Estava perto do fim
do ano e essa época sempre me deixava triste. Não tinha um motivo
consciente e claro, apenas me deixava triste assim que virava de
novembro para dezembro, às vezes um pouco antes, em fevereiro ou
março. A noite estava escura e nenhuma estrela pontilhava o céu de
branco, ouvia-se os metrôs e os carros passando e pessoas vivendo
suas vidas e sendo felizes com alguma fórmula mágica que não
haviam me dado acesso até agora.
Morava em uma
quitinete na zona oeste e nada de interessante acontecia por lá,
salve os tiros que davam em jogos de futebol ou quando algum imbecil
revidava um assalto e levava uma bala na cabeça de graça. Se
importam mais com o dinheiro que ganham para pagar as contas do que
com seu coração batendo. De certa forma os dois consumiam sua vida,
dinheiro e o coração batendo. Uma puta morena e bunduda saiu do meu
apartamento e bateu a porta, os porta retratos vazios balançaram e
um caiu do pequeno móvel ao lado da pequena televisão. Fui pegar
algo para beber e me dei conta de que não tinha absolutamente nada,
procurei e procurei até desistir e ir tentar escrever alguma coisa.
Nada também. Maldito fim de ano.
Algumas horas mais
tarde, lá pela madrugada, estava sentado no escuro, sem TV ligada,
sem livro para ler ou ideias para colocar no papel, estava pensando
se não seria melhor dormir e foda-se aquele dia. Não tinha sono
aquela hora e só me restava olhar as luzes dos carros e da cidade
inteira da janela de minha quitinete; aquilo era algo que se poderia
ver por dias e dias sem se sentir vazio ou enjoado. A cidade durante
a madrugada.
Então alguém bateu
na porta. Bateu novamente e pensei quem porras poderia ser numa hora
daquelas? Uma mulher nunca. Comida grátis eu duvidava muito também.
Pensei se iria abrir ou não, a pessoa bateu de novo e fui atender.
Era o vizinho do corredor:
"Oi" –
disse envergonhado
Ele era gordo e tinha
um cabelo amarelado e uma aparência miserável e cansada. Havia
visto o sujeito algumas vezes quando estava voltando de algum lugar e
nos topávamos no corredor. Ele balançava a cabeça cumprimentando e
eu simplesmente passava por ele.
"huum, Oi...o
que você quer?"
"Eu sei que você
não é muito de conversar com os outros ou chamar os amigos para
entrar e tal. E essa com certeza é uma péssima hora para..."
"Desembucha,
cara" – cortei
"Bom, a verdade
é que eu estava sozinho em casa e essa época do ano me deixa na
pior. Eu sei que você bebe umas e não dorme muito então pensei se
não queria tomar algumas doses comigo" ele levantou uma garrafa
de cachaça na altura do meu nariz
"Entra"
O vizinho entrou e
acendi a luz da sala, uma única lâmpada amarela que deixava todo o
lugar com um olhar melancólico e antigo. Me dava conforto de alguma
forma. Ele me deu a garrafa e fui pegar uns copos na cozinha. Não
tinha nada pra comer. Voltei e enchi dois copos de dose para os dois,
brindamos e viramos. Enchi outro, brindamos e viramos novamente.
Enchi e repetimos. Deitamos o copo ao lado do criado mudo e ele
estava sentado em uma poltrona que tinha ao lado da minha cama e eu
sentado na minha cama, a janela estava entre nós:
"Bela vista você
tem daqui durante a noite"
"Eu sei, talvez
o motivo pelo qual eu comprei isso aqui."
"Você comprou
esse buraco só pela vista?"
"Sim"
"Legal" –
puxou um maço de cigarros – "Você se importa que eu fume
aqui?"
"Não. Me dê um
desses"
Ele acendeu o cigarro
e me passou outro, acendi, ficamos lá sentados sem falar nada por um
tempo. As buzinas e as sirenes se misturavam com as cores vermelhas e
amarelas piscantes da cidade grande. Os enfeites de natal traziam
consigo a tristeza do fim do ano e a cada luz que apagava eu
imaginava alguém morrendo em algum lugar, nos braços da família,
da amante ou no meio da rua, atropelado por um bêbado ao volante. A
fumaça dos cigarros enchia o minúsculo apartamento-cômodo e o
vizinho gordo e miserável parecia perdido entre a visão da cidade
escura. Enchi os copos e ele deu um gole e disse:
"Achei que você
pensaria que eu era um bicha ou coisa assim por estar batendo na sua
porta a essa hora da madrugada e te chamando pra beber"
"Acho que um gay
já teria pulado em cima"
"Não sei"
e soprou fumaça pela janela.
"Mas você não
é veado, é?" perguntei só pela garantia
"Não, cara. Só
estava em casa e tinha essa garrafa e essa tristeza solitária
maldita acabando comigo. Era impossível ficar lá dentro mais um
segundo, entende?
"Na verdade não
muito"
"Sorte a sua,
cara" virou seu copo e fiz o mesmo.
Ele foi até o a
sala e apagou a lâmpada amarela, tudo estava escuro como o céu
agora. Achei que aquele gordo de cabelo amarelo fosse um estuprador
gay e estava me embebedando para acabar com o meu cu mais tarde.
Merda, pensei, no fim do ano não espero mais nada de ninguém. Ele
voltou até sua poltrona e eu estava segurando a garrafa para quebrar
em seu rosto caso tentasse alguma aproximação. Ele apenas sentou e
olhou novamente para a rua:
"É mais bonito
assim. Escuridão" disse
"Você também
não gosta dessa época?" perguntei
"Fim do ano?
Não muito. Tudo parece cinco vezes pior e você sente que a vida
inteira está passando pelos seus olhos e você é só mais um pedaço
que foi jogado pelo universo pra fazer peso no mundo. Passo o ano
inteiro sem nem ver um rosto mas é nesse último mês que sinto a
maior solidão da Terra. Só estou vivo porque bebo que nem um porco
nessa época"
"Eu sei. E o
resto do ano?"
"Também bebo"
"Eu sei"
Rimos. Foi bom dar
uma risada. Não lembrava de como era dar uma risada confinado dentro
daquela quitinete há dias. Não imaginava conversar com aquele cara
sobre isso e nem beber cachaça e fumar cigarros enquanto o fazia.
Ele era legal. Talvez devesse dar mais chances às pessoas de vez em
quando.
Um caminhão de
bombeiros passou varando todos os carros da avenida em frente ao
prédio e por algum milagre ou exímia habilidade do motorista, uma
merda homérica não aconteceu:
"Pressa. Tudo é
pressa. O fogo continuará lá queimando e destruindo e tudo é
pressa. Quando apagarem o incêndio sairão correndo atrás de outro
e depois irão atrás de outro. A vida vai queimando que nem uma vela
de sete dias e as pessoas querem competir contra ela. Querem ser mais
rápidas do que a vida e que o fogo ardente. Não entendo isso, cara.
Você entende?" virou e me encarou
"Longe disso.
Correm e depois quebram suas caras. Dizem que o ano novo trará vida
nova e chutam o mesmo cachorro velho quando chegam em casa, os filhos
repetem de ano e o cartão ultrapassa o limite e somente as roupas
brancas e amarelas são as novidades dessa vida nova. E a ressaca de
champagne barato no dia seguinte"
"Um brinde a
isso" ergueu seu copo que havia enchido novamente, brindamos e
bebemos.
Um tempo passou. Não
sei bem quanto tempo, mas a garrafa ia sendo esvaziada aos poucos e
eu estava chumbado e meu vizinho certamente estava no mesmo nível.
Os cigarros rolavam como salgadinhos e as cinzas sujavam o chão e o
criado mudo. Conversamos mais um pouco e ficamos em silêncio por um
tempo novamente. Ele sabia a hora de calar a boca, admirava essa
qualidade em uma pessoa. Sabia a hora de falar também, e falava bem,
não precisava ficar inventando assuntos, eles fluíam. Aonde estava
aquele sujeito o tempo todo? Bebemos mais umas doses e a garrafa
passava da metade quando ele se levantou completamente ébrio e
disse:
"Acho que tenho
que ir, é tarde"
"Você é quem
sabe, cara. Volta amanha pra gente beber mais"
"Amanha eu volto
nesse horário de agora e a gente termina essa garrafa. Pode ficar
com ela aí"
"E se eu beber
tudo de tarde?" perguntei
"Pode beber, eu
trago outra. Tem mais uma dessas fechada lá dentro"
"Sem problemas
então? Me deixa uns cigarros também se não for pedir muito, cara"
"OK" pegou
uns cigarros do maço e me entregou – "Quer saber, fique com o
maço todo. Agradecimento pela companhia"
Peguei o maço e me
levantei da cama. Cacete, como estava bêbado. Aquele goró tinha ido
mesmo direto pra minha cabeça e meu estômago vazio não ajudou
muito no processo.
"Puta merda, tô
muito bêbado" falou o gordo vizinho
"Eu sei, cara.
Subiu direto essa porra"
Abri a porta e
cumprimentei o cara. Agradeci o maço e a cachaça e disse para que
voltasse amanha com a outra garrafa e outro maço naquele horário
que havia batido na porta.
"Pode deixar,
bicho" disse e seguiu cambaleando e apoiando-se pelas paredes do
corredor iluminado até sua porta umas sete ou oito portas depois da
minha. Fechei a minha..
Voltei para a
cama e olhei novamente para a rua com suas luzes natalinas piscantes.
O vizinho gordo e loiro era um cara legal e nem havia perguntado o
seu nome. Amanha pergunto, pensei comigo mesmo. Estava bêbado como
um gambá. As luzes e os carros e as pessoas continuavam piscando e
queimando pela eternidade. Acendi um cigarro e tomei mais uma dose.
Essa garrafa não aguenta até amanha, pensei.
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