Andava de noite por
uma calçada podre e cheia de lixo do centro da cidade. Estava
cansado e sua aparência era triste, calças velhas e camiseta
vermelha rasgada e suja como a calçada, seu tênis era de pano e já
tinha lá seus anos de idade com a sola que já era apenas uma fina
camada de borracha desgastada. Seu cabelo castanho balançava na
brisa da noite e seus olhos fitavam o que vinha na frente, nunca
olhava pra trás uma vez se quer. Em seu bolso, algumas moedas para o
ônibus e um frasco com seu coração dentro. Checou o frasco, tudo
em ordem. O orgão batia de vez em quando e o álcool dentro do
frasco pulsava junto com a batida.
Ninguém na rua. Bom,
quase ninguém salvo os viciados e os vagabundos que perambulavam sem
rumo e sem vida pelas ruas molhadas e iluminadas com luzes de natal.
Nem as putas estavam por perto essa noite. Famílias há muito tinham
voltado para suas casas e agora comemoravam o natal juntas, comendo
suas carnes brancas recheadas e com molho quente e temperado por
cima. Ele estava sozinho na rua andando com algumas moedas num bolso
e seu coração em outro. Passou a mão em seu peito e sentiu a
costura mal feita que havia dado para estancar o sangue, os pontos
ainda estavam lá, mesmo que feito nas coxas. Manchou seu dedo com
sangue dos pontos e tocou-o com a língua, doce. Ao menos era doce
por dentro. Sentou-se na calçada, exausto e imundo. Ficou lá por
alguns instantes parado e respirando o mínimo possível para
continuar vivo. Gostaria de ver neve mas é impossível nessa região
do mundo. Contentou-se com o frio que fazia e com a brisa da noite
que vinha em seu rosto barbado, tirou o tênis velho porque as bolhas
em seus dedos estavam gigantes e doloridas demais depois de ter
andado a noite inteira sem destino pelo centro da cidade. Ainda mais
com o coração fora do lugar pra piorar sua condição física!
Levantou-se
rapidamente e sentiu aquela tontura na cabeça que quase o fez
desabar no chão de novo. O frasco! Tratou de continuar de pé e
tomar cuidado com o conteúdo dentro do vidrinho. Andou e andou e a
aquela altura da noite já não haviam mais ônibus ou trens para
leva-lo para casa. Ficarei na rua, pensou, ótimo. Passou por um
prédio e viu as pessoas comendo a ceia pela janela. Sua barriga
roncou com isso e foi um ronco tão alto que até as pessoas dentro
das casas ouvindo músicas natalinas devem ter ouvido seu estômago
reclamando. Queria um pedaço daquele chester, sim, daquele chester e
uma taça de vinho. Ou duas. Deem logo a garrafa a um homem sem
coração no peito! Mas nem suas moedas davam para a mais vagabunda
garrafa de vinho. E no Natal nunca encontraria uma adega aberta
aquela hora. Foi andando em ritmo lento e arrastando seus pés
doloridos para aliviar a dor na sua perna mais dolorida ainda.
Os fogos ainda
coloriam o céu negro de minuto em minuto e a beleza era de fim de
ano. Sua barriga roncava de minuto em minuto também e sua sede
aumentava mais e mais. As famílias continuavam reunidas comendo por
trás de suas janelas e seus sorrisos não pareciam falsos do lado da
rua, pareciam apenas saciadas com algo. Algo que ele não sabia o que
poderia ser de forma alguma. E era por isso que estava sozinho na rua
com seu coração dentro de um frasco no seu bolso.
Uns moradores de rua
dormiam perto de uma fogueira improvisada e tomou a liberdade de se
aproximar dela para esquentar um pouco seu corpo todo estragado da
noite. O contato de suas mãos geladas com o calor da fogueira o fez
se sentir muito bem de novo e até seu estômago aliviou a barra por
alguns minutos. Ficou lá chegando perto e se afastando do fogo,
brincando com o único calor reconfortante que tinha em muito tempo.
Abraçou seu próprio braço e sua barriga voltou a roncar agora que
seu ser físico estava aquecido novamente. Não tinha o que comer e
nem o que fazer pra arranjar comida com ninguém. Pegou um graveto
duro no chão e pensou por alguns segundos. Tirou o frasco do bolso e
seu coração pulsava lentamente, pintando o líquido em que estava
conservado de rosa claro aos poucos. Um belo órgão que ele tinha em
mãos e antes em peito. Destampou o frasco e enfiou a mão lá dentro
pra tirar o orgão mole e pulsante. Tinha um toque interessante e sua
mão pingava o álcool rosa. Espetou o coração com o graveto e
jurou ter sentido uma pontada no peito. Encostou o graveto com o
orgão pulsante perto da fogueira que ia perdendo as forças e torceu
para assa-lo enquanto houvesse fogo. Seu peito sentiu um calor por
dentro e novamente jurou sentir uma pontada e achou que os pontos
haviam estourado. Estava tudo em ordem mesmo assim. Virou pra lá e
pra cá e o coração ia assando lentamente naquela fogueira no meio
do centro da cidade, com as famílias saciando suas vontades e sua
fome e trocando presentes, com os fogos iluminando a cidade de uma
forma totalmente diferente e no meio de vagabundos desmaiados aos
seus pés cheios de bolhas prestes a estourar, estava lá assando seu
coração no meio da imundice do centro da cidade. E era melhor do
que estar em casa, com certeza. Tirou o orgão do fogo e não pensou
ou cheirou ou viu a aparência do alimento antes de morde-lo.
Abocanhou e sentiu seu gosto de sangue adocicado, seu estômago aos
poucos foi se acalmando e saboreava cada mordida enquanto uns filetes
de sangue desciam pelo seu beiço. Olhou para o frasco com álcool
rosado e bebeu um gole. Nojo. Bebeu mais outro. Ainda nojo. Jogou o
resto fora. Chegava um pouco depois da metade quando sentiu uma mão
fraca pegando em sua canela. Pulou alguns centímetros pro lado com o
susto que levou e viu a figura lamentável de um mendigo segurando na
barra de sua calça implorando por um pedaço de comida. Um velho de
barba e cabelo branco que agora tinha pouco mais de seis dentes na
boca, apontou com o dedo para a carne que ele comia e deixou-o sem o
que fazer. Deu sua última mordida na refeição e entregou o graveto
com o coração espetado para o velho faminto. Nem parecia mais um
coração aquela coisa. O velho olhou para ele como se estivesse sem
palavras para agradecer e ele acenou para o velho. Observou quando
ele abocanhou o músculo com toda a fome que tinha em seu ser e o
velho disse com a boca cheia e um filete pintando o canto de sua
barba branca de vermelho:
- Feliz Natal, jovem. Deus te abençoe.
Ele acenou novamente
para o velho e foi procurar algum ponto de ônibus para se deitar e
esperar os ônibus voltarem a circular. Exausto. Passou o dedo
novamente na costura mal feita em seu peito vazio, o dedo saiu
avermelhado. Tocou-o com a língua. Ao menos era doce.
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