segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Quando trombei com Bob Dylan.


   Terminei meu almoço às 13:45 e deixei a louça para acumular mais uns dias em cima da pia já cheia e suja. Estava com preguiça de lavar, estava com preguiça de limpar a casa. Merda, viver cansa até quando não se vive.
Estava sem emprego e morando sozinho novamente. Luana, a garota que dividia o apartamento comigo por dois anos e alguns meses, se mandou com um namorado para ir morar em algum canto da Zona Oeste. Estava sozinho há uma semana e sentia falta de sua companhia naqueles 58m² de espaço, que agora pareciam ser muito mais para mim. Não, não tive nada com Luana, nunca tivem não por falta de tentativa, é claro. Ela nunca olhou pra mim qualquer forma diferente de como um amigo, uma hora simplesmente aceitei que seria mais uma garota que eu teria somente nos meus transitivos e viajantes pensamentos de felicidade idealizada. Tinha sido assim a minha vida inteiro, acho que já não faz mais diferença há muitos anos, e eu realmente havia tentado tentei até encher o saco e deixa-la se agarrando com qualquer otário que aparecesse e a tratasse como merda. Avisei sobre eles para ela algumas vezes, afinal de contas essa é a utilidade de um amigo como eu, isso e tirar os papéis de merda do banheiro. No final acabou achando um cara que não a tratava como uma merda lá tão fedida, apenas como um cocozinho seco de gato. Ela prometeu que iria visitar-me toda vez que desse. Eu nunca mais a veria.
Como sempre, a televisão só passava lixo atrás de lixo, continuamos assistindo porque estava afim da boa e velha alienação, precisava encher a cara de informações vazias, de necessidades que eu certamente não tinha. Passava algo interessante no Discovery sobre o gene da maldade ou coisa assim. Mudei. Coloquei uma comédia americana que não me tirou um riso se quer, estava quase no final e agradeci por isso, desliguei a TV antes que acabasse ou uma bolha de ar crescesse no meu cérebro. Peguei meu violão e tentei algumas músicas, nada; tentei um blues básico, nada; qualquer coisa, nada. Nada estava dando certo, bosta.
Caguei e pensei em Luana enquanto cagava, era uma garota legal de verdade e sentiria saudades dela, já devia estar sentindo. Sua ausência era notada pelo apartamento todo, antes estava tudo organizado, agora haviam explodido uma caixa de granadas em cada cômodo. Eu até curtia uma organização mas me encontrava em uma fase muito largada da minha vida. Não tinha trabalho, meus últimos reais estavam no fim e não tinha garota alguma há tanto tempo que sei lá. Antes eu tinha ao menos o insignificante prazer de ver Luana desfilando por lá, vez ou outra só com a roupa de baixo, vez ou outra se trocando de porta aberta, sabendo que eu ia dar uma espiada. Não me dava uma chance mas me dava umas espiadas, algumas mulheres ainda tem algo que lembre um coração embaixo do peito.
Dei descarga e pensei que seria bom sair por aí e gastar o resto de dinheiro e sanidade que ainda restava para o meu ser. Achei que seria bom tomar um banho, tomei. Calor do caralho há muitos dias, meu corpo grudava e aproveitava que estava sozinho para andar pelado pela casa. Achei que as pessoas na rua conseguiam me ver nu, enfiei a bunda na janela para que tivesse a certeza. Coloquei as roupas mais leves que encontrei, achei vinte mangos que não deviam ser meus caídos atrás da mesinha da pequena sala. Enfiei no bolso e saí do apartamento com uma nota e uma chave de casa largados pela minha bermuda jeans.
Cumprimentei o porteiro e saí para a rua quente. O Sol começava a perder suas forças e uma brisa fraca batia nas sombras e em mim. Andei por alguns minutos sem rumo, pensei que seria legal ir a algum bar e passar o resto do dia por lá, talvez jogar uma sinuca ou cartas com qualquer bando de velhos abandonados que estivesse por lá. Andei mais um pouco por umas ruas vazias e verdes e um senhor bêbado me abordou de supetão:
  • ôô, meu jovenzinho! Não tem um trocadinho pro véinho aqui comer uma coisa? - arrastava a voz
  • O que você vai fazer mesmo? Haha – perguntei
Ele olhou e me perguntei porque simplesmente não disse que não tinha grana comigo.
  • Vou comer uma coisa, jovem. - sorriu sem dentes
  • Eu sei que você vai comprar um goró, tiozão. Não ligo, também gosto. Mas não tenho nada aqui, cara.
  • Ôôô... - lamentou o ébrio senhor
  • Te devo uma na próxima.
Ele sorriu, não sei porque sorriu com uma coisa que qualquer um poderia ter dito, mas sorriu. Achei bom, se consigo fazer um sorriso em alguém durante o dia, talvez o meu dia não esteja tão enfiado no cu assim. Continuei andando em direção ao bar algumas quadras adiante e o bêbado continuou sua procura por uns trocados, cambaleando sem dentes por aí.
Virei aqui e alí e caí em umas ruas ensolaradas novamente. Ensolaradas e agora mais cheias de pessoas indo trabalhar, almoçar, vadiar ou apenas andar. Pensava em Luana novamente. Acho que estava gostando dela, gostava dela e agora ela estava morando com um bamba em algum lugar bamba, um notório imbecil, com certeza. Mas o imbecil que estava se dando bem melhor que eu, com certeza, chutando o belo rabão de Luana e ela gostando, não é possível que ela não goste de levar uns murros na cara. Devia ter tentado isso. Talvez fosse isso o que faltou quando ela deixava-me espia-la depois do banho: Entrar xingando e descer o cacete. Agora era tarde, foda-se
Chegava próximo ao bar e a rua parecia estar cada vez mais cheia, tentava desviar das pessoas que passavam apressadas umas pelas outras. Desviada de uma e chegava outra esbarrando, passaram-se mais umas três ou quatro trombadas e na quinta dei de frente com um senhor de chapéu que também tinha me visto. Trombamos e na hora achei que ia derrubar o velhote, ele deixou cair uma pasta e me apressei a pega-la enquanto me desculpava:
  • Nossa! Senhor, me desculpa! Machucou?
  • Não, tudo bem – respondeu com uma voz rouca e fanha
Ele falou e entreguei a pasta em suas mãos, quando olhei para o seu rosto quase caí para trás e arregalei os olhos e encarei o senhor de chapéu, bigode e uma pesada jaqueta preta que não sei como ela aguentava com aquele tempo:
  • Bob Dylan! - gritei
Ele olhou para mim e para as pessoas ao redor, estavam tão apressadas e aparentemente estressadas que nem ouviram a minha sonora exclamação quando reconheci o cantor folk que quase havia derrubado no chão
  • Meu Deus, não acredito! Você, cara! Não acredito!
Sr. Dylan parecia tímido com a situação e me surpreendi mais com ele ter prestado alguma atenção em mim do que ele estar na minha frente no meio de uma rua movimentada. Sorriu com o canto da boca e apenas disse:
  • Sim
Apertei sua mão extremamente empolgado e na hora algo veio em minha cabeça e simplesmente perguntei:
  • Cara, estou indo para um bar agora. Se você tomasse umas comigo, seria incrível!
Ele abriu um sorriso inteiro e respondeu o que eu não ouvia de nenhuma garota e não esperava ouvir dele novamente:
  • Sim!
Seguimos para o bar e eu imaginava se aquilo não era sonho. Não parecia ser, aquilo tudo parecia ser real demais. Imaginei um pinguim gigante e chequei para ver se não aparecia um na minha frente. Não apareceu. Eu estava mesmo indo para um boteco ao lado de Bob Dylan, puxando conversa sobre suas letras e sobre alguns poetas que sabia que ele curtia. Citei Ginsberg e ele contou umas histórias rápidas sobre viagens que tiveram juntos. Eu ouvia tudo e o que mais pensava era " isso é a coisa mais estranha que já aconteceu na minha vida até hoje". Chegamos na porta do bar e avisei ao garçom para trazer dois copos e uma cerveja para uma mesa do lado de fora do bar. A rua estava deserta e era repleta de árvores e casinhas arrumadas. Achei novamente que estava sonhando, não lembrava daquela rua. Mas não estava. Estava tomando umas com Bob Dylan de verdade, num boteco de esquina qualquer, conversando sobre escritores e músicas de décadas atrás.
O tempo passou e a tarde parecia correr, conversávamos ainda e bebíamos mais cerveja. Sr. Dylan pediu umas mandiocas fritas e mais tarde pediu uns bolinhos de bacalhau, enquanto mandávamos mais cevada pra dentro e ríamos. Sua voz parecia muito mais rouca ao vivo, ainda mais quando já estava alto e soltava uns risos aqui e alí. Em algum ponto contei a ele sobre Luana, achei que nem daria ouvidos para os lamentos de um largado com vinte pilas no bolso que nem eu, ele ouviu-me falando sobre a garota por alguns minutos, em silêncio, quando terminei de falar que estava sem grana e sem garota, ele apenas disse:
  • Dinheiro aparece e mulher não vale nada, garoto.
Eu ri, ele riu. Aquilo era uma grande verdade, Bob Dylan me dando conselhos financeiros e amorosos, que tarde mais estranha.
A tarde já chegava próxima do seu fim e o Sol descia lentamente e alaranjado, as garrafas de cerveja em nossa mesa já ocupavam quase todo o espaço e Bob me passou uns cigarros que estavam dentro de um maço que não me era familiar. Tinham um gosto bom e fumamos em silêncio por um tempo, contemplando aquele pôr do Sol e o início da noite espreitando o final do dia. Acendemos mais uma daquelas cigarrilhas cada e conversamos um pouco enquanto terminávamos a saideira e esperávamos o rapaz trazer o café antes de irmos. O café chegou e fumamos mais umas cigarrilhas enquanto o saboreávamos sem pressa. Quando terminamos, Bob pediu a conta e lembrei que gastamos grana a tarde inteira com cerveja e outras porcarias e eu tinha apenas vinte mangos comigo:
  • Cara, eu tenho só esse trocado aqui comigo. Dá pra fazer umas cervejas, imagino – disse entregando o dinheiro para ele
  • Relaxe, garoto. Guarde isso e deixa que eu pago a conta
Lembrei que estava ao lado de um artista milionário e nem insisti em contribuir na conta. Eu estava desempregado, porra.
A conta chegou e não vi quando deu, com certeza umas quatro vezes mais do que eu tinha comigo. Nos despedimos do garçom e da beça moça no balcão e fomos andando pela rua que já parecia escura. Viramos algumas esquinas e reconheci a rua na qual trombei com Bob Dylan horas mais cedo, ele se virou pra mim e disse:
  • Bom, garoto, vou indo nessa. Dei umas boas risadas essa tarde.
  • Sim, obrigado pelas cervejas, sr. Dylan – agradeci sorrindo
  • Nos vemos por aí.
Ele apertou minha mão e sorriu, se virou e foi seguindo seu caminho. Gritei:
  • Bob!
Ele virou
  • Me arranje outra dessas cigarrilhas, cara, por favor?
Bob sorriu novamente e me jogou uma, peguei no ar e coloquei atrás da orelha, ele virou e continuou andando na direção oposta à minha, na mesma rua que o havia encontrado. Não havia lhe dito meu nome ou tirado uma foto, nem sequer um autógrafo no guardanapo, talvez eu guardasse aquela cigarrilha como recordação, talvez eu a fumasse e não sobrasse nada para comprovar esse dia além desse texto. Ninguém acreditaria de qualquer forma, com ou sem tabaco. Segui em direção ao apartamento sujo e vazio e sem Luana. As ruas pareciam mais escuras e desertas agora, encontrei o senhor bêbado que havia me pedido uns trocados deitado na rua, dormindo ou apagado. Tirei as vinte pilas que havia economizado no bar e olhei para ver se não tinha nenhum espertinho espreitando. Enfiei a nota no bolso da camisa abarrotada do homem e fui para casa, talvez dar uma arrumada naquele lugar, finalmente.

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