O letreiro em cima do
discreto e pequeno prédio brilhava com mais intensidade conforme a
noite dava as caras para a cidade mais uma vez. As pessoas começavam
a se aglomerar em frente ao cinema e liam aquelas palavras coloridas
que diziam:
Espaço de
Sá
Essa noite
apenas:
"A cabeça de
um Homem"
O boca a boca e a
curiosidade que um curto teaser na internet acendia nas mentes das
pessoas acabaram se mostrando muito mais eficazes do que qualquer
trailer ou divulgação para massas. De qualquer forma isso também
não era a ideia de seu diretor e roteirista, o cineasta brasileiro
Alex Lardonha, que avisou à sua assistente, Natasha Minsk, que daria
as caras por lá minutos antes da sessão começar, para evitar
entrevistas e comentários que pudessem estragar a novidade e a
surpresa do conceito que o Cinema Branco (como havia chamado aquele
novo tipo de filme) estava para revelar às cerca de cinquenta
pessoas que formavam uma fila na porta e daquele tradicional cinema
na zona norte da cidade.
E durante cerca de
uma hora houve vida e vozes e vendedores de guloseimas e bebidas
naquela esquina. Claro, nos cantos obscuros e apagados pela calada da
noite que caía cada vez mais forte, vendedores de entorpecentes
ilícitos para os que queriam ter uma visão diferente do que poderia
ser aquele novo tipo de filme. Tabaco e maconha perfumavam os
arredores e a esquina daquele lugar antigo e cultuado. Bagulhos de
fungadas e nóias de pedra completando o quadro daquela noite, como
em todas as noites, idosos abraçados e passando despercebidos pela
escuridão da rua. Natasha Minsk, secretária e, vez ou outra, amante
de Alex, analisava aquela fila e sentia uma grande noite chegando,
não de sucesso ou de público, mas uma ideia que ficaria para sempre
na cabeça de quem a sentisse, a verdade sobre o que se passa na
cabeça de um gênio como Alex Lardonha.
Jornalistas de
revistas e blogs alternativos escreviam em cadernos e tablets sobre o
que parecia ser o filme e deviam ser a grande maioria presente.
Tirando isso, haviam adolescentes metidos a intelectuais e
aposentados desocupados que procuravam alguma nova ocupação na
velhice. Jovens bebiam umas cervejas no bar em frente, esperando a
fila andar, riam e gastavam o que tinham trazido consigo, visto que a
entrada seria gratuita e era uma sexta feira.
As portas se abriram
e as pessoas foram entrando lentamente no rústico prédio pintado de
vinho. O ambiente interno era todo colorido e as cores se misturavam
violentamente, como se estivessem brigando por espaço, cores quentes
e frias somam-se ao preto e deram um ar assombrado para o lugar. "O
cara realmente pensou em tudo" disse um jovem para o amigo. E
era verdade, tudo havia sido arrumado para aquela única noite
daquele filme estranho e, talvez, inovador. Algumas bandeiras com
frases de grandes homens como Freud e Baudelaire, cartazes de filmes
antigos que o diretor era fã e que o inspiraram a realizar sua
grande obra estavam todos espalhados pelo saguão. Comentários e
sussurros eram ouvidos por toda a parte do recinto, enquanto os
interessados passeavam pelo saguão e dirigiam-se para a porta 3, no
fundo do corredor principal. Conhecidos e próximos de Lardonha
pareciam surpresos com o dinheiro que o diretor esquisito
provavelmente havia gasto para deixar tudo aquilo daquela forma. Deve
ter gastado até o que não tinha apenas para mostrar para as pessoas
o que escondia a cabeça de um homem, seu inconsciente trabalhando
desde seu nascimento até aquela derradeira noite.
A pequena sala de
exibição começava a ser preenchida com as pessoas da fila assim
como o que restava de espaço para curiosidade na cabeça das mesmas.
A sala não havia sido alterada, estava escura e com suas luzes
amarelas ainda acesas, com o telão gigante apagado. Alguns olhavam
em volta à procura do diretor, querendo entrevistas ou autógrafos
antes de rodarem o filme. Nada. Realmente queria surpreender a todos
com suas ideias e pensamentos. A sala foi enchendo e as pessoas que
estavam no saguão já estavam acomodadas nas poltronas e as últimas
da fila entravam rapidamente enquanto o lanterninha começava a
fechar as portas da sala.
As luzes se apagaram
gradativamente e, quando se tinha um breu total, o telão acendeu e o
público se calou completamente para apreciar a arte do brasileiro.
Um piano ao fundo tocava suavemente uma música melancólica e
melodiosa e palavras começavam a se formar na tela negra: "As
cenas, ideias e músicas desse projeto foram todos tirados
diretamente de seu diretor e roteirista, Alex Lardonha". As
pessoas leram e novamente olharam para os lados e para a frente,
procurando o ausente cineasta, mas viram apenas Natasha, sua
ajudante, num canto da sala e com um olhar interessadíssimo no
filme. Um barulho de projetor colocando um novo rolo para funcionar
indicou o começo da película. Um bar escondido pela noite foi a
primeira cena e a câmera se aproximava como se fosse o campo visual
de alguém, as esquinas e os becos anexavam viciados e trombadinhas
esquecidos pelo mundo. A câmera entrou no bar de onde se ouvia um
jazz rolando ao fundo. Pessoas bebiam e riem nas mesas, com porções
de batatas indo e vindo e canecas de cerveja por todos os lados
embriagando os clientes. Um homem se aproximou de um palco que havia
perto do balcão e trazia consigo uma pasta verde. Subiu no palco e
abriu a pasta, tirou algumas folhas rabiscadas e amassadas de dentro
da pasta e as vozes dos clientes foram cessando até o silêncio ser
completo. O homem de chapéu começou a ler um poema, um poema pesado
e sujo que instigou os clientes do bar. Ele xingava e eles gritavam
de volta, bêbados e excitados com aquele selvagem na frente. A cena
mudou do nada e agora havia um quarto minúsculo e uma garotinha
chorando, chorava em silêncio e parecia em choque. Tinha sangue na
cama e em seu vestido, a porta do quarto se abriu e a silhueta de um
homem surgiu das sombras. A garota soltou um grito e o homem entrou e
bateu a porta com força. A cena mudou novamente e agora alguns
jovens se divertiam numa mansão, jogando cartas e usando cocaína,
algumas jovens estavam nuas e se esfregavam nos colos dos
almofadinhas. Uma música começou a tocar e eles dançavam e se
divertiam ao som psicodélico que ribombava pelas paredes do casarão.
As pessoas na sala
de cinema não entendiam aquilo que viam, talvez o conceito geral do
filme fosse revelado no final ou algo do tipo. Talvez não fizesse
sentido algum e fossem apenas cenas soltas que Alex filmou por aí e
juntou tudo numa película só para não irem parar no meio do lixo.
Os jovens pararam de
jogar, dançar, transar e se drogar e todos olharam para a câmera,
alguns sem roupa, outros visivelmente alterados pela bebida e outras
drogas. Um canto começou a sair de suas bocas, um canto calmo e
infantil, seus olhos não tinham vida ou brilho algum, pareciam estar
em um transe profundo e aquela música começava a parecer
perturbadora para quem assistia tudo aquilo. Um branco total cegou a
todos na sala por uns segundos e um campo verde surgiu e os pássaros
cantavam nas árvores e no ar. Barulho de gotas no chão eram ouvidos
a cada cinco segundos e o campo verde se transformou numa massa de
cores e nuvens cinzentas, junto com uma trilha sonora caótica que
assustou a todos. Uma senhora se levantou e saiu da sala, um casal
viu e fez o mesmo. Natasha Minsk olhou para os que saiam e sorriu. Um
grito desesperado se misturou aos sons e cores e imagens começaram a
correr pela tela. Um corpo decapitado num quarto, crianças mortas e
despedaçadas na guerra, um senhor com a cabeça estourada no chão
de uma loja. As imagens tornaram-se cada vez mais tenebrosas e
surreais, gritos e risadas eram ouvidos junto com tambores e mais
desafinados. Um rapaz estuprando uma loira e uma mãe abraçando o
filho antes do primeiro dia de aula eram um exemplo da antítese de
imagens que confundiam a cabeça de todos os presentes lá dentro,
que já pareciam cansados daquela coisa:
- Que porra é essa, cara? - gritou alguém no fundo
Comentários
surgiram e risadas do público abafaram as do filme. Uma mulher
vomitou e mais alguns saíram do lugar. O telão brincava com imagens
grotescas e escatológicas e a perturbação generalizada se
espalhava pelo público, que agora tinha menos de quarenta
corajosos.
- Vai tomar no cu essa merda, bicho! - um grupo de jovens se retirou e vaiou.
- Vai tomar no cu essa merda, bicho! - um grupo de jovens se retirou e vaiou.
A bela senhora Minsk
olhava para tudo aquilo com diversão, deixando escapar um riso aqui e
alí, querendo ver a cara de todos quando chegasse ao final do filme.
Entenderiam a obra prima que havia ajudado Alex Lardonha a criar.
Sim, seria memorável. Ouviu as músicas psicodélicas e via as
imagens surreais, coloridas e violentas, quando ouviu o grito de uma
senhora, um grito esganado e desesperado que se sobrepôs aos outros,
tanto os do filme quando a das outras pessoas xingando e gorfando
dentro do pequeno cinema:
- Oh! Minha Nossa Senhora!
Todos olharam para a
velha sentada no canto esquerdo da sala e ela apontava para o teto,
no fundo, aonde o projetor estava posicionado. Os quarenta sujeitos
olharam ao mesmo tempo. Uma sonora e amedrontadora exclamação foi
solta na atmosfera do cinema. A luz que era saia do projetor
atravessava uma cabeça que era vista claramente do buraco, a cabeça
de Alex Lardonha estava aberta como uma alcachofra e a luz passava
pelo seu cérebro exposto, que reproduzia todas as imagens que eram
vistas na tela e causavam horror a quase todos os presentes.
- Ahhhhhh....! - foi a resposta da maioria das garotas à revelação
Uns gritaram, outros
saíram correndo, outros gritaram e saíram correndo, alguns outros
estavam em estado de choque e apenas dois ou três ainda prestavam
atenção ao filme, como que hipnotizados, os que foram tocados pela
ideia do diretor e roteirista.
E enquanto a sala se
esvaziava rapidamente e alguns ligavam para a polícia ou para os
bombeiros, o filme ainda rodava suas cenas, a música parecia mais
alta e assustadora enquanto tudo rodava no telão, sangue, morte,
risos, natureza, jovens subversivos, tudo. Um sorriso enorme se
formou no telão e encarou a todos por um instante. Natasha Minsk
sorriu junto. Depois se evaporou e o telão e os sons desligaram e as
luzes foram acesas. Tudo o que se passa na cabeça de um homem havia
sido revelado para aquelas pessoas.
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