"Deus protege
as crianças e os loucos". É isso o que Paulo vivia dizendo
para as pessoas ao seu redor, que o infernizavam pelo seu abuso de
manguaça e uso de drogas muitas vezes desenfreado. Alguém começava
a aborrece-lo com algum sermão e ele logo repetia aquela sua
filosofia que havia entrado em sua cabeça e em sua vida como uma
espécia de escudo, uma defesa que o protegia da merda que os outros
queriam enfiar em seu ouvido todas as vezes que o encontravam em um
bar, bebendo pinga e, às vezes, cheirando pó. Com o passar do
tempo, seus conhecidos foram gradativamente desistindo de
aconselha-lo e deixaram as coisas irem até onde seria possível ir,
mas isso não o fez parar de sempre repetir sua famosa sentença:
"Deus protege as crianças e os loucos".
O encontrei uma vez
no bar, mais uma vez. Estava sentado com um vagabundo que cheirava a
feijão, cachaça e sangue pisado, tinha seus olhos inchados como
duas bolas de golfe e já estava mais pra lá do que pra cá. Os dois
conversavam em uma língua dos ébrios com a qual não consegui uma
tradução livre, não riam ou estavam sérios, apenas conversando
naquela língua estranha dos loucos de pedra, balbuciando palavras e
dando pequenos socos na mesa quando se empolgavam. Olhei aquela cena
por uns segundos e me aproximei da mesa, Paulo me viu de longe e
acenou com a mão. Cumprimentei os dois e Paulo me apresentou se
amigo vagabundo, "E ae, cara?", disse ao bêbado todo
acabado, ele ergueu seu copo e virou num trago e sorriu mostrando uma
fileira escura aonde deveriam estar alguns de seus trinta e dois
dentes.
Começamos a
conversar sobre qualquer coisa e fiz parte da alcoolização,
conversamos por meia hora e aqueles dois pareciam mais bêbados que
macacos comendo marulas nas savanas africanas. Fumavam cigarros como
duas chaminés e agora falavam menos enrolado para que eu pudesse
entender. Iam para o banheiro de vinte em vinte minutos, revezando
entre um e outro, sabia que eles estavam cheirando cocaína e eles
sabiam que eu sabia, mas eu não dava a mínima e eles certamente
cagavam e andavam para o que eu ou qualquer um lá pensava sobre
qualquer coisa que eles faziam. Então Isabelas chega ao bar. Isabela
era uma amiga nossa que não bebia, não fumava, não cheirava e
provavelmente nem peidar a desgraçada peidava, em suma, eu não
sabia o que caralhos ela queria fazer num maldito bar, mas era uma
boa amiga e uma boa pessoa na maioria das vezes. Ela nos viu da
entrada e sorriu, acenamos para que viesse para a mesa e ela se
aproximou, reparei em seu olhar quando viu o estado em que Paulo e
seu amigo estavam, o sorriso foi substituído por um olhar de leve
desprezo e nos cumprimentou apenas esticando a mão e apertando a
nossa. Sentou na cadeira e também a vi limpando as mãos em seu
vestido azul depois de cumprimentar os dois. "O Zeca tá só
achando uma vaga e já vem", falou.
Eramos cinco agora
sentados, o casal Isabela e Zeca, eu e os dois bêbados Paulo e seu
amigo estropiado. Um garotinho maltrapilho entrou no bar e se dirigiu
diretamente para a nossa mesa, como se as outras antes da nossa
simplesmente não existissem, nem olhou para os outros, só chegou
até nós com aquele olhar de cachorro abandonado e suas roupas que
já tiveram ao menos três donos antes dele e pareciam um vestido
naquele projeto de pobre coitado. Paulo olhou para o garoto e, antes
que o jovem falasse alguma coisa, ele perguntou "Quer comer,
menino?", o garoto arregalou os olhos e balançou a cabeça para
cima e para baixo, "Vem cá" chamou Paulo. Levou o garoto
até o balcão e perguntou o que ele queria comer dentre os salgados
na estuda, o menino apontou para uma coxinha e Paulo falou ao dono do
bar "Agnaldo, dá uma coxola pro garoto aqui", o dono tirou
o salgado e o entregou ao menino, que agradeceu aos dois com
vergonha, sorriu para a coxinha e depois saiu do bar para a amarga
rua. Paulo pediu uma PL, virou e foi até o banheiro novamente.
Quando voltou, estava mais pego que Tony Montana no final de Scarface
e seu nariz estava branco e seu corpo exalava o cheiro forte de
cachaça. Isabela olhou com desapontamento e Paulo apenas arrotou e
continuou com a conversa sobre cinema que estávamos tendo antes do
garoto chegar.
"Algum dia você
vai parar de ser esse doido varrido que você é?", perguntou
Isabela nervosa após a segunda volta de Paulo do banheiro desde a
chegada do casal ao bar. Ele e seu amigo olharam para a garota ao
mesmo tempo e Paulo disse "Baby, Deus protege as crianças e os
loucos", ela virou os olhos para e começou: "Você só
anda com vagabundo, só faz merda e usa droga. Sempre que eu te vejo
você tá chapado e fodido em algum canto, todo nojento e cheirando
essa merda aí e..." Paulo interrompeu o sermão e virou para o
companheiro da amiga: "Cara, segura sua garota ou terei que
doutrina-la da minha forma", estalou os dedos e abriu um sorriso
psicótico. O casal pareceu não gostar do que ouviram e Isabela
olhou para o namorado, que se sentiu obrigado a falar "Paulo,
você já está bem chapado, pega leve aí com ela, bicho",
"Foda-se", respondeu, "Fodam-se vocês todos, não
posso nem respirar pela boca que já vem alguém me dar algum sermão
furado. Fodam-se todos. Agnaldo, desce um rabo de galo aqui pra mim, fazendo o favor." O casal se levantou e já iam embora, Zeca deu o dinheiro para
Isabela pagar os dois refrigerantes e foi buscar o carro. Paulo olhou
para a amiga claramente puta e falou entre os lábios "desculpa",
mas talvez ela não tenha ouvido, entregou o dinheiro para Agnaldo e
foi se despedir de nós (de mim) na mesa, chegou perto e fez um aceno
sem graça que respondi mandando um beijo e acenando de volta. Olhou
para Paulo e disse "Tome jeito, Paulo. Ninguém aqui quer te ver
caído morto em algum lugar por causa dessas porcarias que você faz,
você é bem melhor do que essa vida." "Estou protegido,
Isa. Não se preocupe comigo.", "É, eu sei...", seu
celular tocou e foi até a rua atende-lo enquanto esperava pelo
namorado e isso foi a última coisa que Isa fez em vida; depois que
pisou na calçada, ouvimos aquele som gritado de uma freiada
repentina e o Corda preto de Zeca bater e prensar Isabela contra a
parede de fora do bar. Saímos correndo até a porta e vi um caminhão
passando a toda velocidade pela cena e tive certeza que aquele era o
culpado pelo acidente. Zeca saiu do carro desesperado, gritando
palavras ininteligíveis e foi até Isa, que já estava inconsciente.
Tentamos saber o que ocorreu mas o homem estava em estado de choque e
não conseguia falar mais nada, apenas segurava o rosto da namorada e
tentava reanima-la enquanto caia em prantos como uma criança. Paulo
e o amigo foram ligar para a ambulância e eu vi o caminhão ir
embora, seguindo reto a rua do bar, em fuga. Paulo voltou depois de
alguns minutos com o copo de pinga na mão e avisou que já tinha
ligado para a emergência. Ele olhou para a cena da nossa morta e
nosso amigo desesperado tentando acorda-la do sono eterno, uma
lágrima rolou de cada olho de Paulo e ele ergueu seu copo à amiga e
bebeu. O garotinho que ele havia comprado o salgado apareceu do seu
lado e ele tirou-o de lá, indo na direção oposta ao bar, virou
para mim e disse que mais tarde nos falávamos. Estava arrasado e
chapado demais para lidar ou raciocinar o que havia acontecido. O Sol
se abriu e iluminou a rua e o sangue e os corações partidos e
ébrios e tive certeza que a única coisa que se passava na cabeça
de Paulo era que Deus protege as crianças e os loucos.
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