Eric andava pelas
ruas escuras de cabeça baixa, havia acordado mal e não queria muita
conversa com os outros. Queria era ficar sozinho, longe de todos e
talvez encher a cara ou algo do tipo. Seguia a rua reta em direção
ao bar que sabia que estaria vazio naquela noite de quinta, então lá
permaneceria esplendoroso em sua solidão de quinta à noite.
De longe viu um
movimento no bar e estranhou estar com tanta gente numa noite
daquelas. Esperava dois ou três vagabundos já bêbados ou alguns
velhos jogando truco. Xingou pelo canto de sua boca e deu uma
cusparada verde no chão, "Porra de gripe", pensou e
continuou até o bar quando se surpreendeu vendo que não eram
vagabundos ou velhos na jogatina mas seus amigos de sempre, que
costumava sair por aí. Mas o que estariam fazendo lá naquela noite?
"Ahhh aniversário da Cassia", não se lembrava do
aniversário e agora teria que fingir que estava bem e sorrir o resto
da noite para todas aquelas pessoas, não queria aquilo, não essa
noite. Mas assim era a vida.
Se aproximou e
todos o cumprimentaram com entusiasmo:
"E ae, e ae...."
passava apertando mãos e beijando rostos "Parabéns, amore mio.
Muita paz na sua vida e beijocas aqui e acolá" disse e riu para
a amiga aniversariante, que o abraçou com força e agradeceu.
Passaram-se uma ou
duas horas e ele estava lá fingindo pra todos que estava bem e
virando mais e mais álcool guela abaixo. Tudo parecia mais aceitável
naquele momento, enquanto houvesse algo para faze-lo esquecer,
aguentaria mais uma noite naquele mundo. Grazi estava lá e era
sempre difícil para ele quando ela estava por perto. Sentia um
aperto e um vazio que o pressionavam até os olhos quererem sair das
órbitas, mas bebia e aguentava na sua, rindo e fazendo suas piadas e
tentando fingir que estava tudo numa boa. Ele era o melhor nisso. A
garota tinha olhos claros e cabelos castanho escuro, não dava a
mínima pro cara e talvez todos soubessem que ele tinha essa coisa
por ela, até ela, mas não dava a mínima e ele simplesmente deixa o
mundo continuar rodando ou perde a cabeça junto com tantos outros.
Algumas rodadas se
passam e Cassia, já chumbada, vem até Eric e fala:
"Antes de você
chegar a gente viu um cara igualzinho a você, mas ele estava com uma
mulher bonita e eu falei 'ahh então não pode ser ele se está
acompanhado de uma mulher' hahaha" e Eric se sentiu meio
constrangido de alguma forma mas riu da amiga bêbada
"É a vida,
amore..." respondeu com o copo na boca e sorrindo amarelo
"Tem que falar na
cara, né? Não fico fazendo piada pelas costas"
"É, tá certa,
hahaha" e virou-se para conversar com o resto do pessoal. "Deus"
– pensou Eric – "arranje alguma coisa forte pra apagar tudo
isso, por favor"
Estava se sentindo
pior do que antes e a única coisa que o segurava era o álcool.
Despediu-se dos amigos e da aniversariante, evitou falar com Grazi e
achou que foi a melhor coisa que fez, bebeu mais um ou dois copos de
cerveja e se mandou de lá o mais rápido o possível. Tudo ia de mal
a pior, sem dinheiro, sem mulher, sem vontade de conversar ou de
fazer mais nada. Será que as coisas deviam ser tão insignificantes
assim? Uma vida realmente poderia ser enfiada no cu dessa forma? Não
sabia responder, mas sabia que era o que acontecia com ele. Entrou
numa espécie de limbo inconsciente em que tudo é uma merda e ele é
o Imperador de todo aquele bolo fecal monumental que era sua
existência. "Um disperdício", dizia para si mesmo, "Um
disperdício de matéria cósmica". Ninguém evoluía, ele não
evoluía, os poucos que evoluíam se mandavam para longe dos outros e o
país continuava o mesmo lixo não importava quem o governasse.
Andou e andou e não
quis pegar o ônibus para casa, preferiu continuar a pé para que seu
corpo sentisse algo diferente do que ócio e toxinas que empurrava
pra dentro dele. Queria se cansar, suar, sentir um pouco aquilo que
tentavam chamar de vida. Queria uma loira com ele naquele exato
momento. Mas isso não seria possível, como lembrou-lhe sua amiga
Cássia. Por isso continuou andando e a noite estava escura e
magnificamente bela, aquela escuridão era igual a todas as outras
mas hoje ela estava melhor do que das outras vezes, silenciosa e
mortal. Nem os criminosos queriam fazer seus crimes por aí ou os
policiais encherem o saco dos vagabundos nas praças ou os vândalos
de final de semana saírem quebrando bancos e latas de lixo.
Uma luz no final de
uma rua vazia quebrava a calmaria noturna e conforme foi se
aproximando, Eric viu que aquilo parecia fogo. Um carro pegando fogo,
sim. Saiu correndo imaginando que o acidente havia acabado de
acontecer, já que não conseguiu enxergar absolutamente ninguém por
perto procurando por ajuda ou gritando. Apenas o fogo laranja e
vermelho, desenhando sombras medonhas nas paredes das casas,
consumindo todo o carro e começando a esquentar o rosto de Eric
conforme ele ia se aproximando do acidente.
"Caramba!"
exclamou quando viu que o carro na verdade era uma kombi verde escura
e parecia ter mais gente atrás.
Se desesperou com o
fato de ninguém estar gritando e achou que estavam todos mortos lá
dentro, carbonizados sozinhos e agonizantes sem ninguém para
ajuda-los a sair de lá. Saiu correndo gritando para alguém ir
resgata-los, não seria possível fazer aquilo sozinho, como ia
apagar o fogo para socorrer aquelas pessoas? Mas nessas horas o
cérebro parece trabalhar por trás da nossa capacidade de percepção
e Eric tirou a camiseta e enrolou na mão quando estava para chegar
perto da Kombi. Sabia o que fazer, mas não como, estava fazendo tudo
por instinto, se perdesse um olho ou um braço fazendo aquilo,
paciência. O fogo era maior do que pensava e sentia fios do seu
cabelo queimando e seu rosto foi atingido por uma lufada de ar quente
quando quebrou o vidro da kombi verde escura e enfiou a mão lá
dentro, sem saber o que ia encontrar, podia não ter ninguém lá
dentro, podia tirar um defunto torrado de lá, mas uma mão forte o
agarrou com firmeza do outro lado do vidro e ele puxou com toda a
força que tinha aquele corpo que na hora parecia não pesar nada. A
pessoa caiu no chão e ele não pensou em ver se estava bem ou quem
era, destrancou a porta e tentou ver alguma coisa dentro daquele
fumacê todo. Enfiou o braço aonde fica o banco do passageiro e
sentiu mais um sentado lá, parecia estar desacordado, puxou mas o
cinto o prendia,"porra", pensou e conseguiu desprender o
cinto de uma forma tão rápida que nunca entenderia como seu cérebro
raciocinou aquilo numa situação daquelas de forma tão
extraordinariamente veloz. Puxou aquele outro desconhecido e se virou
para os dois caídos no chão e perguntou, sem enxergar nada pela
fumaça e os olhos lacrimejando:
"Tem mais alguém
lá dentro?" gritou
"Minha neta,
pelo amor de..." e Eric pulou pra dentro da kombi pela procura
da garota antes que o velho terminasse o que ia falar.
Olhou na parte de
trás da Kombi e chamou pela menina que nem sabia o nome para tentar
pega-la pelo banco do motorista, ela não respondia e Eric imaginou
se não estava desacordada com toda aquela fumaça. Cacete, e o calor
dentro daquela kombi! Pulou pro outro lado e lá tinha mais fumaça
ainda, estava cinza escura, foi tateando as paredes escaldantes da
kombi e batendo os pés pelo chão para sentir a garota. Encontrou-a
no fundo da kombi e colocou a neta do motorista no seu ombro,
cobrindo a boca e o nariz com sua camiseta antes que desmaiasse com
toda aquela fumaça também. Jogou a menina do outro lado e sentiu
seu corpo batendo contra o câmbio da kombi, "Salvei sua vida
pelo menos", disse em voz alta caso ela reclamasse de uma
vértebra quebrada mais tarde. Passou a perna pelo banco do
passageiro e aquele calor era insuportável demais, não aguentaria
mais um minuto lá se não tivesse se jogado com a garota no chão
gelado daquela rua deserta:
"Meu Deus!
Katleen, minha querida!" choraram os avós de felicidade, a
menina estava acordando e parecia estar bem.
Olharam para a kombi
verde escuro pegando fogo e Eric sentiu pena daquela peça clássica
sendo levada embora por chamas laranjas e vermelhas naquela noite
calma. Era um belo espetáculo mesmo assim.
"Obrigado,
senhor. Obrigado" os velhos tentaram agradecer mas ainda
pareciam em choque e Eric não queria incomoda-los naquele momento
perguntando o que havia acontecido.
Ligaram para os
bombeiros e Eric não quis espera-los e ter que responder pergunta
alguma, ainda tinha um longo caminho até sua casa e estava meio de
saco cheio daquele dia. Despediu-se dos velhotes e da criança e viu
se não estavam machucados, eles agradeceram novamente por terem sido
salvos e o rapaz sorriu envergonhado.
A noite continuava
calma e morta e Eric riu da situação na qual havia se metido,
pensou que se não estivesse por lá aquelas três pessoas teriam
morrido e que ele também podia ter morrido se não fosse por alguma
sorte súbita que o atingiu naquele exato momento. Olhou para trás e
a fumaça e o clarão formado pelo fogo ainda estavam por lá,
sujando aquele padrão sombrio da noite calma, o calor já estava
distante e sentia o frio noturno novamente. Havia estrelas no céu,
há muito tempo que não davam as caras, pensou. Enfiou as mãos no
bolso e vestiu sua camiseta que cheirava a fumaça e chamas. Nessa
calmaria mortal ele seguiu até sua casa, meio bêbado e meio
iluminado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário