sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Deus protege as crianças e os loucos.


   "Deus protege as crianças e os loucos". É isso o que Paulo vivia dizendo para as pessoas ao seu redor, que o infernizavam pelo seu abuso de manguaça e uso de drogas muitas vezes desenfreado. Alguém começava a aborrece-lo com algum sermão e ele logo repetia aquela sua filosofia que havia entrado em sua cabeça e em sua vida como uma espécia de escudo, uma defesa que o protegia da merda que os outros queriam enfiar em seu ouvido todas as vezes que o encontravam em um bar, bebendo pinga e, às vezes, cheirando pó. Com o passar do tempo, seus conhecidos foram gradativamente desistindo de aconselha-lo e deixaram as coisas irem até onde seria possível ir, mas isso não o fez parar de sempre repetir sua famosa sentença: "Deus protege as crianças e os loucos".
   O encontrei uma vez no bar, mais uma vez. Estava sentado com um vagabundo que cheirava a feijão, cachaça e sangue pisado, tinha seus olhos inchados como duas bolas de golfe e já estava mais pra lá do que pra cá. Os dois conversavam em uma língua dos ébrios com a qual não consegui uma tradução livre, não riam ou estavam sérios, apenas conversando naquela língua estranha dos loucos de pedra, balbuciando palavras e dando pequenos socos na mesa quando se empolgavam. Olhei aquela cena por uns segundos e me aproximei da mesa, Paulo me viu de longe e acenou com a mão. Cumprimentei os dois e Paulo me apresentou se amigo vagabundo, "E ae, cara?", disse ao bêbado todo acabado, ele ergueu seu copo e virou num trago e sorriu mostrando uma fileira escura aonde deveriam estar alguns de seus trinta e dois dentes.
   Começamos a conversar sobre qualquer coisa e fiz parte da alcoolização, conversamos por meia hora e aqueles dois pareciam mais bêbados que macacos comendo marulas nas savanas africanas. Fumavam cigarros como duas chaminés e agora falavam menos enrolado para que eu pudesse entender. Iam para o banheiro de vinte em vinte minutos, revezando entre um e outro, sabia que eles estavam cheirando cocaína e eles sabiam que eu sabia, mas eu não dava a mínima e eles certamente cagavam e andavam para o que eu ou qualquer um lá pensava sobre qualquer coisa que eles faziam. Então Isabelas chega ao bar. Isabela era uma amiga nossa que não bebia, não fumava, não cheirava e provavelmente nem peidar a desgraçada peidava, em suma, eu não sabia o que caralhos ela queria fazer num maldito bar, mas era uma boa amiga e uma boa pessoa na maioria das vezes. Ela nos viu da entrada e sorriu, acenamos para que viesse para a mesa e ela se aproximou, reparei em seu olhar quando viu o estado em que Paulo e seu amigo estavam, o sorriso foi substituído por um olhar de leve desprezo e nos cumprimentou apenas esticando a mão e apertando a nossa. Sentou na cadeira e também a vi limpando as mãos em seu vestido azul depois de cumprimentar os dois. "O Zeca tá só achando uma vaga e já vem", falou.
   Eramos cinco agora sentados, o casal Isabela e Zeca, eu e os dois bêbados Paulo e seu amigo estropiado. Um garotinho maltrapilho entrou no bar e se dirigiu diretamente para a nossa mesa, como se as outras antes da nossa simplesmente não existissem, nem olhou para os outros, só chegou até nós com aquele olhar de cachorro abandonado e suas roupas que já tiveram ao menos três donos antes dele e pareciam um vestido naquele projeto de pobre coitado. Paulo olhou para o garoto e, antes que o jovem falasse alguma coisa, ele perguntou "Quer comer, menino?", o garoto arregalou os olhos e balançou a cabeça para cima e para baixo, "Vem cá" chamou Paulo. Levou o garoto até o balcão e perguntou o que ele queria comer dentre os salgados na estuda, o menino apontou para uma coxinha e Paulo falou ao dono do bar "Agnaldo, dá uma coxola pro garoto aqui", o dono tirou o salgado e o entregou ao menino, que agradeceu aos dois com vergonha, sorriu para a coxinha e depois saiu do bar para a amarga rua. Paulo pediu uma PL, virou e foi até o banheiro novamente. Quando voltou, estava mais pego que Tony Montana no final de Scarface e seu nariz estava branco e seu corpo exalava o cheiro forte de cachaça. Isabela olhou com desapontamento e Paulo apenas arrotou e continuou com a conversa sobre cinema que estávamos tendo antes do garoto chegar.
   "Algum dia você vai parar de ser esse doido varrido que você é?", perguntou Isabela nervosa após a segunda volta de Paulo do banheiro desde a chegada do casal ao bar. Ele e seu amigo olharam para a garota ao mesmo tempo e Paulo disse "Baby, Deus protege as crianças e os loucos", ela virou os olhos para e começou: "Você só anda com vagabundo, só faz merda e usa droga. Sempre que eu te vejo você tá chapado e fodido em algum canto, todo nojento e cheirando essa merda aí e..." Paulo interrompeu o sermão e virou para o companheiro da amiga: "Cara, segura sua garota ou terei que doutrina-la da minha forma", estalou os dedos e abriu um sorriso psicótico. O casal pareceu não gostar do que ouviram e Isabela olhou para o namorado, que se sentiu obrigado a falar "Paulo, você já está bem chapado, pega leve aí com ela, bicho", "Foda-se", respondeu, "Fodam-se vocês todos, não posso nem respirar pela boca que já vem alguém me dar algum sermão furado. Fodam-se todos. Agnaldo, desce um rabo de galo aqui pra mim, fazendo o favor." O casal se levantou e já iam embora, Zeca deu o dinheiro para Isabela pagar os dois refrigerantes e foi buscar o carro. Paulo olhou para a amiga claramente puta e falou entre os lábios "desculpa", mas talvez ela não tenha ouvido, entregou o dinheiro para Agnaldo e foi se despedir de nós (de mim) na mesa, chegou perto e fez um aceno sem graça que respondi mandando um beijo e acenando de volta. Olhou para Paulo e disse "Tome jeito, Paulo. Ninguém aqui quer te ver caído morto em algum lugar por causa dessas porcarias que você faz, você é bem melhor do que essa vida." "Estou protegido, Isa. Não se preocupe comigo.", "É, eu sei...", seu celular tocou e foi até a rua atende-lo enquanto esperava pelo namorado e isso foi a última coisa que Isa fez em vida; depois que pisou na calçada, ouvimos aquele som gritado de uma freiada repentina e o Corda preto de Zeca bater e prensar Isabela contra a parede de fora do bar. Saímos correndo até a porta e vi um caminhão passando a toda velocidade pela cena e tive certeza que aquele era o culpado pelo acidente. Zeca saiu do carro desesperado, gritando palavras ininteligíveis e foi até Isa, que já estava inconsciente. Tentamos saber o que ocorreu mas o homem estava em estado de choque e não conseguia falar mais nada, apenas segurava o rosto da namorada e tentava reanima-la enquanto caia em prantos como uma criança. Paulo e o amigo foram ligar para a ambulância e eu vi o caminhão ir embora, seguindo reto a rua do bar, em fuga. Paulo voltou depois de alguns minutos com o copo de pinga na mão e avisou que já tinha ligado para a emergência. Ele olhou para a cena da nossa morta e nosso amigo desesperado tentando acorda-la do sono eterno, uma lágrima rolou de cada olho de Paulo e ele ergueu seu copo à amiga e bebeu. O garotinho que ele havia comprado o salgado apareceu do seu lado e ele tirou-o de lá, indo na direção oposta ao bar, virou para mim e disse que mais tarde nos falávamos. Estava arrasado e chapado demais para lidar ou raciocinar o que havia acontecido. O Sol se abriu e iluminou a rua e o sangue e os corações partidos e ébrios e tive certeza que a única coisa que se passava na cabeça de Paulo era que Deus protege as crianças e os loucos.

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