sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

No fim do ano.


   Estava perto do fim do ano e essa época sempre me deixava triste. Não tinha um motivo consciente e claro, apenas me deixava triste assim que virava de novembro para dezembro, às vezes um pouco antes, em fevereiro ou março. A noite estava escura e nenhuma estrela pontilhava o céu de branco, ouvia-se os metrôs e os carros passando e pessoas vivendo suas vidas e sendo felizes com alguma fórmula mágica que não haviam me dado acesso até agora.
   Morava em uma quitinete na zona oeste e nada de interessante acontecia por lá, salve os tiros que davam em jogos de futebol ou quando algum imbecil revidava um assalto e levava uma bala na cabeça de graça. Se importam mais com o dinheiro que ganham para pagar as contas do que com seu coração batendo. De certa forma os dois consumiam sua vida, dinheiro e o coração batendo. Uma puta morena e bunduda saiu do meu apartamento e bateu a porta, os porta retratos vazios balançaram e um caiu do pequeno móvel ao lado da pequena televisão. Fui pegar algo para beber e me dei conta de que não tinha absolutamente nada, procurei e procurei até desistir e ir tentar escrever alguma coisa. Nada também. Maldito fim de ano.
   Algumas horas mais tarde, lá pela madrugada, estava sentado no escuro, sem TV ligada, sem livro para ler ou ideias para colocar no papel, estava pensando se não seria melhor dormir e foda-se aquele dia. Não tinha sono aquela hora e só me restava olhar as luzes dos carros e da cidade inteira da janela de minha quitinete; aquilo era algo que se poderia ver por dias e dias sem se sentir vazio ou enjoado. A cidade durante a madrugada.
   Então alguém bateu na porta. Bateu novamente e pensei quem porras poderia ser numa hora daquelas? Uma mulher nunca. Comida grátis eu duvidava muito também. Pensei se iria abrir ou não, a pessoa bateu de novo e fui atender. Era o vizinho do corredor:
"Oi" – disse envergonhado
   Ele era gordo e tinha um cabelo amarelado e uma aparência miserável e cansada. Havia visto o sujeito algumas vezes quando estava voltando de algum lugar e nos topávamos no corredor. Ele balançava a cabeça cumprimentando e eu simplesmente passava por ele.
"huum, Oi...o que você quer?"
"Eu sei que você não é muito de conversar com os outros ou chamar os amigos para entrar e tal. E essa com certeza é uma péssima hora para..."
"Desembucha, cara" – cortei
"Bom, a verdade é que eu estava sozinho em casa e essa época do ano me deixa na pior. Eu sei que você bebe umas e não dorme muito então pensei se não queria tomar algumas doses comigo" ele levantou uma garrafa de cachaça na altura do meu nariz
"Entra"
   O vizinho entrou e acendi a luz da sala, uma única lâmpada amarela que deixava todo o lugar com um olhar melancólico e antigo. Me dava conforto de alguma forma. Ele me deu a garrafa e fui pegar uns copos na cozinha. Não tinha nada pra comer. Voltei e enchi dois copos de dose para os dois, brindamos e viramos. Enchi outro, brindamos e viramos novamente. Enchi e repetimos. Deitamos o copo ao lado do criado mudo e ele estava sentado em uma poltrona que tinha ao lado da minha cama e eu sentado na minha cama, a janela estava entre nós:
"Bela vista você tem daqui durante a noite"
"Eu sei, talvez o motivo pelo qual eu comprei isso aqui."
"Você comprou esse buraco só pela vista?"
"Sim"
"Legal" – puxou um maço de cigarros – "Você se importa que eu fume aqui?"
"Não. Me dê um desses"
   Ele acendeu o cigarro e me passou outro, acendi, ficamos lá sentados sem falar nada por um tempo. As buzinas e as sirenes se misturavam com as cores vermelhas e amarelas piscantes da cidade grande. Os enfeites de natal traziam consigo a tristeza do fim do ano e a cada luz que apagava eu imaginava alguém morrendo em algum lugar, nos braços da família, da amante ou no meio da rua, atropelado por um bêbado ao volante. A fumaça dos cigarros enchia o minúsculo apartamento-cômodo e o vizinho gordo e miserável parecia perdido entre a visão da cidade escura. Enchi os copos e ele deu um gole e disse:
"Achei que você pensaria que eu era um bicha ou coisa assim por estar batendo na sua porta a essa hora da madrugada e te chamando pra beber"
"Acho que um gay já teria pulado em cima"
"Não sei" e soprou fumaça pela janela.
"Mas você não é veado, é?" perguntei só pela garantia
"Não, cara. Só estava em casa e tinha essa garrafa e essa tristeza solitária maldita acabando comigo. Era impossível ficar lá dentro mais um segundo, entende?
"Na verdade não muito"
"Sorte a sua, cara" virou seu copo e fiz o mesmo.
   Ele foi até o a sala e apagou a lâmpada amarela, tudo estava escuro como o céu agora. Achei que aquele gordo de cabelo amarelo fosse um estuprador gay e estava me embebedando para acabar com o meu cu mais tarde. Merda, pensei, no fim do ano não espero mais nada de ninguém. Ele voltou até sua poltrona e eu estava segurando a garrafa para quebrar em seu rosto caso tentasse alguma aproximação. Ele apenas sentou e olhou novamente para a rua:
"É mais bonito assim. Escuridão" disse
"Você também não gosta dessa época?" perguntei
"Fim do ano? Não muito. Tudo parece cinco vezes pior e você sente que a vida inteira está passando pelos seus olhos e você é só mais um pedaço que foi jogado pelo universo pra fazer peso no mundo. Passo o ano inteiro sem nem ver um rosto mas é nesse último mês que sinto a maior solidão da Terra. Só estou vivo porque bebo que nem um porco nessa época"
"Eu sei. E o resto do ano?"
"Também bebo"
"Eu sei"
   Rimos. Foi bom dar uma risada. Não lembrava de como era dar uma risada confinado dentro daquela quitinete há dias. Não imaginava conversar com aquele cara sobre isso e nem beber cachaça e fumar cigarros enquanto o fazia. Ele era legal. Talvez devesse dar mais chances às pessoas de vez em quando.
Um caminhão de bombeiros passou varando todos os carros da avenida em frente ao prédio e por algum milagre ou exímia habilidade do motorista, uma merda homérica não aconteceu:
"Pressa. Tudo é pressa. O fogo continuará lá queimando e destruindo e tudo é pressa. Quando apagarem o incêndio sairão correndo atrás de outro e depois irão atrás de outro. A vida vai queimando que nem uma vela de sete dias e as pessoas querem competir contra ela. Querem ser mais rápidas do que a vida e que o fogo ardente. Não entendo isso, cara. Você entende?" virou e me encarou
"Longe disso. Correm e depois quebram suas caras. Dizem que o ano novo trará vida nova e chutam o mesmo cachorro velho quando chegam em casa, os filhos repetem de ano e o cartão ultrapassa o limite e somente as roupas brancas e amarelas são as novidades dessa vida nova. E a ressaca de champagne barato no dia seguinte"
"Um brinde a isso" ergueu seu copo que havia enchido novamente, brindamos e bebemos.
   Um tempo passou. Não sei bem quanto tempo, mas a garrafa ia sendo esvaziada aos poucos e eu estava chumbado e meu vizinho certamente estava no mesmo nível. Os cigarros rolavam como salgadinhos e as cinzas sujavam o chão e o criado mudo. Conversamos mais um pouco e ficamos em silêncio por um tempo novamente. Ele sabia a hora de calar a boca, admirava essa qualidade em uma pessoa. Sabia a hora de falar também, e falava bem, não precisava ficar inventando assuntos, eles fluíam. Aonde estava aquele sujeito o tempo todo? Bebemos mais umas doses e a garrafa passava da metade quando ele se levantou completamente ébrio e disse:
"Acho que tenho que ir, é tarde"
"Você é quem sabe, cara. Volta amanha pra gente beber mais"
"Amanha eu volto nesse horário de agora e a gente termina essa garrafa. Pode ficar com ela aí"
"E se eu beber tudo de tarde?" perguntei
"Pode beber, eu trago outra. Tem mais uma dessas fechada lá dentro"
"Sem problemas então? Me deixa uns cigarros também se não for pedir muito, cara"
"OK" pegou uns cigarros do maço e me entregou – "Quer saber, fique com o maço todo. Agradecimento pela companhia"
   Peguei o maço e me levantei da cama. Cacete, como estava bêbado. Aquele goró tinha ido mesmo direto pra minha cabeça e meu estômago vazio não ajudou muito no processo.
"Puta merda, tô muito bêbado" falou o gordo vizinho
"Eu sei, cara. Subiu direto essa porra"
   Abri a porta e cumprimentei o cara. Agradeci o maço e a cachaça e disse para que voltasse amanha com a outra garrafa e outro maço naquele horário que havia batido na porta.
"Pode deixar, bicho" disse e seguiu cambaleando e apoiando-se pelas paredes do corredor iluminado até sua porta umas sete ou oito portas depois da minha. Fechei a minha..
   Voltei para a cama e olhei novamente para a rua com suas luzes natalinas piscantes. O vizinho gordo e loiro era um cara legal e nem havia perguntado o seu nome. Amanha pergunto, pensei comigo mesmo. Estava bêbado como um gambá. As luzes e os carros e as pessoas continuavam piscando e queimando pela eternidade. Acendi um cigarro e tomei mais uma dose. Essa garrafa não aguenta até amanha, pensei.

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