segunda-feira, 3 de setembro de 2012

A loja de jóias do tio Irwing.


O Santana preto dava vida novamente à Avenida Blanca, com suas pistas largas e parcialmente vazias no começo do dia, hora em que o velho e afável senhor Irwing e sua mulher abriam sua joalheria ao lado do shopping DoPato. Bruna e Claudio estavam dentro do Santana, ele no volante e ela no passageiro, com os pés em cima do painel, ambos ouvindo umas músicas populares na rádio e passando uma garrafa de whisky barato da mão de um para a do outro. Claudio vestia um terno risca de giz de uma elegância sem igual e, dentro do terno, ao lado de sua costela e em cima do colete de camurça, sua Magnum .44 estava dentro do coldre lateral e o volume era bem visível por fora da roupa, considerando o tamanho daquele trambuco. Bruna olhava para o seu amante após molhar o bico com mais um gole de bebida e seus olhos castanhos se fixaram no rapaz e a luz da manha refletia em seus cabelos loiros e parecia iluminar o carro por dentro. O homem pegou a garrafa da mão de sua parceira, deu uma grande golada e disse:
  • É melhor pegarmos leve com o goró, bebê. Não quero desmaiar no meio da ação, com o velho nos entregando tudo
  • Ou a polícia trocando tiros com a gente – brincou a moça
  • Seu senso de humor é peculiar, amor
  • Eu sei. E você ama isso
O Santana seguia com seu motor barulhento pela avenida previamente ensolarada e o vento que entrava pela janela fazia os cabelos de Bruna voarem e seu vestido branco dançar suavemente por suas pernas esticadas e folgadas no painel. Claudio olhou para a garota sendo tocada pelo vento matinal e não conseguiu esconder um sorriso de admiração para com uma cena tão gloriosa como aquela. Pousou suas mãos na coxa branca exposta da companheira e falou:
  • Você com certeza é muito linda, baby
  • Adoro quando você é assim comigo – sorriu Bruna
  • Assim como, criança?
  • Fofinho – e deu um beijo em seu rosto
Claudio sorriu e deu um beijo nos lábios da mulher. O hálito do casal exalava bebida barata e os dois gostaram disso. Ela abriu o porta lucas e tirou um maço de cigarros lá de dentro, o motorista abriu os olhos:
  • Por que não me alcança um desses cigarrinhos, hein?
  • Esse é o último, merda. Tem dinheiro pra comprar mais aí?
  • Não no momento, gata. Mas logo menos isso muda
Bruna acendeu o cigarro com um fósforo e deu um belo trago seguido de um trago no whisky. Os dois seguiram reto pela avenida, dividindo o tabaco e a bebida e a miséria de suas vidas..
                                                                          ***
Há poucos quilômetros dali, em uma travessa da gigante avenida e logo ao lado do shopping DoPato, o senhor Irwing estacionou seu carro atrás de sua loja e abriu a porta para sua mulher, Ana, como fazia todos os dias desde que saíram da sinagoga e foram para sua nova casa, que já era moradia do casal há mais de cinquenta anos. A velha senhora sorriu para o marido e andaram juntos a porta dos fundos da joalheria. A chave destrancou a fechadura e eles estavam no cômodo dos fundos do estabelecimento:
  • Ana, vai abrindo a porta da frente que eu vou acendendo as luzes do balcão.
  • Depois eu passo um café para nós – sugeriu Ana
  • Sim, sim
A velha senhora foi abrir a porta da frente e o vento entrou e deixou a loja com toda uma nova cara, revitalizando o ar lá dentro. A velha árvore ao lado da velha loja fazia uma sombra vasta e suave e os pássaros que moram lá cantavam como sopranos para o início do dia. Ana puxou o ar da aurora para dentro de seus pulmões, olhou a árvore e os pássaros por mais um tempo e voltou para fazer café para os dois.
                                                                      ***
Bruna e Claudio riam de uma piada na rádio e a garrafa estava na metade, o rapaz acelerava o carro e parecia ansioso para chegar logo na travessa:
  • Amor, acho que já estou bem chumbado. Fica de olho na entrada ou eu me perco nessa reta – disse, começando a arrastar a voz
  • Eu não estou bem também...ALI! A garoto apontou para uma placa que indicava que a o shopping se encontrava há três quilômetros de onde estavam
Claudio olhou para a garota e disse:
  • Maravilha, gata. Seu .22 está aí, certo?
  • Não gosto de usar essa porcaria – lamentou, pegando o revólver que estava no coldre preso a sua coxa
  • Eu também não, bebê. Mas coloca medo neles e nos da a vantagem. O que faria se eu apontasse essa belezinha para a tua boca e te mandasse tirar a roupa? - apalpou seu Magnum por cima do terno e gosto do toque. Gostava daquela arma, na verdade
Bruna não respondeu e deu mais um gole no destilado, que já descia suave por sua garganta. Passou a garrafa para o amante, que deu uma grande golada e sentiu o baque do whisky em seu estômago como uma pedra jogado num lago
  • Blaaaargh..Não sou mais o que antes – reclamou
  • Pega leve com a cachaça. Não vai morrer de cirrose daqui uns cinco anos e me deixar sozinha em Ribeirão Preto com a minha mãe.
  • Relaxe, baby. Já ligou para a sua mãe e avisou que estamos indo pra lá hoje à tarde?
  • Sim. E com os nossos rabos cheios de dinheiro e jóias do velhote – riu a moça
O Santana virou na entrada e já era possível ver o shopping ainda fechado, com seu estacionamento desértico e a diminuta loja de jóias do tio Irwing parada quase que ao lado do grande shopping, no meio de um pequeno comércio que havia do lado de fora do prédio. Claudio diminuiu a velocidade do carro e seu motor parecia fazer menos barulho agora
  • Caramba, essa gente não dorme, não? - disse Bruna, vendo somente a loja de Irwing berta
  • Melhor pra gente. Já sabe o que fazer lá, certo? Me diga o que fará então
  • Ahh, acha que eu sou burra?
  • Prefiro não responder
Bruna bufou e começou a explicar sua parte no assalto:
  • Entramos como um casal partindo para a lua de mel e enrolamos pedindo para ver qualquer porcaria por lá. Você anuncia o assalto e fica no caixa com a arma na cabeça do dono enquanto eu pego o que puder no balcão e na vitrine. Depois corro para o carro e dou a partida. O que achou?
  • Um prodígio mesmo...Merda, estou bem bêbado, eu acho. Tomara que eu não faça merda lá dentro
  • Não fará, amor
Parou o carro quase que em frente à joalheria e ficaram lá por uns minutos, olhando o movimento inexistente daquele lugar numa hora daquelas. Olharam um para o outro e a rádio noticiava o suicídio de um jornalista na guerra que acontecia há muitos léguas deles, desligaram-no e tirou a chave da ignição. O silêncio da manha era quebrado apenas pelo som de animais urbanos e da fraca brisa que entrava pela janela do Santana preto e barulhento. Claudio respirou fundo e perguntou:
  • Pronta?
  • Sim
Não falaram mais nada e abriram as portas ao mesmo tempo, Bruna deu um último gole na garrafa e passou para o rapaz, que deu mais uma bicada e jogou aquele quarto de bebida no banco do carro. Deram uma olhada final em suas armas e seguiram para a porta da frente do estabelecimento, o letreiro de neón escrito "Loja de jóias do tio Irwing" estava apagado e Claudio imaginou como seria chamativo durante a noite.
Dona Ana deixava a água fervendo dentro do bule italiano e foi procurar algumas torradas ou biscoitos da despensa. Enquanto isso, tio Irwing passava um pano rápido no balcão e no caixa e viu um carro estacionando não muito longe de seu negócio, um carro preto. Viu que poderiam ser seus primeiros clientes do dia e ajeitou seu pulôver e seus cabelos brancos, ajeitou a calculadora a caderneta e outros materiais do seu dia a dia na loja. Estavam demorando para entrar e pensou que tivessem ido ao shopping, "Mas está fechado", pensou. Então viu um rapaz jovem e bem vestido se aproximando e uma jovem loura e bela acompanhando-o, de vestido e jeitos meigos. Parecia que estavam celebrando o tempo de suas vidas e pararam naquele insignificante joalheria para gastar um pouco da grana dos pais, sem problemas para Irwing. O rapaz foi guiando a moça pelo braço como um gentleman e entraram na loja com um sorriso certeiro para o velho. O velho sorriu de volta enquanto eles se aproximavam do balcão, e começou seu discurso inicial de bom dia:
  • Bom dia, jovens. No que posso ajuda-los? Procuram uma pulseira de prata ou um brinco de safira? Quem sabe um anel de brilhantes para a sua belíssima companheiro
Claudio sorriu novamente e entrou no seu personagem
  • Bom dia, meu senhor. Estamos dando uma olhada apenas, você sabe...a patroa viu e queria dar uma olhada – olhou para Bruna, que sorriu e foi para um canto próximo à vitrine e ao balcão, lugar estratégico para quando começasse a ação – Huum, quem sabe um colar de pérolas negras para a minha madame, o senhor teria? - murmurou para o vendedor
  • hmmm, pérgolas negras? Lamento dizer que estamos sem aqui. Mas poderia lhe mostrar um de pérolas brancas e puras que sua dama adoraria, senhor. O que acha?
Claudio tentava segurar a manguaça e estava se esforçando muito para não sair arrastando a voz e cambaleando por aí desde a hora em que saiu do carro. Engoliu a saliva e disse:
  • Brancas? Adoraria! Pode traze-los
Tio Irwing não perdeu tempo e foi andando com seu passo de formiga até a vitrine, pegou um molho de chaves e abriu a portinhola, tirou de lá um busco decorado com um incrível colar de pérolas leitosas. O casal assistia a tudo de seus respectivos lugares na loja e trocaram olhares, esperando o momento certo de agir. Bruna só agiria quando Claudio estivesse com a arma na cabeça do velhote, e esperava ansiosamente. Então dona Ana perguntou dos fundos:
  • Irwing, temos clientes?
  • Um jovem casal, querida – sorriu afavelmente para o jovem casal, que sorriu de volta
  • Eles querem café?
  • Vocês aceitariam? - perguntou de volta
Claudio pensou por um momento e não sabia o que responder:
  • Bom, sim...por favor
  • Pode trazer, Ana
O barulo de um armário abrindo e do tilintar de xícaras e colheres era ouvido na loja vazia e silenciosa, vindos da despensa. Claudio olhava para o colar de pérolas na mão do velho e na sua cabeça não haviam colarem de pérolas brancas ou jóias caras para se comprar, em sua cabeça começava a se formar aquele frio que se sentia na barriga, que não lhe era estranho, nem um pouco. Pegou o colar nas mãos e as sentiu suadas e pensou que não conseguiria puxar sua pesada arma do coldre escondido. Olhou novamente para Bruna e viu que ela completamente suspeita naquela cena. Se o velho não percebeu aquilo, ela parada no mesmo lugar, vendo as mesmas jóias sem graça e suando frio, então seria mais fácil do que tinha imaginado. "Eles estão no papo", pensou, e deixou o colar de pérolas escorregar de suas mãos e cair em cima do balcão. O velhote se assustou e olhou para o cliente:
  • Me desculpe, escorregou aqui, haha – disfarçou
Irwing abriu seu sorriso novamente
  • Imagine, senhor. O que achou do colar? Com certeza uma belíssima jóia e sua mulher adoraria um presente como esse – abriu um sorriso maior ainda e sua dentadura parecia estar torta na boca
  • Vou ver com a minha mulher se ela viu alguma coisa que a interessou
  • Oh, sim. Por favor, fiquem à vontade, minha mulher logo trará o cafézinho – disse Irwing – Aliás, belo terno, senhor.
  • Me dá todo o dinheiro do caixa, velhote – o homem puxou a sua Magnum e a segurou com firmeza para sua mão suada não vacilar e jogar tudo pelos ares. Sua cabeça rodava
O velhote arregalou os olhos e ficou olhando para o cano da arma, balbuciando alguma coisa que não dava pra entender. Nisso Bruna já tinha sacado seu .22 e apontou para o velho
  • Vai logo, cara. Vai logo e a gente some rapidinho de sua loja – apressou o rapaz
  • Se...senhor...mas...-gaguejou o assustado vendedor
  • E nem pense em tocar esse alarme, cara, ou seus miolos pintarão os diamantes atrás de você
O velho não falou mais nada e abriu a registradora. Bruna ouviu o barulho da caixa e deu uma pancada no balcão de vidro com a coronha de seu revólver, que estilhaçou tudo em cima dos colares, pulseiras, anéis e brincos e na hora ela esperou um alarme tocar e estragar tudo para os dois. Não tocou. Não tocou e ela tirou um saco de dentro de sua pequena bolsa e enfiou tudo o que podia dentro da sacola, com cuidado para não se cortar com os cacos. O judeu olhava sua loja ser assaltada e entregava as poucas notas que tinha no caixa:
  • É só isso, porra? - Claudio balançou a arma em cima do nariz do senhor
  • Sim, senhor, acabei de abrir aqui e...
  • Irwing, que barulho foi esse aí? - gritou Ana, da cozinha
  • Abra a boca e ela explodirá – ameaçou o assaltante
Irwing fingiu que não escutou sua mulher e continuou a encarar aquela fria arma apontada para o seu nariz,seu dono aparentemente tranquilo e sua companheira limpando os balcões um por um com uma velocidade notável. Ouviu sua mulher vindo dos fundos e se desesperou. Olhou para a arma e para o rapaz e para a cozinha e depois olhou para a garota roubando suas mercadorias. O rapaz virou rapidamente para Bruna e disse:
  • Está tudo pronto aí, baby?
Mas antes que ela pudesse responder, Irwing pesou instintivamente, pensou em sua sobrevivência e na de sua mulher, pensou nos anos em que teve aquela joalheria e em todos os anos em que conseguiram não ser assaltados. Não sabia como isso tinha acontecido. Mas não sabia também como reagir a uma Magnum daquele tamanho apontada em direção ao seu rosto. Apertou o pequeno botão vermelho embaixo da mesa e o alarme soou como num Corpo de Bombeiros, fazendo as aves voarem na árvore ao lado e ensurdecendo todos dentro da loja. Claudio e Bruna deram um pulo e não sabiam o que fazer também. O rapaz engatilhou aquele seu revólver gigante e apontou-o com mais raiva para o vendedor, tentando disfarçar seu nervosismo extremo:
  • Que merda você fez, cara? Tá louco?
Irwing olhou para a arma e tentou falar alguma coisa, mas ficou só na tentativa, porque o pesado revólver cuspiu uma bola de fogo e a cabeça do velho foi despedaça pela metade num piscar de olhos, espirrando sangue, miolos e pequenos pedaços de crânio pelo balcão, paredes, colar de pérolas brancas e no rosto de dona Ana, que voltava da cozinha com o bule italiano de café fumegante nas mãos, em cima de uma bandeja com quatro xícaras e uns biscoitos doces. A velha ficou parada estática e Claudio e Bruna olharam para aquela cena em silêncio, sem falar nem uma palavra ou reproduzir qualquer som, e por alguns segundos apenas o som do alarme e, em seguida, do baque que o corpo de Irwing fez quando caiu no chão foram ouvidos. A ficha de Ana caiu logo depois disso e ela começou a gritar e gritar e gritar como um bebê cagado e esfomeado
  • Meu Deus....meu......o que eu fiz? - disse Claudio, olhando para todo o sangue pela loja
  • Vamos embora daqui! RÁPIDO! - gritou Bruna
Claudio pegou o saco com o pouco dinheiro que havia no caixa e olhou para a velha ensanguentada e suja com pedaços de seu marido pelo rosto e em suas roupas e disse, sentindo seu estômago se revirar e sua cabeça rodar como uma roda gigante descontrolada:
  • Me desculpe
Saiu correndo em direção à porta e devia estar realmente muito bêbado, porque passou reto pela vitrine, que se despedaçou no ar e o homem caiu no chão, em cima do vidro, seu rosto automaticamente cheio de cacos, seu terno cravejado com pequenos pedaços da porta de vidro fechada que ele não tinha visto. Tentou se levantar, sentindo o sangue quente escorrendo de algum lugar, mas nervoso demais para ver onde era no momento. Vomitou. Vomitou por cima do vidro e do chão e do seu terno, aquela cabeça estourada havia terminado de ferrar seu organismo alcoolizado e nem viu quando Ana se aproximava dele com o bule e a bandeja nas mãos, ainda em estado de choque, e despejou todo o líquido negro e fumegante em seu rosto. Claudio urrou com a dor de seus tecidos se derretendo com aquela água fervente e ouviu Bruna gritando de dentro do Santana e dando partida no motor. Mas a dor era excruciante demais para conseguir fazer qualquer coisa. Uma dor que logo passou, porque agora dona Ana espancava-o com o bule italiano de ferro ainda quente e vazio em sua cabeça com uma força que não devia ser de seu corpo, e gritava novamente, desesperada, xingando-o e amaldiçoando-o em alemão enqanto o crânio do rapaz se abria lentamente no chão da loja de jóias, em cima dos vidros, do vômito, do saco de dinheiro que havia tentado roubar:
  • Meu Irwing! Meu! Você! Monstro! Monstro! - esperneava e batia com toda a força
Claudio dava pequenos gemidos, já fraco, e sabia que seu rosto estava se desfigurando e que a velha não pararia até vê-lo morto. Teria desistido de tudo se não tivesse sentido sua fiel Magnum.44 descansando no coldre embaixo de seu terno cravejado de vidro. Puxou a arma e a engatilhou com a última das forças que tinha e puxou o gatilho mirando no que achava ser o vulto da velha. A pancadaria parou e um corpo voou pela loja. O café e o vidro se misturavam ao sangue, aos miolos, pedaços de crânio e vômito de Claudio. Ouviu o Santana se afastar, levando sua garota para Ribeirão Preto. Ouviu o alarme soar e os pássaros voltando para a árvore e a velha se debatendo no piso. Depois não ouviu mais nada.

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