segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Ceia de natal para dois.



Andava de noite por uma calçada podre e cheia de lixo do centro da cidade. Estava cansado e sua aparência era triste, calças velhas e camiseta vermelha rasgada e suja como a calçada, seu tênis era de pano e já tinha lá seus anos de idade com a sola que já era apenas uma fina camada de borracha desgastada. Seu cabelo castanho balançava na brisa da noite e seus olhos fitavam o que vinha na frente, nunca olhava pra trás uma vez se quer. Em seu bolso, algumas moedas para o ônibus e um frasco com seu coração dentro. Checou o frasco, tudo em ordem. O orgão batia de vez em quando e o álcool dentro do frasco pulsava junto com a batida.

Ninguém na rua. Bom, quase ninguém salvo os viciados e os vagabundos que perambulavam sem rumo e sem vida pelas ruas molhadas e iluminadas com luzes de natal. Nem as putas estavam por perto essa noite. Famílias há muito tinham voltado para suas casas e agora comemoravam o natal juntas, comendo suas carnes brancas recheadas e com molho quente e temperado por cima. Ele estava sozinho na rua andando com algumas moedas num bolso e seu coração em outro. Passou a mão em seu peito e sentiu a costura mal feita que havia dado para estancar o sangue, os pontos ainda estavam lá, mesmo que feito nas coxas. Manchou seu dedo com sangue dos pontos e tocou-o com a língua, doce. Ao menos era doce por dentro. Sentou-se na calçada, exausto e imundo. Ficou lá por alguns instantes parado e respirando o mínimo possível para continuar vivo. Gostaria de ver neve mas é impossível nessa região do mundo. Contentou-se com o frio que fazia e com a brisa da noite que vinha em seu rosto barbado, tirou o tênis velho porque as bolhas em seus dedos estavam gigantes e doloridas demais depois de ter andado a noite inteira sem destino pelo centro da cidade. Ainda mais com o coração fora do lugar pra piorar sua condição física!

Levantou-se rapidamente e sentiu aquela tontura na cabeça que quase o fez desabar no chão de novo. O frasco! Tratou de continuar de pé e tomar cuidado com o conteúdo dentro do vidrinho. Andou e andou e a aquela altura da noite já não haviam mais ônibus ou trens para leva-lo para casa. Ficarei na rua, pensou, ótimo. Passou por um prédio e viu as pessoas comendo a ceia pela janela. Sua barriga roncou com isso e foi um ronco tão alto que até as pessoas dentro das casas ouvindo músicas natalinas devem ter ouvido seu estômago reclamando. Queria um pedaço daquele chester, sim, daquele chester e uma taça de vinho. Ou duas. Deem logo a garrafa a um homem sem coração no peito! Mas nem suas moedas davam para a mais vagabunda garrafa de vinho. E no Natal nunca encontraria uma adega aberta aquela hora. Foi andando em ritmo lento e arrastando seus pés doloridos para aliviar a dor na sua perna mais dolorida ainda.
Os fogos ainda coloriam o céu negro de minuto em minuto e a beleza era de fim de ano. Sua barriga roncava de minuto em minuto também e sua sede aumentava mais e mais. As famílias continuavam reunidas comendo por trás de suas janelas e seus sorrisos não pareciam falsos do lado da rua, pareciam apenas saciadas com algo. Algo que ele não sabia o que poderia ser de forma alguma. E era por isso que estava sozinho na rua com seu coração dentro de um frasco no seu bolso.

Uns moradores de rua dormiam perto de uma fogueira improvisada e tomou a liberdade de se aproximar dela para esquentar um pouco seu corpo todo estragado da noite. O contato de suas mãos geladas com o calor da fogueira o fez se sentir muito bem de novo e até seu estômago aliviou a barra por alguns minutos. Ficou lá chegando perto e se afastando do fogo, brincando com o único calor reconfortante que tinha em muito tempo. Abraçou seu próprio braço e sua barriga voltou a roncar agora que seu ser físico estava aquecido novamente. Não tinha o que comer e nem o que fazer pra arranjar comida com ninguém. Pegou um graveto duro no chão e pensou por alguns segundos. Tirou o frasco do bolso e seu coração pulsava lentamente, pintando o líquido em que estava conservado de rosa claro aos poucos. Um belo órgão que ele tinha em mãos e antes em peito. Destampou o frasco e enfiou a mão lá dentro pra tirar o orgão mole e pulsante. Tinha um toque interessante e sua mão pingava o álcool rosa. Espetou o coração com o graveto e jurou ter sentido uma pontada no peito. Encostou o graveto com o orgão pulsante perto da fogueira que ia perdendo as forças e torceu para assa-lo enquanto houvesse fogo. Seu peito sentiu um calor por dentro e novamente jurou sentir uma pontada e achou que os pontos haviam estourado. Estava tudo em ordem mesmo assim. Virou pra lá e pra cá e o coração ia assando lentamente naquela fogueira no meio do centro da cidade, com as famílias saciando suas vontades e sua fome e trocando presentes, com os fogos iluminando a cidade de uma forma totalmente diferente e no meio de vagabundos desmaiados aos seus pés cheios de bolhas prestes a estourar, estava lá assando seu coração no meio da imundice do centro da cidade. E era melhor do que estar em casa, com certeza. Tirou o orgão do fogo e não pensou ou cheirou ou viu a aparência do alimento antes de morde-lo. Abocanhou e sentiu seu gosto de sangue adocicado, seu estômago aos poucos foi se acalmando e saboreava cada mordida enquanto uns filetes de sangue desciam pelo seu beiço. Olhou para o frasco com álcool rosado e bebeu um gole. Nojo. Bebeu mais outro. Ainda nojo. Jogou o resto fora. Chegava um pouco depois da metade quando sentiu uma mão fraca pegando em sua canela. Pulou alguns centímetros pro lado com o susto que levou e viu a figura lamentável de um mendigo segurando na barra de sua calça implorando por um pedaço de comida. Um velho de barba e cabelo branco que agora tinha pouco mais de seis dentes na boca, apontou com o dedo para a carne que ele comia e deixou-o sem o que fazer. Deu sua última mordida na refeição e entregou o graveto com o coração espetado para o velho faminto. Nem parecia mais um coração aquela coisa. O velho olhou para ele como se estivesse sem palavras para agradecer e ele acenou para o velho. Observou quando ele abocanhou o músculo com toda a fome que tinha em seu ser e o velho disse com a boca cheia e um filete pintando o canto de sua barba branca de vermelho:
  • Feliz Natal, jovem. Deus te abençoe.
Ele acenou novamente para o velho e foi procurar algum ponto de ônibus para se deitar e esperar os ônibus voltarem a circular. Exausto. Passou o dedo novamente na costura mal feita em seu peito vazio, o dedo saiu avermelhado. Tocou-o com a língua. Ao menos era doce.

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