terça-feira, 13 de novembro de 2012

O problema que tiveram com cães e gatos numa vila no Belém.


  Numa vila no Belém, dona Constanza vivia sozinha em sua casa. Bem, não exatamente sozinha. Constanza vivia com seus quatro cães, dois vira latas, um bulldog e um pastor alemão, todos escuros como a noite, noite que será aliada deles na história. Dona Constanza e seus quatro cães pretos também desfrutavam da companhia de Bia, uma gata de rua que a velha senhora acolhera muitos anos antes, também escura como a noite eterna. Os seis viviam juntos na vila há anos, os cães se davam bem entre si e se davam bem com a gata também, nas noites frias até se aconchegavam juntos no quarta da velha senhora para lhe fazer companhia. Além disso, os cães de dona Constanza não tinham problemas com os outros moradores da vila, eram dóceis com os conhecidos e brincavam com as crianças da vila nas tardes de verão.
   A história começa quando o segundo roubo termina de acontecer na vila. A segunda vez em que alguém conseguiu misteriosamente invadir a vila na madrugada e levar as jóias e outros pertences sem acordar os outros moradores. Então todos eles se reuniram naquela madrugada e pensaram em uma solução que lhes trouxesse segurança e paz nas noites que viriam. Alguns propuseram segurança, outros câmeras, alarmes, alguns queriam se armar e esperar para que o invasor entrasse e tivesse seus miolos espalhados na parede. Mas tudo isso custava dinheiro e dinheiro não é um luxo para todos, precisavam de uma decisão que não custasse muito e desse proteção imediata para todos. Foi assim que chegaram à decisão unânime de deixar os cães de dona Constanza soltos pela vila durante a noite, ninguém seria louco de pular um muro ou um portão com quatro cães daquele porte de tocaia do outro lado e, se pulassem e não vissem os cães, eles certamente estariam escondidos em algum canto, camuflados pela sua cor natural que era a melhor amiga deles junto com a noite cálida. Dona Constanza também concordou com a ideia, contanto que não tivesse que limpar toda a sujeira dos cães pretos quando acordasse de manha.
   Esses foram os fatos que levaram a essa história, mas esse conto não roda entre ladrões de casas de idosas, jóias de família ou vileiros. Ela fala sobre esses cães e o que eles faziam durante essas noites em que ficaram fora, porque não eram todas. Sobre como uma espécie ajuda a uma outra em detrimento da própria, sobre animais como todos nós, que se revelam na noite, quando as sombras não julgam ou enganam os olhos, são apenas o que se vê, acredite ou não.

* * *
   Às 23h00, em dias variados, dona Constanza se preparava para dormir e se despedia de seus cães e de sua gata, Bia. Deixava uma fresta da janela aberta para quando Bia voltasse de seu passeio e deixava comida e água para seus cachorros na porta de casa, depois abria o portão da frente e deixava os seus cães pretos lá para que garantissem a segurança de todos. E eles faziam isso. Faziam isso bem, quando ouviam algo suspeito acordavam ao mesmo tempo e iam com sua curiosidade e instinto vasculhar. Latiam para estranhos na rua que não fossem com a cara(esse era o único revés) e para outros animais que passassem pelo portão da frente. Todos lá, o pastor alemão, o bulldog e os dois vira latas, escuros como o limiar da madrugada, soldados que guardavam aquela vila.
   Mas um trabalho desses pode tornar-se maçante, ficar preto a noite inteira atrás de um grande portão que te mostra como a realidade e o Universo são maiores do que se vê pode ser cansativo e frustrante às vezes. E os caninos ficam sedentos quando a Lua se revela branca e perfeita no céu, sua natureza os chama para a noite, para a caça. Foi nessa situação, nessa sede que eles sentiam, que descobriram a melhor válvula de escape que podiam descobrir naquela vila.
   Bia, a gata preta que saia para dar seus passeios durante a noite, como todo bom gato, tinha seus métodos para pular aquele portão, e isso não vem ao caso também, mas Bia saia por algumas horas e sempre voltava suja ou cercada de gatos lutando por sua atenção. E era isso o que interessava aos cães pretos que ficavam de guarda, mas apenas latiam e rosnavam para os gatos, que faziam seus sons felinos e ameaçavam os cães com suas garras afiadas. Não podiam fazer mais nada, apenas sonhar em atacar aqueles gatos e destroça-los na calçada enquanto latiam até alguém da vila espantar os bichanos, furioso por ter sido acordado por latidos e batidas no portão. Bia olhava para aquela situação e ficava curiosa, imaginava o que seria dos gatos pretendentes se uma noite um dos cães saísse e fosse para cima deles. Ou se um deles entrasse na vila e topasse com os quatro camuflados nas árvores e em outras sombras noturnas.
   Então um dia, enquanto ela e seus amigos caninos descansavam sob o Sol após o almoço, avisou-os para ficassem escondidos no meio dos carros ou das árvores quando a noite caísse, para que ficassem lá em completo silêncio esperando por sua volta, que lhes traria um presente que adorariam. Ficaram curiosos e perguntaram o que era, mas Bia não respondeu, apenas se alongou e foi deitar em alguma sombra fresca.
   Na noite seguinte, quando Bia viu que dona Constanza ia deixar os cachorros de guarda, lembrou-os para que ficassem escondidos em algum lugar no mesmo horário que ela costumava voltar e eles disseram que estariam esperando. Bia pulou aqui e ali e saiu pelos vãos do portão, como de costume. Os guardas negros da vila fizeram sua ronda, comeram e dormiram um pouco, o mesmo que faziam nas outras noites, só que empolgados com o que Bia os traria quando voltasse para a vila. Quando já estavam quase pegando no sono novamente, escondidos cada um em um canto, qualquer lugar escuro que escondesse aquela massa escura, sentiram a presença de Bia se aproximando da vila, abriram os olhos e ficaram alertas para a chegada da gata com o presente prometido. Da vista do portão enxergaram a gata preta aparecer como uma atriz no começo de uma cena no teatro, andava com classe e calma, sua cauda balançando pela noite como um periscópio no meio do Pacífico e seus olhos brilhando como a Lua cheia. Ela veio e os cães procuraram pelo presente em suas garras ou na boca de Bia, não viram nada, acharam que ela estava de brincadeira ou que havia esquecido, mas perceberam que estavam sendo precipitados quando um gato malhado veio atrás de Bia, miando alto e grave para chamar a atenção da fêmea. Os cães olharam um para o outro, cada um em seu canto, e suas línguas ansiosas saltaram da boca molhando o chão com saliva quente. Continuaram assistindo à atuação da amiga felina como uma verdadeira peça. Bia ia parando e chamando o gato até perto dela, quando se aproximava ela andava mais uns passos e lá ia o gato malhado atrás dela, miando e ansiando pela parceira. Bia chegou ao portão da vila e o gato já estava chegando perto novamente quando ela fez uma de suas mágicas e foi parar em cima do muro que separava a vila do mundo. Os quatro cães já se preparavam para o ataque mútuo e o chão estava bem molhado com saliva, viram quando o gato subiu atrás da gata e aquele seria o último pulo de sua vida felina. A gata pulou dentro da vila e foi até uma árvore com bastante sombra e percebeu os cães vigiando cada lufada de ar que o gato dava antes de pular. E pulou. Uma vez lá dentro, os cães esperaram ele se afastar do portão para que não pudesse fugir da morte. Ele andou sorrateiro procurando pela gata. Andou sorrateiro. Latidos altos e quatro cães pretos e enormes dispararam em direção ao gato malhado, que teve tempo apenas de olhar para onde não estava vindo nenhum cão, entre a vida e a morte havia apenas um portão alto, apenas um pulo e ele escapava. Mas os cães foram mais rápidos e crués e Bia assistiu a tudo como um cientista assiste a um coelho sendo aberto ao meio como cobaia para um cosmético. Bia ficou satisfeita com os resultados, havia agradado seus amigos caninos mais uma vez.
   Essa história se repetiu mais algumas vezes durante as próximas semanas. Bia trazendo um ou até mais gatos para que aqueles quatro cães os matassem no meio da madrugada, enquanto assistia a tudo em silêncio e dava-se um banho antes de dormir até a próxima manha. Depois de um tempo, os moradores daquela vila se cansaram de ter que acordar de manha e dar de cara com um gato morto para limparem e deixaram de lado aquela história de soltar os cães de dona Constanza na vila para protege-los. Quando tivessem dinheiro comprariam câmeras ou algo do tipo, por enquanto deixariam de lado a segurança de suas casas para que mais gatos não fossem estraçalhados em suas portas no Belém.

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