Numa vila no Belém,
dona Constanza vivia sozinha em sua casa. Bem, não exatamente
sozinha. Constanza vivia com seus quatro cães, dois vira latas, um
bulldog e um pastor alemão, todos escuros como a noite, noite que
será aliada deles na história. Dona Constanza e seus quatro cães
pretos também desfrutavam da companhia de Bia, uma gata de rua que a
velha senhora acolhera muitos anos antes, também escura como a noite
eterna. Os seis viviam juntos na vila há anos, os cães se davam bem
entre si e se davam bem com a gata também, nas noites frias até se
aconchegavam juntos no quarta da velha senhora para lhe fazer
companhia. Além disso, os cães de dona Constanza não tinham
problemas com os outros moradores da vila, eram dóceis com os
conhecidos e brincavam com as crianças da vila nas tardes de verão.
A história começa
quando o segundo roubo termina de acontecer na vila. A segunda vez em
que alguém conseguiu misteriosamente invadir a vila na madrugada e
levar as jóias e outros pertences sem acordar os outros moradores.
Então todos eles se reuniram naquela madrugada e pensaram em uma
solução que lhes trouxesse segurança e paz nas noites que viriam.
Alguns propuseram segurança, outros câmeras, alarmes, alguns
queriam se armar e esperar para que o invasor entrasse e tivesse seus
miolos espalhados na parede. Mas tudo isso custava dinheiro e
dinheiro não é um luxo para todos, precisavam de uma decisão que
não custasse muito e desse proteção imediata para todos. Foi assim
que chegaram à decisão unânime de deixar os cães de dona
Constanza soltos pela vila durante a noite, ninguém seria louco de
pular um muro ou um portão com quatro cães daquele porte de tocaia
do outro lado e, se pulassem e não vissem os cães, eles certamente
estariam escondidos em algum canto, camuflados pela sua cor natural
que era a melhor amiga deles junto com a noite cálida. Dona
Constanza também concordou com a ideia, contanto que não tivesse
que limpar toda a sujeira dos cães pretos quando acordasse de manha.
Esses foram os fatos
que levaram a essa história, mas esse conto não roda entre ladrões
de casas de idosas, jóias de família ou vileiros. Ela fala sobre
esses cães e o que eles faziam durante essas noites em que ficaram
fora, porque não eram todas. Sobre como uma espécie ajuda a uma
outra em detrimento da própria, sobre animais como todos nós, que
se revelam na noite, quando as sombras não julgam ou enganam os
olhos, são apenas o que se vê, acredite ou não.
* *
*
Às 23h00, em dias
variados, dona Constanza se preparava para dormir e se despedia de
seus cães e de sua gata, Bia. Deixava uma fresta da janela aberta
para quando Bia voltasse de seu passeio e deixava comida e água para
seus cachorros na porta de casa, depois abria o portão da frente e
deixava os seus cães pretos lá para que garantissem a segurança de
todos. E eles faziam isso. Faziam isso bem, quando ouviam algo
suspeito acordavam ao mesmo tempo e iam com sua curiosidade e
instinto vasculhar. Latiam para estranhos na rua que não fossem com
a cara(esse era o único revés) e para outros animais que passassem
pelo portão da frente. Todos lá, o pastor alemão, o bulldog e os
dois vira latas, escuros como o limiar da madrugada, soldados que
guardavam aquela vila.
Mas um trabalho
desses pode tornar-se maçante, ficar preto a noite inteira atrás de
um grande portão que te mostra como a realidade e o Universo são
maiores do que se vê pode ser cansativo e frustrante às vezes. E os
caninos ficam sedentos quando a Lua se revela branca e perfeita no
céu, sua natureza os chama para a noite, para a caça. Foi nessa
situação, nessa sede que eles sentiam, que descobriram a melhor
válvula de escape que podiam descobrir naquela vila.
Bia, a gata preta
que saia para dar seus passeios durante a noite, como todo bom gato,
tinha seus métodos para pular aquele portão, e isso não vem ao
caso também, mas Bia saia por algumas horas e sempre voltava suja ou
cercada de gatos lutando por sua atenção. E era isso o que
interessava aos cães pretos que ficavam de guarda, mas apenas latiam
e rosnavam para os gatos, que faziam seus sons felinos e ameaçavam
os cães com suas garras afiadas. Não podiam fazer mais nada, apenas
sonhar em atacar aqueles gatos e destroça-los na calçada enquanto
latiam até alguém da vila espantar os bichanos, furioso por ter sido
acordado por latidos e batidas no portão. Bia olhava para aquela
situação e ficava curiosa, imaginava o que seria dos gatos
pretendentes se uma noite um dos cães saísse e fosse para cima
deles. Ou se um deles entrasse na vila e topasse com os quatro
camuflados nas árvores e em outras sombras noturnas.
Então um dia,
enquanto ela e seus amigos caninos descansavam sob o Sol após o
almoço, avisou-os para ficassem escondidos no meio dos carros ou das
árvores quando a noite caísse, para que ficassem lá em completo
silêncio esperando por sua volta, que lhes traria um presente que
adorariam. Ficaram curiosos e perguntaram o que era, mas Bia não
respondeu, apenas se alongou e foi deitar em alguma sombra fresca.
Na noite seguinte,
quando Bia viu que dona Constanza ia deixar os cachorros de guarda,
lembrou-os para que ficassem escondidos em algum lugar no mesmo
horário que ela costumava voltar e eles disseram que estariam
esperando. Bia pulou aqui e ali e saiu pelos vãos do portão, como
de costume. Os guardas negros da vila fizeram sua ronda, comeram e
dormiram um pouco, o mesmo que faziam nas outras noites, só que
empolgados com o que Bia os traria quando voltasse para a vila.
Quando já estavam quase pegando no sono novamente, escondidos cada
um em um canto, qualquer lugar escuro que escondesse aquela massa
escura, sentiram a presença de Bia se aproximando da vila, abriram
os olhos e ficaram alertas para a chegada da gata com o presente
prometido. Da vista do portão enxergaram a gata preta aparecer como
uma atriz no começo de uma cena no teatro, andava com classe e
calma, sua cauda balançando pela noite como um periscópio no meio
do Pacífico e seus olhos brilhando como a Lua cheia. Ela veio e os
cães procuraram pelo presente em suas garras ou na boca de Bia, não
viram nada, acharam que ela estava de brincadeira ou que havia
esquecido, mas perceberam que estavam sendo precipitados quando um
gato malhado veio atrás de Bia, miando alto e grave para chamar a
atenção da fêmea. Os cães olharam um para o outro, cada um em seu
canto, e suas línguas ansiosas saltaram da boca molhando o chão com
saliva quente. Continuaram assistindo à atuação da amiga felina
como uma verdadeira peça. Bia ia parando e chamando o gato até
perto dela, quando se aproximava ela andava mais uns passos e lá ia
o gato malhado atrás dela, miando e ansiando pela parceira. Bia
chegou ao portão da vila e o gato já estava chegando perto
novamente quando ela fez uma de suas mágicas e foi parar em cima do
muro que separava a vila do mundo. Os quatro cães já se preparavam
para o ataque mútuo e o chão estava bem molhado com saliva, viram
quando o gato subiu atrás da gata e aquele seria o último pulo de
sua vida felina. A gata pulou dentro da vila e foi até uma árvore
com bastante sombra e percebeu os cães vigiando cada lufada de ar
que o gato dava antes de pular. E pulou. Uma vez lá dentro, os cães
esperaram ele se afastar do portão para que não pudesse fugir da
morte. Ele andou sorrateiro procurando pela gata. Andou sorrateiro.
Latidos altos e quatro cães pretos e enormes dispararam em direção
ao gato malhado, que teve tempo apenas de olhar para onde não estava
vindo nenhum cão, entre a vida e a morte havia apenas um portão
alto, apenas um pulo e ele escapava. Mas os cães foram mais rápidos
e crués e Bia assistiu a tudo como um cientista assiste a um coelho
sendo aberto ao meio como cobaia para um cosmético. Bia ficou
satisfeita com os resultados, havia agradado seus amigos caninos mais
uma vez.
Essa história se
repetiu mais algumas vezes durante as próximas semanas. Bia trazendo
um ou até mais gatos para que aqueles quatro cães os matassem no
meio da madrugada, enquanto assistia a tudo em silêncio e dava-se um
banho antes de dormir até a próxima manha. Depois de um tempo, os
moradores daquela vila se cansaram de ter que acordar de manha e dar
de cara com um gato morto para limparem e deixaram de lado aquela
história de soltar os cães de dona Constanza na vila para
protege-los. Quando tivessem dinheiro comprariam câmeras ou algo do
tipo, por enquanto deixariam de lado a segurança de suas casas para
que mais gatos não fossem estraçalhados em suas portas no Belém.
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