade e aquele caminho lhe era familiar, de fato, haviam passado por ele há pouco mais de quatro horas, quando estavam indo comer naquele palácio. De lá iam para um motel, Romulo teve a certeza. Um motel muito chique, ou talvez a própria casa do velho Svevan. Pensou e pensou nas possibilidades, Svevan falou e falou e a mão de Julie continuou pousada no alto da coxa do senhor, acariciando como uma amante. O rádio tocava jazz e Romulo decidiu-se a topar o que viesse pela frente, afinal, aquela era um noite fora do comum para ele, então que fosse inteiramente insana de uma vez.
O carro parou na frente do prédio de Julie. Romulo só percebeu quando o carro parou e a luz de presença anunciou a presença do carro incomum naquele bairro. Imaginou que a festa aconteceria por lá mesmo e não fez comentário algum, querendo acabar logo com aquilo, apenas saiu do carro e e esperou os dois saírem lá fora. Mas demoraram mais pra sair do que deveriam. Romulo foi checar e Svevan se despedia de Julie, segurando suas mãos com as dele, fazendo como se fosse uma ostra ao redor de uma pérola branca e rosada. Romulo não entendeu e olhou para os dois através do vidro filmado, com certa dificuldade. Então Julie saiu do carro e olhou para ele:
  • Não vai se despedir do Svevan, não? Ele pagou por uma noite bem cara hoje.
  • Mas...mas ele não.... - Romulo estava confuso com aquilo
  • Ele já tá indo
O vidro do motorista abaixou lentamente, revelando um Svevan sorridente e visivelmente satisfeito. Ele apertou a mão do garoto com força e certa pegada.
  • Obrigado pela companhia, garoto. Foi um prazer conhece-lo. Espero que possamos repetir isso outra vez, se o acaso for nosso parceiro novamente em outra ocasião.
Romulo sorri e devolve o aperto de mão com a mesma intensidade. Ainda sem entender muito bem o que acontecia. Será que ele não gostou muito de Julie? Será que ele não havia achado o rapaz atraente? Romulo sentiu-se triste com isso e jurou nunca comentar com ninguém esse sentimento novo.
  • Foi um prazer também, senhor Svevan. Algo inusitado...gostei muito, vamos repetir, se o senhor desejar.
  • Me chama de Svevan, apenas, por favor. E sim, vamos repetir, claro. Beijos Julie, meu doce, nos encontramos algum dia.
Julie manda um beijo doce para o velho, que sobe os vidros do carro e sai vitorioso com seu Aston Martin azul escuro. Romulo e Julie assistem ao carro sair de cena, engolido pela madrugada, ambos estavam bem cansados. Romulo percebeu nesse momento que estava mais bêbado do que imaginava a princípio.
  • Aquele senhor...eu achei que ele... - começou o rapaz
  • Eu sei o que você achou, Romulo. Hahaha, que bobo, ficou surpreso?
  • Bom...eu não entendi o que aconteceu. Assim, ele paga três mil reais por você, mais quatro mil reais, QUATRO MIL REAIS, pelo jantar pra nós dois. Nos deixa em casa e ainda assim não quis nada com você. Ele não tinha visto uma foto sua antes e te achou feia? Ele me achou feio? O que ele tinha na cabeça?
  • Hm...nada, oras. Ele só queria uma companhia pra passar a noite. Tá cheio de caras por aí assim, pra falar a verdade. Não querem só transar e tal. Pra falar a verdade eu até estranho os que não querem, mas às vezes é legal, que nem hoje. E ele ainda chamou você, o que foi mais legal ainda
  • Sim.
  • Então ok – termina a garota, sorrindo
Entram no hall do prédio e chamam o elevador, Romulo abraça a garota por trás e beija seu pescoço, ainda confuso.
  • Sabe, ainda não entendo...eu nunca deixaria uma foda como você escapar, sendo bem rude mesmo. Mas não deixaria, ainda mais se tivesse pago o que ele pagou por ele. E no final, sou eu quem vai ganhar o prêmio da noite.
  • Hmmmm...o que te faz pensar que vai se dar tão bem assim? Tô morrendo de cansaço, amorzinho – brinca Julie
  • HAHA, nada disso, honey, você prometeu que seria toda minha quando voltasse.
Julie beijou a boca de Romulo, um beijo demorado de espera de elevador. A noite com o solitário Svevan aos poucos ia dando lugar para um resto de noite com Romulo, o que para ela era mais interessante, sexualmente falando. Romulo sorriu ao final do beijo, sorriu enquanto entravam no elevador e recomeçaram os amassos. O velho Svevan não teve acesso ao que ele teria agora, não teve porque não quis, pobre diabo. Um pobre de um velho rico e solitário, parece que o dinheiro não compra tudo mesmo. Aliás, até compra, e quase comprou a bunda de Romulo essa noite, se o senhor norueguês quisesse. Porém ele não quis, preferiu pagar um jantar que custa mais do que o gasto que África inteira tem com alimentação em um ano. O elevador chegou ao andar da garota, eles entraram no apartamento e a bolsa de Julie estava recheada de dinheiro que ela gastaria com ele no dia seguinte, ou na semana seguinte, ou quando ela achasse melhor. Bom, talvez ser acompanhante não seja tão ruim e sujo quanto penso, disse Romulo em sua cabeça. E então, apagaram as luzes e deitaram na cama, iluminados apenas pelo números do relógio rosa da Moranguinho e agradecendo a Svevan dentro de seus cérebros enquanto se agarravam naquele resto de madrugada.