Talvez Rousseau não
tivesse noção do quanto a sua famosa frase faria sentido no futuro,
talvez muito mais sentido do que em sua época. A sociedade sempre
foi a maior das utopias e a maior destruidora de vidas que o ser
humano organizou, sua ideia básica e direta de todos vivendo em
aparente harmonia nunca foi algo que deu exatamente certo e há
tempos vemos os reflexos disso nas mais diversas áreas. Sandro é um
modelo, um exemplo desse reflexo, mais um ser que foi chutado para
debaixo da cama da sociedade e é largado lá como um brinquedo velho
e inútil, algo que sabemos que ainda existe mas não paramos para
dar uma olhada ou ver se ainda está inteiro. Ele e mais uma
incógnita de crianças e adultos que são abandonados pela sociedade
estão vivendo à mercê da boa vontade dos mesmos que os abandonaram
e os chutam todos os dias, correndo da polícia que os vê como meros
pedaços de carne jogados na rua, drogados e sujos, um problema que
as madames não podem entrar em contato, por isso acabam
marginalizando-os e privando-os de uma existência mais aceitável
para os padrões de uma suposta sociedade justa. Quando tudo sai do
controle, cadeia e mais porrada em quem está mais sujo.
Nas favelas as
pessoas costumam viver com medo constante. Medo de traficante, de
polícia, de despejo, de miséria. Miséria é mais uma coisa que
leva as pessoas a ficarem loucas numa sociedade, trabalhar mais do
que é capaz para não conseguir sustentar uma família, criar um
filho ou muitos sozinho, tendo que fazer de tudo o que é possível e
o que é dentro e fora da lei para sobreviver de alguma forma bem
baixa. Crianças são abandonadas pelos pais ou os perdem e tem que
ficar na rua, encontrando consolo e algum conforto cheirando cola,
roubando ou se humilhando para os outros que nem ao menos olham em
suas caras, os olhares atravessam direto, não existem para os
outros, não existem para nós. São completamente invisíveis aos
nossos olhos bem alimentados e descansados.
A invisibilidade
não é apenas vê-los como animais brutos, seres inferiores ou
marginais. Simplesmente olhamos e é como se não significassem nada
para nós, não existissem de alguma forma, como se significassem
menos do que os outros transeuntes na rua significam. Olhamos e não
vemos nada, vazio e sujeira em uma forma que a sociedade já não
trata mais como igual, como humano. Os cães que ladram pelas vielas
muitas vezes recebem mais respeito do que essas crianças, tratadas
como algum tipo de câncer, um inseto que traz caos e desgraça para
a nossa casa. A única forma de serem vistos é com a violência.
Sandro usou isso e funcionou, conseguiu existir por algum tempo para
o resto da população, uma espécie de mártir desses invisíveis,
não uma pessoa má, que nasceu da maldade que a pobreza traz, como
pensamos, alguém que se cansou de todo o anonimato, de levar
escarradas da sociedade o dia inteiro, de ter que ficar roubando e
apanhando da polícia, de perder seus amigos que também não
existiam para nós, para ninguém.
A polícia, como já
dito, também é um grande impasse na vida dessas pessoas. São os
carrascos da sociedade, que puxam o gatilho pra cima de quem uma
significante minoria manda puxar, chutam quem essa minoria manda
chutar, esculacham a todos que moram na rua, a todos que, de alguma
forma, não entraram no conceito sonhador da sociedade e vão contra
essa maré. Sandro uma hora se sentiu cansado disso e nadou contra
essa maré absurdamente violenta, foi contra todos para que todos o
vissem um pouco, perdeu o seu equilíbrio mental quando viu que nunca
conseguiria nada da sociedade além de desdém e asco eternos. Foi
sozinho, fez tudo sozinho, como sempre foi.
Depois de todas
essas coisas ainda temos quem diga que pena de morte é uma solução
viável, que resolveria algo. Há também aqueles sádicos que sabem
que não resolveria problema algum, mas apenas querem ver um cara
como Sandro ter o cérebro fritado na cadeira elétrica, só porque,
em sua concepção questionável, merece. Não podemos julgar se ele
merece isso ou não e, se ele merece, todos nós merecemos também.
Todos merecemos fritar na cadeira elétrica ou levar um tiro de fuzil
na cabeça, porque construímos a sociedade dessa forma e cada dia
enxergamos menos o que se passa nela, o que se passa na nossa frente,
pessoas morrendo de frio ou sendo queimadas nas ruas durante a noite
como se fizessem parte de alguma brincadeira doentia. A sociedade é
doentia porque o ser humano é a doença, uma doença sem cura.
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