domingo, 16 de setembro de 2012

Cinema branco


 O letreiro em cima do discreto e pequeno prédio brilhava com mais intensidade conforme a noite dava as caras para a cidade mais uma vez. As pessoas começavam a se aglomerar em frente ao cinema e liam aquelas palavras coloridas que diziam:
Espaço de Sá
Essa noite apenas:
"A cabeça de um Homem"
O boca a boca e a curiosidade que um curto teaser na internet acendia nas mentes das pessoas acabaram se mostrando muito mais eficazes do que qualquer trailer ou divulgação para massas. De qualquer forma isso também não era a ideia de seu diretor e roteirista, o cineasta brasileiro Alex Lardonha, que avisou à sua assistente, Natasha Minsk, que daria as caras por lá minutos antes da sessão começar, para evitar entrevistas e comentários que pudessem estragar a novidade e a surpresa do conceito que o Cinema Branco (como havia chamado aquele novo tipo de filme) estava para revelar às cerca de cinquenta pessoas que formavam uma fila na porta e daquele tradicional cinema na zona norte da cidade.
E durante cerca de uma hora houve vida e vozes e vendedores de guloseimas e bebidas naquela esquina. Claro, nos cantos obscuros e apagados pela calada da noite que caía cada vez mais forte, vendedores de entorpecentes ilícitos para os que queriam ter uma visão diferente do que poderia ser aquele novo tipo de filme. Tabaco e maconha perfumavam os arredores e a esquina daquele lugar antigo e cultuado. Bagulhos de fungadas e nóias de pedra completando o quadro daquela noite, como em todas as noites, idosos abraçados e passando despercebidos pela escuridão da rua. Natasha Minsk, secretária e, vez ou outra, amante de Alex, analisava aquela fila e sentia uma grande noite chegando, não de sucesso ou de público, mas uma ideia que ficaria para sempre na cabeça de quem a sentisse, a verdade sobre o que se passa na cabeça de um gênio como Alex Lardonha.
Jornalistas de revistas e blogs alternativos escreviam em cadernos e tablets sobre o que parecia ser o filme e deviam ser a grande maioria presente. Tirando isso, haviam adolescentes metidos a intelectuais e aposentados desocupados que procuravam alguma nova ocupação na velhice. Jovens bebiam umas cervejas no bar em frente, esperando a fila andar, riam e gastavam o que tinham trazido consigo, visto que a entrada seria gratuita e era uma sexta feira.
As portas se abriram e as pessoas foram entrando lentamente no rústico prédio pintado de vinho. O ambiente interno era todo colorido e as cores se misturavam violentamente, como se estivessem brigando por espaço, cores quentes e frias somam-se ao preto e deram um ar assombrado para o lugar. "O cara realmente pensou em tudo" disse um jovem para o amigo. E era verdade, tudo havia sido arrumado para aquela única noite daquele filme estranho e, talvez, inovador. Algumas bandeiras com frases de grandes homens como Freud e Baudelaire, cartazes de filmes antigos que o diretor era fã e que o inspiraram a realizar sua grande obra estavam todos espalhados pelo saguão. Comentários e sussurros eram ouvidos por toda a parte do recinto, enquanto os interessados passeavam pelo saguão e dirigiam-se para a porta 3, no fundo do corredor principal. Conhecidos e próximos de Lardonha pareciam surpresos com o dinheiro que o diretor esquisito provavelmente havia gasto para deixar tudo aquilo daquela forma. Deve ter gastado até o que não tinha apenas para mostrar para as pessoas o que escondia a cabeça de um homem, seu inconsciente trabalhando desde seu nascimento até aquela derradeira noite.
A pequena sala de exibição começava a ser preenchida com as pessoas da fila assim como o que restava de espaço para curiosidade na cabeça das mesmas. A sala não havia sido alterada, estava escura e com suas luzes amarelas ainda acesas, com o telão gigante apagado. Alguns olhavam em volta à procura do diretor, querendo entrevistas ou autógrafos antes de rodarem o filme. Nada. Realmente queria surpreender a todos com suas ideias e pensamentos. A sala foi enchendo e as pessoas que estavam no saguão já estavam acomodadas nas poltronas e as últimas da fila entravam rapidamente enquanto o lanterninha começava a fechar as portas da sala.
As luzes se apagaram gradativamente e, quando se tinha um breu total, o telão acendeu e o público se calou completamente para apreciar a arte do brasileiro. Um piano ao fundo tocava suavemente uma música melancólica e melodiosa e palavras começavam a se formar na tela negra: "As cenas, ideias e músicas desse projeto foram todos tirados diretamente de seu diretor e roteirista, Alex Lardonha". As pessoas leram e novamente olharam para os lados e para a frente, procurando o ausente cineasta, mas viram apenas Natasha, sua ajudante, num canto da sala e com um olhar interessadíssimo no filme. Um barulho de projetor colocando um novo rolo para funcionar indicou o começo da película. Um bar escondido pela noite foi a primeira cena e a câmera se aproximava como se fosse o campo visual de alguém, as esquinas e os becos anexavam viciados e trombadinhas esquecidos pelo mundo. A câmera entrou no bar de onde se ouvia um jazz rolando ao fundo. Pessoas bebiam e riem nas mesas, com porções de batatas indo e vindo e canecas de cerveja por todos os lados embriagando os clientes. Um homem se aproximou de um palco que havia perto do balcão e trazia consigo uma pasta verde. Subiu no palco e abriu a pasta, tirou algumas folhas rabiscadas e amassadas de dentro da pasta e as vozes dos clientes foram cessando até o silêncio ser completo. O homem de chapéu começou a ler um poema, um poema pesado e sujo que instigou os clientes do bar. Ele xingava e eles gritavam de volta, bêbados e excitados com aquele selvagem na frente. A cena mudou do nada e agora havia um quarto minúsculo e uma garotinha chorando, chorava em silêncio e parecia em choque. Tinha sangue na cama e em seu vestido, a porta do quarto se abriu e a silhueta de um homem surgiu das sombras. A garota soltou um grito e o homem entrou e bateu a porta com força. A cena mudou novamente e agora alguns jovens se divertiam numa mansão, jogando cartas e usando cocaína, algumas jovens estavam nuas e se esfregavam nos colos dos almofadinhas. Uma música começou a tocar e eles dançavam e se divertiam ao som psicodélico que ribombava pelas paredes do casarão.
As pessoas na sala de cinema não entendiam aquilo que viam, talvez o conceito geral do filme fosse revelado no final ou algo do tipo. Talvez não fizesse sentido algum e fossem apenas cenas soltas que Alex filmou por aí e juntou tudo numa película só para não irem parar no meio do lixo.
Os jovens pararam de jogar, dançar, transar e se drogar e todos olharam para a câmera, alguns sem roupa, outros visivelmente alterados pela bebida e outras drogas. Um canto começou a sair de suas bocas, um canto calmo e infantil, seus olhos não tinham vida ou brilho algum, pareciam estar em um transe profundo e aquela música começava a parecer perturbadora para quem assistia tudo aquilo. Um branco total cegou a todos na sala por uns segundos e um campo verde surgiu e os pássaros cantavam nas árvores e no ar. Barulho de gotas no chão eram ouvidos a cada cinco segundos e o campo verde se transformou numa massa de cores e nuvens cinzentas, junto com uma trilha sonora caótica que assustou a todos. Uma senhora se levantou e saiu da sala, um casal viu e fez o mesmo. Natasha Minsk olhou para os que saiam e sorriu. Um grito desesperado se misturou aos sons e cores e imagens começaram a correr pela tela. Um corpo decapitado num quarto, crianças mortas e despedaçadas na guerra, um senhor com a cabeça estourada no chão de uma loja. As imagens tornaram-se cada vez mais tenebrosas e surreais, gritos e risadas eram ouvidos junto com tambores e mais desafinados. Um rapaz estuprando uma loira e uma mãe abraçando o filho antes do primeiro dia de aula eram um exemplo da antítese de imagens que confundiam a cabeça de todos os presentes lá dentro, que já pareciam cansados daquela coisa:
  • Que porra é essa, cara? - gritou alguém no fundo
Comentários surgiram e risadas do público abafaram as do filme. Uma mulher vomitou e mais alguns saíram do lugar. O telão brincava com imagens grotescas e escatológicas e a perturbação generalizada se espalhava pelo público, que agora tinha menos de quarenta corajosos.
   - Vai tomar no cu essa merda, bicho! - um grupo de jovens se retirou e vaiou.
A bela senhora Minsk olhava para tudo aquilo com diversão, deixando escapar um riso aqui e alí, querendo ver a cara de todos quando chegasse ao final do filme. Entenderiam a obra prima que havia ajudado Alex Lardonha a criar. Sim, seria memorável. Ouviu as músicas psicodélicas e via as imagens surreais, coloridas e violentas, quando ouviu o grito de uma senhora, um grito esganado e desesperado que se sobrepôs aos outros, tanto os do filme quando a das outras pessoas xingando e gorfando dentro do pequeno cinema:
  • Oh! Minha Nossa Senhora!
Todos olharam para a velha sentada no canto esquerdo da sala e ela apontava para o teto, no fundo, aonde o projetor estava posicionado. Os quarenta sujeitos olharam ao mesmo tempo. Uma sonora e amedrontadora exclamação foi solta na atmosfera do cinema. A luz que era saia do projetor atravessava uma cabeça que era vista claramente do buraco, a cabeça de Alex Lardonha estava aberta como uma alcachofra e a luz passava pelo seu cérebro exposto, que reproduzia todas as imagens que eram vistas na tela e causavam horror a quase todos os presentes.
  • Ahhhhhh....! - foi a resposta da maioria das garotas à revelação
Uns gritaram, outros saíram correndo, outros gritaram e saíram correndo, alguns outros estavam em estado de choque e apenas dois ou três ainda prestavam atenção ao filme, como que hipnotizados, os que foram tocados pela ideia do diretor e roteirista.
E enquanto a sala se esvaziava rapidamente e alguns ligavam para a polícia ou para os bombeiros, o filme ainda rodava suas cenas, a música parecia mais alta e assustadora enquanto tudo rodava no telão, sangue, morte, risos, natureza, jovens subversivos, tudo. Um sorriso enorme se formou no telão e encarou a todos por um instante. Natasha Minsk sorriu junto. Depois se evaporou e o telão e os sons desligaram e as luzes foram acesas. Tudo o que se passa na cabeça de um homem havia sido revelado para aquelas pessoas.

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