segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A delicada situação de Eric diante da Kombi verde escuro


   Eric andava pelas ruas escuras de cabeça baixa, havia acordado mal e não queria muita conversa com os outros. Queria era ficar sozinho, longe de todos e talvez encher a cara ou algo do tipo. Seguia a rua reta em direção ao bar que sabia que estaria vazio naquela noite de quinta, então lá permaneceria esplendoroso em sua solidão de quinta à noite.
   De longe viu um movimento no bar e estranhou estar com tanta gente numa noite daquelas. Esperava dois ou três vagabundos já bêbados ou alguns velhos jogando truco. Xingou pelo canto de sua boca e deu uma cusparada verde no chão, "Porra de gripe", pensou e continuou até o bar quando se surpreendeu vendo que não eram vagabundos ou velhos na jogatina mas seus amigos de sempre, que costumava sair por aí. Mas o que estariam fazendo lá naquela noite? "Ahhh aniversário da Cassia", não se lembrava do aniversário e agora teria que fingir que estava bem e sorrir o resto da noite para todas aquelas pessoas, não queria aquilo, não essa noite. Mas assim era a vida.
   Se aproximou e todos o cumprimentaram com entusiasmo:
"E ae, e ae...." passava apertando mãos e beijando rostos "Parabéns, amore mio. Muita paz na sua vida e beijocas aqui e acolá" disse e riu para a amiga aniversariante, que o abraçou com força e agradeceu.
Passaram-se uma ou duas horas e ele estava lá fingindo pra todos que estava bem e virando mais e mais álcool guela abaixo. Tudo parecia mais aceitável naquele momento, enquanto houvesse algo para faze-lo esquecer, aguentaria mais uma noite naquele mundo. Grazi estava lá e era sempre difícil para ele quando ela estava por perto. Sentia um aperto e um vazio que o pressionavam até os olhos quererem sair das órbitas, mas bebia e aguentava na sua, rindo e fazendo suas piadas e tentando fingir que estava tudo numa boa. Ele era o melhor nisso. A garota tinha olhos claros e cabelos castanho escuro, não dava a mínima pro cara e talvez todos soubessem que ele tinha essa coisa por ela, até ela, mas não dava a mínima e ele simplesmente deixa o mundo continuar rodando ou perde a cabeça junto com tantos outros.
Algumas rodadas se passam e Cassia, já chumbada, vem até Eric e fala:
"Antes de você chegar a gente viu um cara igualzinho a você, mas ele estava com uma mulher bonita e eu falei 'ahh então não pode ser ele se está acompanhado de uma mulher' hahaha" e Eric se sentiu meio constrangido de alguma forma mas riu da amiga bêbada
"É a vida, amore..." respondeu com o copo na boca e sorrindo amarelo
"Tem que falar na cara, né? Não fico fazendo piada pelas costas"
"É, tá certa, hahaha" e virou-se para conversar com o resto do pessoal. "Deus" – pensou Eric – "arranje alguma coisa forte pra apagar tudo isso, por favor"
   Estava se sentindo pior do que antes e a única coisa que o segurava era o álcool. Despediu-se dos amigos e da aniversariante, evitou falar com Grazi e achou que foi a melhor coisa que fez, bebeu mais um ou dois copos de cerveja e se mandou de lá o mais rápido o possível. Tudo ia de mal a pior, sem dinheiro, sem mulher, sem vontade de conversar ou de fazer mais nada. Será que as coisas deviam ser tão insignificantes assim? Uma vida realmente poderia ser enfiada no cu dessa forma? Não sabia responder, mas sabia que era o que acontecia com ele. Entrou numa espécie de limbo inconsciente em que tudo é uma merda e ele é o Imperador de todo aquele bolo fecal monumental que era sua existência. "Um disperdício", dizia para si mesmo, "Um disperdício de matéria cósmica". Ninguém evoluía, ele não evoluía, os poucos que evoluíam se mandavam para longe dos outros e o país continuava o mesmo lixo não importava quem o governasse.
Andou e andou e não quis pegar o ônibus para casa, preferiu continuar a pé para que seu corpo sentisse algo diferente do que ócio e toxinas que empurrava pra dentro dele. Queria se cansar, suar, sentir um pouco aquilo que tentavam chamar de vida. Queria uma loira com ele naquele exato momento. Mas isso não seria possível, como lembrou-lhe sua amiga Cássia. Por isso continuou andando e a noite estava escura e magnificamente bela, aquela escuridão era igual a todas as outras mas hoje ela estava melhor do que das outras vezes, silenciosa e mortal. Nem os criminosos queriam fazer seus crimes por aí ou os policiais encherem o saco dos vagabundos nas praças ou os vândalos de final de semana saírem quebrando bancos e latas de lixo.
   Uma luz no final de uma rua vazia quebrava a calmaria noturna e conforme foi se aproximando, Eric viu que aquilo parecia fogo. Um carro pegando fogo, sim. Saiu correndo imaginando que o acidente havia acabado de acontecer, já que não conseguiu enxergar absolutamente ninguém por perto procurando por ajuda ou gritando. Apenas o fogo laranja e vermelho, desenhando sombras medonhas nas paredes das casas, consumindo todo o carro e começando a esquentar o rosto de Eric conforme ele ia se aproximando do acidente.
"Caramba!" exclamou quando viu que o carro na verdade era uma kombi verde escura e parecia ter mais gente atrás.
   Se desesperou com o fato de ninguém estar gritando e achou que estavam todos mortos lá dentro, carbonizados sozinhos e agonizantes sem ninguém para ajuda-los a sair de lá. Saiu correndo gritando para alguém ir resgata-los, não seria possível fazer aquilo sozinho, como ia apagar o fogo para socorrer aquelas pessoas? Mas nessas horas o cérebro parece trabalhar por trás da nossa capacidade de percepção e Eric tirou a camiseta e enrolou na mão quando estava para chegar perto da Kombi. Sabia o que fazer, mas não como, estava fazendo tudo por instinto, se perdesse um olho ou um braço fazendo aquilo, paciência. O fogo era maior do que pensava e sentia fios do seu cabelo queimando e seu rosto foi atingido por uma lufada de ar quente quando quebrou o vidro da kombi verde escura e enfiou a mão lá dentro, sem saber o que ia encontrar, podia não ter ninguém lá dentro, podia tirar um defunto torrado de lá, mas uma mão forte o agarrou com firmeza do outro lado do vidro e ele puxou com toda a força que tinha aquele corpo que na hora parecia não pesar nada. A pessoa caiu no chão e ele não pensou em ver se estava bem ou quem era, destrancou a porta e tentou ver alguma coisa dentro daquele fumacê todo. Enfiou o braço aonde fica o banco do passageiro e sentiu mais um sentado lá, parecia estar desacordado, puxou mas o cinto o prendia,"porra", pensou e conseguiu desprender o cinto de uma forma tão rápida que nunca entenderia como seu cérebro raciocinou aquilo numa situação daquelas de forma tão extraordinariamente veloz. Puxou aquele outro desconhecido e se virou para os dois caídos no chão e perguntou, sem enxergar nada pela fumaça e os olhos lacrimejando:
"Tem mais alguém lá dentro?" gritou
"Minha neta, pelo amor de..." e Eric pulou pra dentro da kombi pela procura da garota antes que o velho terminasse o que ia falar.
   Olhou na parte de trás da Kombi e chamou pela menina que nem sabia o nome para tentar pega-la pelo banco do motorista, ela não respondia e Eric imaginou se não estava desacordada com toda aquela fumaça.      Cacete, e o calor dentro daquela kombi! Pulou pro outro lado e lá tinha mais fumaça ainda, estava cinza escura, foi tateando as paredes escaldantes da kombi e batendo os pés pelo chão para sentir a garota. Encontrou-a no fundo da kombi e colocou a neta do motorista no seu ombro, cobrindo a boca e o nariz com sua camiseta antes que desmaiasse com toda aquela fumaça também. Jogou a menina do outro lado e sentiu seu corpo batendo contra o câmbio da kombi, "Salvei sua vida pelo menos", disse em voz alta caso ela reclamasse de uma vértebra quebrada mais tarde. Passou a perna pelo banco do passageiro e aquele calor era insuportável demais, não aguentaria mais um minuto lá se não tivesse se jogado com a garota no chão gelado daquela rua deserta:
"Meu Deus! Katleen, minha querida!" choraram os avós de felicidade, a menina estava acordando e parecia estar bem.
   Olharam para a kombi verde escuro pegando fogo e Eric sentiu pena daquela peça clássica sendo levada embora por chamas laranjas e vermelhas naquela noite calma. Era um belo espetáculo mesmo assim.
"Obrigado, senhor. Obrigado" os velhos tentaram agradecer mas ainda pareciam em choque e Eric não queria incomoda-los naquele momento perguntando o que havia acontecido.
Ligaram para os bombeiros e Eric não quis espera-los e ter que responder pergunta alguma, ainda tinha um longo caminho até sua casa e estava meio de saco cheio daquele dia. Despediu-se dos velhotes e da criança e viu se não estavam machucados, eles agradeceram novamente por terem sido salvos e o rapaz sorriu envergonhado.
  A noite continuava calma e morta e Eric riu da situação na qual havia se metido, pensou que se não estivesse por lá aquelas três pessoas teriam morrido e que ele também podia ter morrido se não fosse por alguma sorte súbita que o atingiu naquele exato momento. Olhou para trás e a fumaça e o clarão formado pelo fogo ainda estavam por lá, sujando aquele padrão sombrio da noite calma, o calor já estava distante e sentia o frio noturno novamente. Havia estrelas no céu, há muito tempo que não davam as caras, pensou. Enfiou as mãos no bolso e vestiu sua camiseta que cheirava a fumaça e chamas. Nessa calmaria mortal ele seguiu até sua casa, meio bêbado e meio iluminado.

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