Terminei
meu almoço às 13:45 e deixei a louça para acumular mais uns dias
em cima da pia já cheia e suja. Estava com preguiça de lavar,
estava com preguiça de limpar a casa. Merda, viver cansa até quando
não se vive.
Estava
sem emprego e morando sozinho novamente. Luana, a garota que dividia
o apartamento comigo por dois anos e alguns meses, se mandou com um
namorado para ir morar em algum canto da Zona Oeste. Estava sozinho
há uma semana e sentia falta de sua companhia naqueles 58m² de
espaço, que agora pareciam ser muito mais para mim. Não, não tive
nada com Luana, nunca tivem não por falta de tentativa, é claro.
Ela nunca olhou pra mim qualquer forma diferente de como um amigo, uma
hora simplesmente aceitei que seria mais uma garota que eu teria
somente nos meus transitivos e viajantes pensamentos de felicidade
idealizada. Tinha sido assim a minha vida inteiro, acho que já não
faz mais diferença há muitos anos, e eu realmente havia tentado
tentei até encher o saco e deixa-la se agarrando com qualquer otário
que aparecesse e a tratasse como merda. Avisei sobre eles para ela
algumas vezes, afinal de contas essa é a utilidade de um amigo como
eu, isso e tirar os papéis de merda do banheiro. No final acabou
achando um cara que não a tratava como uma merda lá tão fedida,
apenas como um cocozinho seco de gato. Ela prometeu que iria
visitar-me toda vez que desse. Eu nunca mais a veria.
Como
sempre, a televisão só passava lixo atrás de lixo, continuamos
assistindo porque estava afim da boa e velha alienação, precisava
encher a cara de informações vazias, de necessidades que eu
certamente não tinha. Passava algo interessante no Discovery sobre o
gene da maldade ou coisa assim. Mudei. Coloquei uma comédia
americana que não me tirou um riso se quer, estava quase no final e
agradeci por isso, desliguei a TV antes que acabasse ou uma bolha de
ar crescesse no meu cérebro. Peguei meu violão e tentei algumas
músicas, nada; tentei um blues básico, nada; qualquer coisa, nada.
Nada estava dando certo, bosta.
Caguei e
pensei em Luana enquanto cagava, era uma garota legal de verdade e
sentiria saudades dela, já devia estar sentindo. Sua ausência era
notada pelo apartamento todo, antes estava tudo organizado, agora
haviam explodido uma caixa de granadas em cada cômodo. Eu até
curtia uma organização mas me encontrava em uma fase muito largada
da minha vida. Não tinha trabalho, meus últimos reais estavam no
fim e não tinha garota alguma há tanto tempo que sei lá. Antes eu
tinha ao menos o insignificante prazer de ver Luana desfilando por
lá, vez ou outra só com a roupa de baixo, vez ou outra se trocando
de porta aberta, sabendo que eu ia dar uma espiada. Não me dava uma
chance mas me dava umas espiadas, algumas mulheres ainda tem algo que
lembre um coração embaixo do peito.
Dei
descarga e pensei que seria bom sair por aí e gastar o resto de
dinheiro e sanidade que ainda restava para o meu ser. Achei que seria
bom tomar um banho, tomei. Calor do caralho há muitos dias, meu
corpo grudava e aproveitava que estava sozinho para andar pelado pela
casa. Achei que as pessoas na rua conseguiam me ver nu, enfiei a
bunda na janela para que tivesse a certeza. Coloquei as roupas mais
leves que encontrei, achei vinte mangos que não deviam ser meus
caídos atrás da mesinha da pequena sala. Enfiei no bolso e saí do
apartamento com uma nota e uma chave de casa largados pela minha
bermuda jeans.
Cumprimentei o porteiro e saí para a rua quente. O Sol começava a
perder suas forças e uma brisa fraca batia nas sombras e em mim.
Andei por alguns minutos sem rumo, pensei que seria legal ir a algum
bar e passar o resto do dia por lá, talvez jogar uma sinuca ou
cartas com qualquer bando de velhos abandonados que estivesse por lá.
Andei mais um pouco por umas ruas vazias e verdes e um senhor bêbado
me abordou de supetão:
- ôô, meu jovenzinho! Não tem um trocadinho pro véinho aqui comer uma coisa? - arrastava a voz
- O que você vai fazer mesmo? Haha – perguntei
Ele olhou
e me perguntei porque simplesmente não disse que não tinha grana
comigo.
- Vou comer uma coisa, jovem. - sorriu sem dentes
- Eu sei que você vai comprar um goró, tiozão. Não ligo, também gosto. Mas não tenho nada aqui, cara.
- Ôôô... - lamentou o ébrio senhor
- Te devo uma na próxima.
Ele
sorriu, não sei porque sorriu com uma coisa que qualquer um poderia
ter dito, mas sorriu. Achei bom, se consigo fazer um sorriso em
alguém durante o dia, talvez o meu dia não esteja tão enfiado no
cu assim. Continuei andando em direção ao bar algumas quadras
adiante e o bêbado continuou sua procura por uns trocados,
cambaleando sem dentes por aí.
Virei
aqui e alí e caí em umas ruas ensolaradas novamente. Ensolaradas e
agora mais cheias de pessoas indo trabalhar, almoçar, vadiar ou
apenas andar. Pensava em Luana novamente. Acho que estava gostando
dela, gostava dela e agora ela estava morando com um bamba em algum
lugar bamba, um notório imbecil, com certeza. Mas o imbecil que
estava se dando bem melhor que eu, com certeza, chutando o belo rabão
de Luana e ela gostando, não é possível que ela não goste de
levar uns murros na cara. Devia ter tentado isso. Talvez fosse isso o
que faltou quando ela deixava-me espia-la depois do banho: Entrar
xingando e descer o cacete. Agora era tarde, foda-se
Chegava
próximo ao bar e a rua parecia estar cada vez mais cheia, tentava
desviar das pessoas que passavam apressadas umas pelas outras.
Desviada de uma e chegava outra esbarrando, passaram-se mais umas
três ou quatro trombadas e na quinta dei de frente com um senhor de
chapéu que também tinha me visto. Trombamos e na hora achei que ia
derrubar o velhote, ele deixou cair uma pasta e me apressei a pega-la
enquanto me desculpava:
- Nossa! Senhor, me desculpa! Machucou?
- Não, tudo bem – respondeu com uma voz rouca e fanha
Ele falou
e entreguei a pasta em suas mãos, quando olhei para o seu rosto
quase caí para trás e arregalei os olhos e encarei o senhor de
chapéu, bigode e uma pesada jaqueta preta que não sei como ela
aguentava com aquele tempo:
- Bob Dylan! - gritei
Ele olhou
para mim e para as pessoas ao redor, estavam tão apressadas e
aparentemente estressadas que nem ouviram a minha sonora exclamação
quando reconheci o cantor folk que quase havia derrubado no chão
- Meu Deus, não acredito! Você, cara! Não acredito!
Sr. Dylan
parecia tímido com a situação e me surpreendi mais com ele ter
prestado alguma atenção em mim do que ele estar na minha frente no
meio de uma rua movimentada. Sorriu com o canto da boca e apenas
disse:
- Sim
Apertei
sua mão extremamente empolgado e na hora algo veio em minha cabeça
e simplesmente perguntei:
- Cara, estou indo para um bar agora. Se você tomasse umas comigo, seria incrível!
Ele abriu
um sorriso inteiro e respondeu o que eu não ouvia de nenhuma garota
e não esperava ouvir dele novamente:
- Sim!
Seguimos
para o bar e eu imaginava se aquilo não era sonho. Não parecia ser,
aquilo tudo parecia ser real demais. Imaginei um pinguim gigante e
chequei para ver se não aparecia um na minha frente. Não apareceu.
Eu estava mesmo indo para um boteco ao lado de Bob Dylan, puxando
conversa sobre suas letras e sobre alguns poetas que sabia que ele
curtia. Citei Ginsberg e ele contou umas histórias rápidas sobre
viagens que tiveram juntos. Eu ouvia tudo e o que mais pensava era "
isso é a coisa mais estranha que já aconteceu na minha vida até
hoje". Chegamos na porta do bar e avisei ao garçom para trazer
dois copos e uma cerveja para uma mesa do lado de fora do bar. A rua
estava deserta e era repleta de árvores e casinhas arrumadas. Achei
novamente que estava sonhando, não lembrava daquela rua. Mas não
estava. Estava tomando umas com Bob Dylan de verdade, num boteco de
esquina qualquer, conversando sobre escritores e músicas de décadas
atrás.
O tempo
passou e a tarde parecia correr, conversávamos ainda e bebíamos
mais cerveja. Sr. Dylan pediu umas mandiocas fritas e mais tarde
pediu uns bolinhos de bacalhau, enquanto mandávamos mais cevada pra
dentro e ríamos. Sua voz parecia muito mais rouca ao vivo, ainda
mais quando já estava alto e soltava uns risos aqui e alí. Em algum
ponto contei a ele sobre Luana, achei que nem daria ouvidos para os
lamentos de um largado com vinte pilas no bolso que nem eu, ele
ouviu-me falando sobre a garota por alguns minutos, em silêncio,
quando terminei de falar que estava sem grana e sem garota, ele
apenas disse:
- Dinheiro aparece e mulher não vale nada, garoto.
Eu ri,
ele riu. Aquilo era uma grande verdade, Bob Dylan me dando conselhos
financeiros e amorosos, que tarde mais estranha.
A tarde
já chegava próxima do seu fim e o Sol descia lentamente e
alaranjado, as garrafas de cerveja em nossa mesa já ocupavam quase
todo o espaço e Bob me passou uns cigarros que estavam dentro de um
maço que não me era familiar. Tinham um gosto bom e fumamos em
silêncio por um tempo, contemplando aquele pôr do Sol e o início
da noite espreitando o final do dia. Acendemos mais uma daquelas
cigarrilhas cada e conversamos um pouco enquanto terminávamos a
saideira e esperávamos o rapaz trazer o café antes de irmos. O café
chegou e fumamos mais umas cigarrilhas enquanto o saboreávamos sem
pressa. Quando terminamos, Bob pediu a conta e lembrei que gastamos
grana a tarde inteira com cerveja e outras porcarias e eu tinha
apenas vinte mangos comigo:
- Cara, eu tenho só esse trocado aqui comigo. Dá pra fazer umas cervejas, imagino – disse entregando o dinheiro para ele
- Relaxe, garoto. Guarde isso e deixa que eu pago a conta
Lembrei
que estava ao lado de um artista milionário e nem insisti em
contribuir na conta. Eu estava desempregado, porra.
A conta
chegou e não vi quando deu, com certeza umas quatro vezes mais do
que eu tinha comigo. Nos despedimos do garçom e da beça moça no
balcão e fomos andando pela rua que já parecia escura. Viramos
algumas esquinas e reconheci a rua na qual trombei com Bob Dylan
horas mais cedo, ele se virou pra mim e disse:
- Bom, garoto, vou indo nessa. Dei umas boas risadas essa tarde.
- Sim, obrigado pelas cervejas, sr. Dylan – agradeci sorrindo
- Nos vemos por aí.
Ele
apertou minha mão e sorriu, se virou e foi seguindo seu caminho.
Gritei:
- Bob!
Ele virou
- Me arranje outra dessas cigarrilhas, cara, por favor?
Bob
sorriu novamente e me jogou uma, peguei no ar e coloquei atrás da
orelha, ele virou e continuou andando na direção oposta à minha,
na mesma rua que o havia encontrado. Não havia lhe dito meu nome ou
tirado uma foto, nem sequer um autógrafo no guardanapo, talvez eu
guardasse aquela cigarrilha como recordação, talvez eu a fumasse e
não sobrasse nada para comprovar esse dia além desse texto. Ninguém
acreditaria de qualquer forma, com ou sem tabaco. Segui em direção
ao apartamento sujo e vazio e sem Luana. As ruas pareciam mais
escuras e desertas agora, encontrei o senhor bêbado que havia me
pedido uns trocados deitado na rua, dormindo ou apagado. Tirei as
vinte pilas que havia economizado no bar e olhei para ver se não
tinha nenhum espertinho espreitando. Enfiei a nota no bolso da camisa
abarrotada do homem e fui para casa, talvez dar uma arrumada naquele
lugar, finalmente.
Muito legal velho.....curti o texto....
ResponderExcluirAdorei, conninho. Ouça sempre os conselhos do Dylan!
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