Lisérgico
rio
I
Os insetos estavam
nos comendo vivos há alguns meses já quando o verão chegou no seu
auge, com suas chuvas ininterruptas e a vontade de botarmos fogo em
nossos corpos para nos livrarmos dos malditos mosquitos e de suas
doenças nojentas. Na época nenhum de nós fazia mais ideia do tempo
que estávamos fazendo naquela selva fechada, tendo que lidar com
macacos pulguentos e tigres famintos camuflados pelo verde. Japas
mesmo não lembro de ter visto mais do que meia dúzia.
A essa altura nosso
pelotão contava com eu e mais cinco homens: o cabo Pablo Valdéz,
filho de imigrantes mexicanos e um tanto quanto quieto, parecia ser
um cara legal e acho que queria realmente fazer carreira no exército;
o explosivo soldado August Bruce, que dentre nós era um dos que
menos fazia questão de estar no meio de toda aquela merda
ensolarada, pincelada com picadas dolorosas e condições higiênicas
deploráveis; o jornalista enviado por alguma revista, nunca soube
qual, Ian Goldberg, um sujeito que devia ser do norte, reclamando
sempre do calor absurdo que fazia na selva dia e noite a fio, também
era bem na sua e acho que nunca tinha dado um tiro mirando em um alvo
móvel. Ficava apenas no canto, no final do dia, escrevendo sobre o
que estava vivendo em seu diário e rabiscando algumas palavras para
mandar para o suposto jornal assim que tivesse alguma chance; havia
também o sargento Eric von Demark, um gordo sulista que, por alguma
sorte ou estranha vontade do universo, ainda estava vivo, e isso
impressionava a todos nós. Não parecia dar a mínima para nada
naquele lugar, era mais um louco do que um soldado, atirava em tudo
que se movia no front e já havia sido acusado de assassinato. No
meio de uma guerra. Estranhamente o julgamento não deu em nada e ele
foi absolvido de tudo e estava livre para praticar sua insanidade
naquele país esquecido por Deus; e comandando nós cinco estava o
tenente Gerald Gomes, o mais velho entre nós, mesmo sendo bem novo,
filho de pai português e teimoso como devia ser, era um sujeito
extremamente inteligente e simpático, talvez simpático até demais
para um tenente do exército. Estava sempre comentando e explicando
alguma coisa nova para algum ouvinte atento ou desatento, era uma
máquina de falar e ainda me perguntava como a sua voz e paixão por
uma conversa nunca haviam entregado a sua posição para o inimigo.
Os cinco e eu
formávamos um grupo de jovens em sua grande parte de saco cheio de
tudo aquilo, de saco cheio dos interesses de nossa nação e do amor
à pátria. Queríamos apenas viver o auge de nossos vinte e tantos
anos fora daquele lugar e com uma garota nos braços para não ficar
sozinho demais nas noites frias. Mas ainda estávamos presos um ao
outro naquela cela infinitamente verde, com mosquitos picando até
dentro de nossas bundas e o constante medo dos chinas aparecerem e
rasgarem nossa carne com seus fuzis soviéticos de grande potência.
Isso sem contar as chuvas que já nem faziam mais diferença para
nós, tamanho a frequência. A única coisa que nos fazia lembrar dela
eram nossos pés no final do dia, quando tirávamos nossas botas e
era possível vomitar apenas de sentir o cheiro ou dar uma olhadela
para o seu dedão.
Estávamos em uma
base próxima a um rio largo e muito usado pelo nativos de lá, não
sabia se aquilo era um bom lugar ou se era o pior dos esconderijos,
só pensava em sair de lá logo, mesmo que fosse para tomar um tiro
no estômago e sangrar no meio da floresta, com macacos e outros
animais disputando quem fica com a maior parte do meu traseiro. Os
outros cinco pensavam da mesma forma e todas as noites discutíamos os
lugares que poderíamos ir, enquanto bebíamos algumas garrafas de
cerveja ou goladas de vinho para poder aguentar aquilo:
- Essa merda! Esse lugar, cara, não aguento mais um dia nessa merda – reclamou Eric, o gordo
- Toda dia é a mesma coisa aqui: acorda, passa a porra do dia fazendo tudo o que esses superiores do caralho mandam e ainda tem que comer aquela gororoba e fazer cara de que gostou – August parecia bem nervoso, como era costume àquela hora da noite, depois de um pouco de alcoól
- Pelo menos tem cervejinha e umas garrafas de vinho, senão eu ia ter que explodir essa porra toda pelos ares, meu velho – disse o sargento, acendendo um de seus charutos de origem duvidosa e dando uma notória bicada em sua cerveja, deixando-a pela metade.
- Concordo. Me alcança uma cerveja aí, Eric.
- Senhor ou sargento para você, soldado.
- Vai tomar no seu cu, morro antes de te chamar de senhor – disse alterado o soldado
- Soldado, eu te dou uma chance para retirar o que disse. Vamos, estou esperando – disse o gordo sargento em tom ameaçador e levantando de sua cadeira, deixando cair cinzas de charuto e garrafas vazias para todos os lados
- Vem retirar
- Ok.
Eric pulou na
garganta de August e os dois começaram a se socar sumariamente, sem
parar um segundo, parecendo dois cães loucos brigando pelo último
pedaço de osso com um teco de carne no canto. Se jogavam de um lado
para o outro, tentando alcançar qualquer membro do outro para poder
inutiliza-lo com um golpe certeiro, mas ambos estavam bêbados demais
para lutar e já se ouvia os dois rindo entre um soco na boca e
outro:
- Ok, rapazes, chega de brincar de lutinha. Vão dormir porque amanha é dia – disse o tenente Gerald, com seu ar zombeteiro e um leve riso nos lábios, estava segurando uma pequena caneca de café, como era seu costume depois da janta.
- Dia do que? Lamber as botas do major ou bater uma punhetinha pro coronel? A única coisa útil que há para se fazer nesse lugar é brigar e beber até desmaiar, para que o dia acabe logo e meu serviço aqui também – Ian havia levantado de sua cama, estava escrevendo há horas e todos já haviam esquecido completamente de sua presença no quarto
- Não, meu jovem, não. Amanha sairemos para o front, para o mano a mano. Amanha vocês virarão homens, meus caros amigos – sorriu o tenente para todos nós, um sorriso que parecia se abrir pelo quarto inteiro
- Eu simplesmente não acredito nisso. Estamos aqui há tanto tempo que nem sei como pode ser um mundo lá fora – falou Pablo, com seu sotaque mais acentuado ainda por causa de seu sono recém interrompido
- Podem acreditar, jovens – Gerald abriu um sorriso maior ainda
- Quais são as ordens? - perguntei tendo uma mistura de medo e ansiosidade extremos, finalmente o que mais queria nas últimas semanas iria acontecer, mais do que voltar para casa ou para minha vida. Queria sair naquela selva e atirar em todos os filhos da puta que entrassem no meu caminho
Então nós seis
sentamos ao redor da mesa e o tenente explicou qual era a missão
para nós. Acho que uns agentes do inimigo estavam se infiltrando e
passando informações para a Inteligência daqueles macacos. Eram
uns quatro caras e uma garota e os cinco deviam ser capturados o
quanto antes, de preferência ainda respirando para que os manda
chuvas lá em cima pudessem interroga-los e tortura-los à vontade
depois. Havia muitos detalhes e nomes e tenho certeza que não fui o
único que não prestou atenção alguma ao resto das informações,
com certeza as ouviríamos toda hora no caminho rio acima e, naquele
momento, todos nós estávamos mais interessados em arrumar logo
nossas coisas e sair daquela base maldita que comia nossas almas
garfada por garfada, dia após dia, picada após picada.
Fomos dormir, ou ao
menos tentamos, uma hora e meia mais tarde, quando já estávamos por
dentro de tudo o que conseguimos entender da tarefa que Gerald nos
passou. Tchaikovsky martelava na minha cabeça um tanto quanto ébria
e eu cantarolava alguma de suas obras bem baixo, esperando o sono
chegar e me levar para algum lugar diferente daquele cubículo
abafado e fedido, com mais cinco homens ansiosos e loucos para ir
para qualquer lugar. Não conseguia dormir e tinha certeza que mais
alguém lá dentro estava na mesma situação:
- Pablo, dormiu? - perguntei
- Ainda não, tá tudo rodando demais pra eu conseguir dormir – ele havia matado um engradado de cerveja em minutos enquanto ouvia as ordens do tenente
- O que acha que vai ser dessa coisa aí de trazer esses caras vivos pro generais?
- Cabeluda!
- É, eu também
- Eu só quero saber de sair daqui o quanto antes e trocar chumbada com esses selvagens vermelhos – disse Eric com a voz arrastada, do fundo de sua cama
Eric von Demark
parecia não ligar muito em morrer ou viver naquele chiqueiro, assim
como o resto de nós, na verdade. Talvez ele tivesse enlouquecido
depois de passar por umas poucas e boas no meio da selva fechada e
traiçoeira, talvez tivesse visto seu pai matar sua família inteira,
talvez tivesse sido violentado pelo seu tio quando era mais novo e o
trauma virou insanidade quando envelheceu. Era um verdadeiro louco,
sempre fazendo piadas racistas com o exército inimigo, nunca havia
feito um prisioneiro, matava a todos que se rendiam, isso quando não
os torturava por alguns minutos, abrindo um sorriso largo e
amedrontador como o de um palhaço assassino. Estava toda hora
irritando Pablo com seus comentários anti mexicano, mas no fundo se
davam bem. Se você não fosse um inimigo de Eric von Demark, ele
seria legal e até te ajudaria bastante, apesar de parecer um
demente.
- Amanha finalmente vamos VIVER um pouco, caras! Hahaha é – disse dando mais de seus risos de palhaço e calou a boca, provavelmente estava desmaiado por causa da cachaçada que havia tomado.
- Não me vá fazer alguma merda que nos custe a vida, seu gordo – avisou Pablo, mas Eric já não respondia
- Me ouviu? Hein?
- Vai tomar no cu, mexicano sujo do caralho – disse o sargento com a cara enfiada no travesseiro
- Crianças, chega de algazarra por hoje – riu Ian, e essas foram as últimas palavras daquela noite, na nossa última noite naquela base.
II
Acordamos bem no
começo da manha, com helicópteros pousando a poucos metros de
nossas cabeças, todos nós com uma ressaca braba de cerveja e vinho
e nem um pouco dispostos a sair rio acima em busca de cinco
arrombados que estavam prestes a se dar muito mal naquela guerra.
Saímos para comer e
o dia estava realmente bonito, com o sol laranja nascendo no leste e
tingindo todas as nuvens e homens que passavam correndo de lá pra
cá, obedecendo ordens que ninguém queria obedecer e tentando se
manter vivos e sãos entre uma guerra e outra. O único entre nós
que estava se sentindo bem e saudável para um pouco de ação era o
tenente Gomes, que não bebia praticamente nada, apenas fumava uns
baseados conosco quando tinha um tempo livre e era um verdadeiro
jogador de poker. Ninguém o vencia naquilo, nem mesmo August ou
Eric.
Durante um desjejum
que não me desceu nem um pouco bem devido ao estrago que a noite
anterior causara no meu estômago, conversávamos assuntos
aleatórios, jogávamos um pouco de cartas e passávamos o jornal do
exército de mãos em mãos para ler alguma coisa interessante. Não
havia nada, mas um dos recrutas estava contando uma história um
tanto quanto curiosa que tinha escutado "sem querer" na
noite anterior, enquanto arrumava uma papelada na sala do general da
base: Aparentemente um comandante do alto escalão tinha perdido a
cabeça e começado a agir por conta própria, montando um exército
formado por nativos, comunistas, americanos e quem mais fosse louco o
suficiente para se embrenhar rio acima com um bando de selvagens,
estupradores e comedores de criancinhas. O cara havia perdido o
equilíbrio e iam mandar alguém para colocar as coisas em ordem
novamente. Algum cara que também seria louco o suficiente para
aceitar um tipo de missão daquelas, rio acima, no antro de toda
aquela loucura e psicodelia natural que era aquele país
- Ei, isso aí não é mais ou menos perto de onde a gente desce, tenente? - perguntei
- Não, nós paramos um pouco mais abaixo da fronteira. Esse sujeito vai ter que procurar esse comandante no Camboja, provavelmente. Isso se o que o recruta aí falou for verdade.
- Seja lá quem for subir esse rio até a fronteira, vai passar por uns maus bocados – disse Pablo
- O cara conseguiu criar um exército só dele? Esse é o espírito – o jornalista Goldberg se deliciava com dois pedaços enormes de bacon na boca e um belo naco de ovo frito na garfada seguinte.
Terminamos de comer
alguns minutos mais tarde e nos retiramos para o alojamento, para
preparar nossas coisas e nos despedirmos de um ou outro que havíamos
feito amizade durante os meses que ficamos na base.
Já se passavam das
nove horas quando fechamos a porta do abafado quarto que serviu de
casa por muito mais tempo do que qualquer um de nós queria. Mesmo
sabendo que provavelmente a coisa ficaria feia para o nosso lado mais
cedo ou mais tarde naquela selva, todos demonstravam alívio e
ansiedade em seus olhares, todos os seis rapazes tentando imaginar o
que haveria lá fora, no meio do mato, com mais mosquitos e doenças
do que já tínhamos visto até então, com os japas nos espreitando e
esperando um movimento em falso para detonar a todos.
O helicóptero nos
esperava com seus motores ligados e seu piloto já impaciente. Um
grupo de jovens, que não deviam passar dos dezoito anos cada, nos
acompanharia até um barco perto do delta do rio e depois seguiriam
seu rumo, fosse ele a glória ou a morte certa; e pelo olhar de medo
da maioria desses jovens a glória estava muito longe de toca-los.
Decolamos poucos minutos mais tarde, sem trocar muitas palavras entre
nós e nem os garotos de menos de dezoito anos falavam entre eles,
era óbvio que todos estavam tentando imaginar o futuro nos próximos
dois ou três dias, talvez o futuro daqui algumas semanas, se
estariam ali ou numa vala, com vermes comendo o que sobrou do rosto
explodido por uma Claymore que estava se escondendo embaixo de uns
arbustos ou do projétil certeiro que varou sua cabeça, deixando um
buraco perfeito na entrada, e na saída um buraco que caberia o punho
de um cara de dois metros de altura. O céu estava lindo, sem nuvens,
sem chuva por perto, as plantações de arroz se prolongavam por todo
rio que se via, com seus nativos vivendo suas pequenas vidas, com
suas pequenas famílias, tentando fugir de um ventilador espalhador
de grandes quantidades de merda mole e assassina. Ignoravam os
helicópteros e os xingamentos que Eric berrava para eles, parecendo
que realmente os odiava com toda sua fúria, urrava xingamentos em
alguma língua européia que devia ter aprendido com seus pais ou sua
avó. Alguns rapazes riam de seus palavrões, outros estavam absortos
em sua mente, tentando decifrar o que aconteceria daqui a pouco, ou
lembrando da torta de limão que a tia fazia aos domingos e no
aniversário. Lembrando de coisas que já são impossíveis nesse
lugar. De pessoas que nunca imaginariam estar vendo o Sol nascer à
bordo de um helicóptero, com um fuzil na mão e granadas por todo o
corpo, carregando consigo pequenos aparelhos de destruição em
massa.
De repente, um
rajada amarela sai da metralhadora presa ao helicóptero, operada
pelo sargento Eric von Demark, que ainda gritava e tentava assustar
os civis agricultores, que agora saiam correndo como filhotes de gato
quando se da um pisão no chão.
- Mas que porra é essa, sargento? - indagou o tenente Gerald, com uma rara raiva em seu olhar
- Você está louco, cara? Quer matar os civis pra que? Não te fizeram porra nenhuma. Sem falar que você ia se foder se... - começou Goldberg
- Relaxem, meus queridos. Eu não vou acerta-los. É apenas para se divertir um pouco, sabem?Um sustinho para sentirem a vida realmente! Hahaha! Pensam que eu sou um louco de fazer isso? - retrucou o sargento, com a maior tranquilidade do mundo em sua voz, cortando o jornalista antes que aquela discussão continuasse por mais algum segundo.
Ninguém falou mais
nada, mas todos sabiam que o sargento era sim louco o suficiente de
atirar nos civis para matar e, se alguém tivesse dado corda, ele
certamente o teria feito. Mas enquanto tivesse alguém para
segura-lo, haveria um pouco mais de ordem. Mesmo naquela bagunça
toda de conflito.
III
No final daquela
manha, depois de comermos algumas rações enlatadas e nos
despedirmos dos jovens que nos acompanhavam no helicóptero, já
estávamos no meio da selva fechada, rodeado de árvores que deviam
ter os mais diferentes tipos de animais, plantas, insetos e mais
insetos. E se tinha uma coisa que o soldado August Bruce mais
abominava no mundo, eram insetos. De qualquer tipo
- Porra, cara, eu não acredito que eu tô aqui no meio desta MERDA! Não aguento mais mosquito em cima de mim! Odeio esses filhinhos da puta chupadores de sangue! EU TENHO DOENÇA , SEUS PUTOS! - resmungava coisas do tipo de cinco em cinco minutos, por mais de algumas horas de caminhada até pararmos em algum lugar para descansar, mesmo contra a vontade imediata do tenente Gerald.
- Chega, tô cansado – o jornalista parou e largou sua mochila e o fuzil no chão
- Tem alguma coisa pra mastigar aí? Voto pra gente ficar aqui um tempo e depois continuarmos, tô bem cansado também - o cabo Valdéz já tinha toda sua farda verde marcada pelo suor das axilas e suas costas estavam encharcadas na parte onde sua mochila encostava.
- Ok, ok. Vamos parar aqui por uma hora ou duas, comemos algo, damos uma cagada ali no mato e continuamos até chegarmos no ponto combinado – disse Gerald, que na verdade parecia bem feliz em dar uma descansada também. A verdade é que o tenente sempre acabava fazendo o que o resto de nós queria, porque na verdade também era um vagabundo enrustido. Tinha apenas aquele seu jeito de certinho, mas no fundo compartilhava da vadiagem de todos nós, e sabia que aquele conflito inteiro não tinha sentido algum. Mas ainda assim tinha que fazer o seu trabalho e seguir suas ordens.
- Quem está nos esperando nesse tal ponto? - perguntou o cabo
- Bom, me falaram que haveria um cara que pilotaria o barco. Mas não sei seu nome ou se haverá mais gente com ele.
- Tomara que não, não temos tanto assim para dividir com toda a galera – gritou August Bruce de trás de uma árvore, aonde se aliviava um pouco
- Dividir o que, soldado? - perguntou o gordo sargento, com um sorriso bobo no rosto, já sabendo qual era a resposta do subordinado
- Um pouco do meu Napalm pessoal - e como numa mágica, e até hoje não sei explicar de onde surgiu aquilo, o soldado se virou da árvore e em sua mão havia um vistoso charuto de maconha.
- Haha! É, caras, nada como usar a natureza no meio da natureza – comemorou o sargento
Nos sentamos em um
círculo e o soldado acendeu seu charuto. Conversávamos sobre nossas
casas, os estudos abandonados para estar aqui, garotas que tivemos e
que não tivemos, fumamos, comemos, cagamos, rimos, lutamos, gritamos
e fumamos mais um pouco. E depois conversamos mais e depois rimos
mais e parecia que estávamos de volta em nossas cidades, com nossos
amigos, conversando sobre qualquer coisa banal que parecesse
interessante naquele lugar igualmente banal. E quando demos conta do
tempo, o pôr do sol já se mostrava lindo e vermelho, boiando
levemente por entre as árvores perfeitas daquele lugar que não
saibamos mais se era uma prisão ou o nosso paraíso próprio.
- Pois é, acho que teremos que ficar por aqui essa noite. Hehe – comentou Goldberg
- Não. Vamos partir dentro de quinze minutos. Arrumem suas coisas rápido que não quero atrasar mais do que já estou atrasado – disse o tenente, claramente preocupado com o que pensariam dele se o vissem fumando maconha com seus homens, enquanto a ameaça comunista crescia e ganhava forças do lado inimigo
- Ah, já atrasamos tudo o que tinha para atrasar mesmo. Vamos ficar logo aqui essa noite e amanha de manha, bem de manha mesmo, nós saímos – falou Pablo Valdéz, resumindo o que todos queriam falar
- Não, não. Vocês pensam que isso aqui é o que? A escola de vocês? Chega atrasado a hora que quer, fumando o dia inteiro sem nada de ruim acontecendo? Isso aqui é guerra, meus homens. Vão arrumando suas coisas que a gente vai embora agora! JÁ!
- Eu não vou – disse o sargento
- É, andar quilômetros em busca de um barco pra sair por aí e levar tiro desses vermelhos não era exatamente o que eu tinha em mente pra esse final de tarde – August já se encontrava deitado em seu saco de dormir, com um cigarro em sua boca e uma pilha de lenha para uma fogueira ao seu lado
- Como porras você conseguiu essa lenha? Do nada? - perguntei
- Truques. Vamos ficar então?
- Vão à merda todos vocês. Todos vocês – desistiu o submisso tenente
Todos pareciam
felizes agora, e acendemos mais um baseado mais tarde, quando o Sol
já tinha ido embora e uma Lua gigantesca aparecia no céu,
iluminando nossas cabeças e nossas almas, e nossas áureas não
pareciam tão sujas ou destruídas. Parecia que havia esperança para
todos nós, de alguma forma ou de outra
- Ei, Pablo, aposto que eu arrebentaria a sua BOCA! - disse para o cabo
- Eu não acredito muito nisso, cara – riu
- O que você acha, Ian? Seria algo interessante para se escrever, não? "O dia que quebraram a cara do cabo"
- Certamente – e Ian realmente pegou seu caderno e começou a anotar algo que não pude ver o que era, pois Pablo Valdéz já se levantava e se preparava para uma luta comigo
- Cinco minutos sem perder a amizade, meu velho – ele se preparava para a pancadaria
- Pode vir!
Fomos um para cima
do outro e socávamos o que conseguíamos acertar. O cabo tinha muito
mais experiência do que eu em lutas, havia estudado uma ou outra
anos atrás. Eu não havia lutado nada, nunca, apenas gostava de
socar umas caras de vez em quando. Mesmo que isso significasse que me
batessem o dobro depois. Trocamos alguns socos e ouvíamos os gritos
ensandecidos do sargento, enaltecendo a minha ausente força e
habilidade e tentando degradar a reputação do cabo.
- QUEBRA A CARA DESSE MEXICANO SUJO, CARA! DERRUBA ELE NESSA MERDA, CARALHO! - gritava como um pai gritava para o filho durante sua luta de judô na escola
- Aposto dois maços de cigarro no cabo – disse Gerald
- Apostado! - sorriu August Bruce
Nesse meio tempo,
Ian Goldberg rabiscava alguma coisa em seu caderno, mas não pareciam
palavras. E era impossível se controlar com toda aquela bagunça de
punhos voando e caídas no meio do mato úmido:
- Vale chute? - perguntou o cabo, já com falta de ar
- Ah, você sabe lutar, eu não sei dar chute.
- Vale ou não vale?
- VALE! - gritou o sargento, empolgado demais para torcer pra qualquer um dos dois
E de repente senti
um impacto violento no meu peito, como se um búfalo tivesse dado uma
cabeçada em mim, senti meus pés saindo do chão por alguns
instantes e depois o chão duro como pedra na minha bunda. Foi tudo
tão rápido que caí sem expressão nenhuma no rosto, não tinha
percebido o que havia acontecido até ver todos rindo, o tenente
Gerald passando dois maços de cigarros para o soldado e o sargento
sulista caído no chão, tendo um épico ataque de gargalhadas com
aquela cena incrível
- Essa foi uma das melhores cenas de todos os tempos, rapazes – comentou o jornalista, que ainda fazia seus rabiscos e ria da minha cara, junto com todos os outros
- Boa luta, meu velho – disse Valdéz, me ajudando a levantar
- Hahaha, boa! - comentei, limpando a marca de sua bota da minha camisa – Bom, amigos, vou dar uma cagada lá atrás daquela árvore alí e depois irei dormir porque isso me cansou pra caralho.
- Bem pensado. Vão todos dormir porque amanha sairemos antes do Sol nascer. E, por favor, me obedeçam pelo menos dessa vez – implorou Gomes
- Ok, ok, ok. Já estava bem cansado mesmo, esses baseados e essa luta me cansaram – disse o sargento, antes de dar um bocejo longo e sonolento
- Você não lutou nada, Eric – lembrou Ian
- Vai pra merda, seu judeu. E belo chute, escurinho, se tivéssemos mais duzentos mil caras com sua força nas pernas, nem precisaríamos carregar esses fuzis pra cima e pra baixo
- E aí onde ficaria a graça de estourar a cabeça de alguém com uma bala?
- Bem lembrado, meu amigo, bem lembrado. Boa noite.
- Boa noite
- Até.
- Vão se foder.
- Amanha a gente acorda antes do Sol nascer, entendidos?
Ninguém mais
respondeu. E se respondessem o tenente iria dormir de mal humor.
Então apenas ficamos quietos e tentamos dormir, ainda trocamos
algumas palavras e umas piadas antes do sono coletivo chegar, mas
nada de interessante ou que valha a pena lembrar. Mas nós com
certeza não acordamos antes do Sol.
IV
A manha veio tão
depressa quanto a nossa vontade de nunca mais sair daquele lugar.
Todos pareciam exaustos e não estavam nem um pouco dispostos a
arrumar suas coisas às 5:00am, quando nem os pássaros estavam
acordados ainda, nem os tigres ou os peixes. Merda, nem os chinas
deviam estar acordados numa hora daquelas, e olha que eu realmente
duvido que esses caras soubessem o que é ter uma noite de sono em
uma cama quente, estavam prontos para qualquer uma a qualquer hora,
queriam detonar nossas almas, queriam o país deles livres de nossas
caras estranhas e preconceituosas. Queriam o país deles de volta.
Para nós não fazia diferença o que eles queriam, não fazia
diferença se estávamos lá ou em algum outro país pobre e
subdesenvolvido, apenas estávamos lá, e não queríamos estar, ou
no fundo queríamos. Mas ninguém falava muito sobre isso, apenas
fazíamos o que nos era mandado fazer, menos o que o tenente falava,
claro:
- Por que não levantaram ainda, cazzo? - perguntou o nosso comandante Gerald Gomes, com suas coisas já arrumadas e se preparando para partir
- Senhor, aconselho que o senhor relaxe um pouco e aproveite o Sol nascendo belo e amarelo por entre as árvores e... - começou Ian
- Se começar com poesia você vai pra corte marcial.
- Foda-se então.
O sargento, o
soldado e eu estávamos entorpecidos por nossos sonhos ainda, não
conseguíamos sair da cama nem aos chutes. Pablo Valdéz tentava nos
estimular.
- Bando de inúteis, vem pra cá pra fazer merda nenhuma
- É complicado, brother, esse sono te pega como uma ninfomaníaca – falei sem nem saber o que falava
- Levanta logo, cara, o tenente vai começar a falar um monte e eu não quero ficar ouvindo de graça. Sargento, o senhor poderia, por favor, levantar o seu RABO GIGANTE?! - gritou, acordando o sargento com um pulo, provavelmente tirando-o de um sono ou de um pesadelo terrível
- A próxima vez...você me acordar assim...morte. - disse quase sussurando e com seus olhos fechados por ramelas amarelas e gigantes, parecendo mais um zumbi apodrecido do que um militar de carreira.
Ian Goldberg já se
aprontava, pegava suas coisas, seus papéis, revistas, objetos de
trabalho e tudo o que tinha. Lembrando um vendedor ambulante tentando
ganhar a vida no meio do mato. Cantarolava canções que só ele
conhecia ou que só ele lembrava que existiam enquanto fazia suas
coisas e dava uma urinada longa e amarela na grama:
- Eu não aguento mais ficar um minuto aqui, vamos logo pra esse barco – disse
- Você acha que a gente vai chegar nesse lugar ainda essa manha? - perguntei para Eric
- Se depender da nossa vontade no momento eu acho improvável. Mas vamos logo, também já enchi o saco desse lugar, quero andar um pouco e ver se consigo acertar uns macacos nas árvores.
- Achei que você gostasse dos animais...
- Eu gosto. Me referia aos japas mesmo. -disse dando o seu primeiro sorriso maluco do dia e depois de mais cinco minutos de enrolação, partimos. Cada um em seu ritmo, acordando aos poucos para aquele dia que simplesmente não fazíamos ideia do que poderia acontecer no próximo minuto.
Já andávamos
depressa, ouvindo Gomes nos apressando de tempos em tempos, dizendo
que estávamos preguiçosos e que não havíamos nascido para um
conflito entre humanos. Ninguém dava muita atenção ao que ele
falava, já estávamos andando para o barco e já era muito mais do
que ele poderia esperar de todos nós. O sargento ia atrás de nós,
ao lado do cabo Valdéz, conversando sobre alguma filosofia furada
que deviam ter inventado na noite passada, enquanto fumavam e
viajavam em pensamentos leves e rápidos. Pareciam bem empolgados e
riam um do outro de vez em quando, se xingando e xingando aos outros
que estavam e os que não estavam ali também. O jornalista Goldberg
estava logo à frente, ao lado de August, vira e mexe trocavam
algumas palavras, mas na maior parte do tempo ele parecia estar se
concentrando em algo, em alguma reflexão própria, ou mais alguma
filosofia barata. Tanto que se juntou aos outros dois malditos
minutos depois, saindo de formação enquanto o comandante do pelotão
não olhava e, mesmo se olhasse, não mudaria nada.
O dia já se
mostrava por completo quando avistamos fumaça vindo do oeste. Uma
fumaça preta e amedrontadora, dando a certeza na cabeça de todos de
que alguma coisa não estava muito certa por aqueles lados. Talvez um
ataque surpresa dos nativos em cima de algum acampamento improvisado
na noite anterior, talvez o Sol de verão tivesse incendiado um pouco
de mato seco e o fogo não fosse nada. Talvez fosse napalm e a essa
altura quem estivesse por lá já haveria carbonizado até o último
resquício de sua alma, sendo inútil nossa ida até lá:
- Devemos ir até lá, tenente? - perguntou Goldberg
- Seria bom irmos, mas é muito fora do nosso caminho, não sei se podemos nos dar ao luxo de ir até lá para voltarmos – esclareceu o comandante, com um notável dilema em sua voz
- Não é nossa missão, tenente. - interrompeu o sargento do sul - E aposto que não tem mais nada por lá. Talvez alguns corpos e muita cinza, mas não haverá mais nada por lá além disso.
- É, vamos logo para esse barco. Você mesmo, tenente, tinha dito que estamos bem atrasados, não é? - Bruce também não demonstrava muito interesse em sobreviventes
O tenente português
parou um instante e olhou para o oeste, seu rosto era uma mistura de
duvida e vontade de fazer seu dever. Não sabia muito bem o que
fazer, a fumaça não parecia tão distante, se ouvisse algum barulho
de tiro ou alguma explosão certamente já estariam à caminho. Mas a
fumaça escura dançava pelo céu bem tranquila e densa, como se
dissesse para seguirmos reto porque não havia mais nada por lá,
nada além de uns corpos e muita cinza, como havia dito o sulista:
- Vamos para o barco -disse, depois de hesitar por alguns instantes
- O senhor é um sábio, senhor – falou o sargento, levantando o capacete para cumprimentar o seu superior.
Seguimos adiante sem
olhar mais para a fumaça, e não trocamos mais muitas palavras até
chegarmos ao barco, que já estava bem próximo. Não falamos sobre e
não olhamos para o oeste novamente nem quando ouvimos duas rajadas
secas e altas vindas de lá. E o tenente Gerald Gomes ainda
perguntava para si mesmo se a decisão que tomou foi a certa, mas
sabia que não nos convenceria de ir até lá, de qualquer forma.
V
O barco era bem
pequeno e, quando o avistamos de longe, começamos a reclamar que nem
um bando de velhas, dizendo que não há espaço nem para um cagada,
o que dirá se houvesse uma troca de tiros. Ele estava parado em
frente ao rio, sem nada ou ninguém por perto, sem uma cabana com o
piloto ou uma pequena base. Apenas uma corda amarrada em um toco para
segura-lo e mais nada. Imaginei que devíamos apenas entrar e partir,
que não haveria mais ninguém ou que a pessoa que deveria estar nos
esperando já havia ido embora, ou estava morta em algum canto no
leito do rio.
- Mas olhem só que grande porcaria – reclamava Eric – Seis caras dentro dessa lata de sopa? Aonde esperam que a gente dê uma cagada? A gente vai dormir em cima da própria merda?
- Caga na sua mão – retrucou o jornalista
- E depois enfio no rabo quente da sua mamãe.
- Acho que o senhor perdeu a sua maturidade em algum lugar no meio desse país, senhor. - ironizou o judeu
- Eu pedi pra sua tia guardar dentro da buça dela, quando eu sair daqui eu vou lá e pesco com o meu pau de novo.
- Cara, você é um idiota. Um completo e perfeito de um idiota – disse Pablo Valdéz, claramente irritado com a situação do barco – E esse sujeito que devia estar aqui, nos esperando?
Olhamos para os
lados e ainda não havia ninguém por perto, nenhum som além dos
pássaros cantando para todos os lados que se olhava e a natureza
tentando sobreviver, como sempre o fez. August pulou dentro do barco
e procurou indício de luta ou algo do tipo, não havia nada além
das metralhadoras presas ao barco, uma mochila estrupiada e um
amontoado de pequenas garrafas vazias de rum, largadas ao lado do
leme:
- Será que deixaram algumas dessas para a viagem? - indagou o soldado com um sorriso esperançoso nos lábios
- Há muitas mais dessas aqui embaixo – disse uma voz rouca e cansada vinda do fundo do barco e que fez o recruta sair do barco com um pulo tão alto e rápido quanto o que o colocou lá dentro
- QUE PORRA É ESSA? QUEM TÁ AÍ? - gritou e todos apontaram seus fuzis para o mesmo buraco que havia passado despercebido pelo rapaz durante sua rápida vistoria pelo barco
- Calma, calma. Deve ser o sujeito que vai nos levar até esse lugar aí que devemos ir – disse o tenente, tentando acalmar a todos que ainda estavam atônitos pelo susto – Ok, cara, suba logo e saia daí antes que algum desses loucos joguem uma granada aí dentro
Os passos vinham
lentos e arrastados pela escada, provavelmente o sujeito tinha
acabado de acordar e estava em uma ressaca violenta à julgar pela
pilha de garrafinhas de rum que havia deixado lá. August ainda
estava com as batidas de seu coração rápidas e assustadas quando a
luz do Sol revelou um sujeito com pelo menos metade de nosso tamanho
e o dobro de nossa idade, semi nu e com a barba por fazer, precisando
claramente de um banho ou de mais uma garrafa de rum.
- Bom dia, tenente Gomes. Desculpem o meu estado, é que vocês não chegaram ontem e não tinha mais nada para fazer durante a noite a não ser beber e beber e beber – disse com um sorriso mostrando seus dentes e a baba seca que revelava uma noite muito bem dormida – Meu nome é Aldous Bhatnagar, apenas Aldo, por favor.
- Ok, huum...e o senhor Aldo acha que está em condições de nos levar rio acima? Não parece muito saudável no momento – respondeu o tenente
- Oh, garanto que estou na mais perfeita condição para levar os senhores para onde precisarem ir. Preciso apenas achar minhas calças e comer um pedacinho de pão ou qualquer outra coisa para tirar esse gosto ruim da boca. Vocês por um acaso não teriam uma boquinha aí com vocês? Não creio que haja alguma coisa para se comer nesse barco
Demos comida ao
homem e já almoçamos todos juntos, dávamos garfadas vistosas nos
enlatados e mordíamos o pão com gosto e pressa, ainda não havíamos
voltado a comentar sobre a fumaça que ainda rebolava, com menos
força, pelo céu:
- Hum...você sabe o que aconteceu com essa fumaça toda aí, senhor Blablaganar? - perguntou o sargento com a boca cheia de comida
- Bhatnagar, sargento. Aldo é melhor...
- Tá, tá. Aldo, sabe o que foi?
- Na hora que percebi o fogo eu já estava muito bêbado e imaginei que poderia ser loucura da minha cabeça. Mas ouvi alguns tiros vindo de lá por um momento e depois pararam, não lembro muito bem do que aconteceu em seguida, só de ter acordado com vocês por aqui.
- Não sabe se tinha algum pelotão por lá? - quis saber o tenente
- Não sei de nada, me mandaram esperar por vocês aqui e eu esperei desde ontem de tarde, como vocês não chegaram eu comecei a beber pra não morrer sóbrio caso alguém viesse aqui cortar minha garganta durante a noite.
- Teria feito o mesmo – comentei
Terminamos de comer
e nos aprontamos dentro do barco. Aldo foi procurar suas roupas e os
rapazes deitavam em qualquer canto que encontrassem para tirar uma
soneca depois do almoço, finalmente aliviados por terem chegado
aonde tinham que chegar e não precisarem mais andar no meio da
selva. Pode-se dizer que o dia estava perfeito, verde e claro, com
natureza pura ao redor de nós, com a água do rio sem fim cristalina
e calma. Com nada interrompendo a beleza do mundo naquele momento,
apenas a mancha escura e dançante no céu, que ainda ignorávamos e
já não nos fazia diferença quem havia estado lá e quem havia
morrido lá. Aldo voltou com suas calças vestidas e seu boné na
cabeça, deixando seu peito negro e marcado por algumas tatuagens
borradas reluzir no Sol do meio dia:
- Ei, Aldo, você tem mesmo mais algumas daquelas garrafas lá embaixo? - perguntou o sargento tentando disfarçar
- hahaha, sim, sargento. Ainda há algumas caixas lá.
- Caixas? Acho que vamos nos entender bem, meu amigo escurinho. - riu Eric
- Assim espero, senhor – riu de volta Aldo, ligando os motores do barco que acordou e fez um bando de pássaros sair voando de algumas árvores com o barulho.
O nosso transporte
ia rasgando as águas do rio com suavidade e velocidade, acompanhando
a vibração do lugar com o vento em nossos rostos e um Sol forte em
cima de nossas cabeças, torrando nossos couros e nos cozinhando por
dentro.
A tarde passou
rapidamente por nós, que não fizemos ou testemunhamos nada de
interessante naquelas horas em que o dia estava forte e vivo. A nossa
missão até agora parecia muito sossegada e todos estranhávamos
isso, em nossas cabeças achamos que a coisa ficaria preta pra cima
de nós. Achamos que o inimigo era astuto e não tinha descanso, uma
máquina de matar do seu país, sem diversão ou mulheres nos tempos
livres, como nós fazíamos sempre que possível. Mas apenas quando a
noite e a Lua já pendiam em nossas cabeças é que fomos entrar em
algum tipo de contato com o exército inimigo:
- Algum de vocês ouviu um barulho? - perguntou Bruce
- Bom, eu ouço muitos barulhos toda hora por aqui. Estamos no meio de uma maldita selva, August! - respondeu Goldberg
- Não, não. Eu sei reconhecer um barulho da selva com um barulho...estranho. Era como se alguém estivesse gritando lá no... - e parou quando ouviu, e dessa vez todos nós ouvimos com ele, um grito claro e furioso vindo de algum lugar no meio daquelas árvores enegrecidas pela noite
- Cacete, que grito do inferno foi esse? - Eric parecia assustado com o que ouviu
- haha, está com medo de uns gritinhos no meio do mato, sargento? - brincou Pablo – São apenas macacos, seus idiotas.
- Mexicano, não abra a boca porque eu te jogo no meio daquele mato para os macacos brincarem de esconder o mico em você. QUEM É QUE TÁ GRITANDO AÍ? - berrou o sargento com toda a força de seus pulmões e uma porção de animais gritou de volta de dentro da floresta, junto com os gritos furiosos vindos de um lugar cada vez mais perto
- Parece que agora há mais deles! O que será que eles querem, cara? - perguntou Bruce indo para trás da .50 na proa do barco e se preparando para abrir fogo.
Todos nos
posicionamos e tentamos enxergar algo no meio daquele breu total que
se fazia na selva à frente, com o silêncio perfeito da noite e da
natureza sendo quebrado rudemente pelos gritos de raiva e sangue que
pareciam cada vez mais numerosos e mais próximos:
- Sargento, fique na M60. Cabo Valdéz, fique de olhos bem abertos ao lado de Ian para qualquer movimento. Aldo, fique abaixado se ouvir qualquer barulho – ordenava Gomes
- São apenas macacos, tenente. Não me parece com um... - ia começar o cabo
- POR QUE VOCÊS NÃO APARECEM LOGO, SEUS CRETINOS? O QUE ACHAM DE MOSTRAREM SEUS RABOS AMARELOS PRA GENTE BRINCAR DE TIRO AO ALVO AQUI, HÃ? - ainda berrava o furioso sargento – GRITEM PRA ISSO AQUI ENTÃO! - e sentou seu dedo gordo e maluco no gatilho da metralhadora, liberando uma longa e ensurdecedora rajada que cortou a noite e a selva, abafando os gritos dos supostos humanos e dos outros animais ao redor.
- Sargento, mas o que é.... - começou o tenente e parou de repente – Ahhhh...FOGO!
E uma luz intensa
saia de nosso barco, a luz amarela de fuzis e metralhadoras rasgando
o ar e as folhas das árvores, perfurando troncos e corpos de
pequenos animais inocentes, que não tinham nada a ver com aquelas
nossas diferenças que nem nós mesmos sabíamos quais eram. Atiramos
até esvaziarmos nossos pentes, até o último projétil do cinturão
de balas da M60 na traseira do barco ser disparado, até nossas
retinas queimarem com a claridade repentina que os tiros produziram
em nossos olhos. O sargento Eric von Demark parecia se deliciar com
sua metralhadora, gritando maldições e cuspindo para todos os
lados, sua risada acompanhando a batida da metralhadora em seus
braços; August fechou a cara e apenas cuspia as balas para todas as
direções que achava ter visto algum vulto. E por mais de alguns
minutos não se ouvia mais nada naquela área além dos barulhos
secos e apressados das balas zunindo para lá e para cá, não
acredito que do outro lado tenham disparado um só tiro se quer, isso
se havia realmente alguém do outro lado:
- Parem, PAREM! - gritou o nosso comandante – Meu Deus do céu! O que foi isso?
- Acho que acabamos de matar metade da fauna do Vietnam, cara! - disse Ian quase gritando, ainda surdo pelo barulho dos tiros em sua orelha
O silêncio havia
voltado a reinar na selva fechada, nenhum som, nenhum ruído, nem o
farfalhar das folhas pela brisa noturna. Os animais ou haviam se
escondido, ou estavam apavorados demais para fazer qualquer barulho
ou estavam todos mortos, pelo menos todos os que estiveram no alcance
de nossas miras e canos soltadores de relâmpagos.
- Eu acho que matamos tudo o que tinha vida por aqui – disse Pablo
- Mas alguém está ouvindo mais alguma coisa? - perguntou Bruce
- Não, mas havia alguma coisa para se ouvir? Eu disse que eram macacos, cara!
- Não eram macacos, macacos não se comportam e nem gritam do jeito que aquelas coisas gritavam – respondi
Os canos de nossos
fuzis ainda fumegavam, o chão do nosso barco parecia mais um
festival de cartuchos disparados, havia um verdadeiro oceano de
cápsulas nos nossos pés, tilintando a cada movimento que fazíamos
lá dentro:
- Aldo, você ainda está vivo aí? - perguntou o sargento
- Sim, senhor. - respondeu, levantando de onde estava abaixado
- Ótimo. Acho que essa é uma boa hora para começarmos a matar algumas daquelas garrafas, não acha? - sugeriu erguendo uma das sobrancelhas
- Com toda a certeza, sargento! - e desceu com um pulo as escadas que davam para a parte de baixo do nosso meio de transporte, voltando uns instantes depois com uma caixa repleta de pequenas garrafas de rum porto riquenho. Eric sorriu e se serviu de uma das garrafas, seguido dos outros e de mim, que certamente precisávamos de uma bebida depois de quase termos perdido nossas audições.
- Hehe, essa aqui é por uma noite melhor, rapazes! - brindou o sargento, matando sua garrafinha com um único e vistoso gole, jogando-a no rio como se estivesse arremessando uma bola de baseball
E assim foi o fim de
nossa primeira noite nos embrenhando rio acima, bebendo rum e
atirando em bandos de macacos que deviam estar querendo apenas
acasalar. Ou talvez fossem os japas e tivéssemos liquidado a todos.
Sim, melhor essa versão de como terminar a primeira noite.
VI
Acordamos novamente
de ressaca e novamente com o Sol cozinhando nossos miolos. O céu já
apresentava alguns vestígios de nuvens espalhadas, e isso só podia
indicar de que as chuvas fortes do verão estavam para chegar, e isso
com certeza não seria de ajuda alguma para nossa missão.
Aquele dia veio e se
passou como uma brisa. Não havia nada para se fazer além de olhar
para os pássaros e outros animais daquela região e litros e mais
litros de água daquele rio que não parecia mesmo ter um fim. Os
rapazes ficaram tomando Sol e dando bicadas nas garrafas de rum,
respeitando pelo menos a ordem de Gerald de não ficarmos bêbados o
dia inteiro. O único que parecia não ligar para isso era Aldo.
Ficava no leme o dia inteiro e o dia inteiro estava dando golinhos em
seu cantil de metal que deixava dentro do jaleco ou no cinturão:
- Olha esse calor! Porra de Sol! Quanto tempo falta ainda nesse barco? - protesta o sargento
- Bom, temos ainda cerca de um dia e meio ou dois até o destino de vocês. Isso é, se tudo der certo e passarmos só por uma ou duas emboscadas desses chinas – Aldo deu uma risada cadavérica e um gole no cantil metálico
- Menos mal, achei que ficaríamos uma semana nessa lata de anchovas!
- Que horas são? - perguntou Goldberg
- Cerca de 16:10, por aí. - respondeu Aldo olhando para seu relógio de bolso todo estrupiado
- Acho que é hora de fumar um baseadinho. O que acha disso, sargento? - sorriu Pablo
- É, nada melhor para se fazer por aqui mesmo.
O sargento puxou um
saquinho do seu bolso da camiseta e tirou um pouco da erva que tinha
lá:
- Você só tem isso? Não vai ter pra viagem de volta – lembrou o cabo
- O August deve ter um pouco ainda. Cadê ele?
- Dormindo – Ian escrevia suas anotações em um monte de papéis, nenhum de nós sabía como se mantinha organizado.
Eric jogou a maconha
na seda e começou a apertar o cigarro. O final da tarde estava
realmente lindo e logo menos o Sol iluminaria pela última vez no dia
toda aquela paisagem natural, toda a selva e todo o rio pareceria um
mar de fagulhas laranjas infinitas.
- Sabem, essa vista está linda demais para podermos aprecia-la apenas com um pouco de erva – o sargento sorriu
- O que tinha em mente? Encher a cara de novo? - Pablo achava que conseguiria encarar mais umas doses antes de terminar o dia
- Meu estômago tá todo fodido, caras. Vou ficar só no fuminho mesmo – disse Ian que ainda sofria de uma ressaca crônica da noite passada
Eric von Demark riu
enquanto terminava de bolar a maconha e procurava seu isqueiro.
Acendeu o baseado, deu apenas um trago e falou:
- Volto já.
Ficamos lá fumando
e imaginando o que diabos ele foi procurar lá embaixo. Ouvíamos o
barulho de caixas e de molas de cama rangendo. Ouvíamos isso
misturado ao ronco alto do tenente Gerald Gomes, que havia passado a
noite inteira lendo sobre os caras que tínhamos que apagar e bebeu
muito mais do que de costume. Estava oficialmente desmaiado por lá.
Fomos passando a erva, apreciando aquela vista que o oriente nos
proporcionava e ouvimos os passos arrastados de Eric e de mais alguém
vindo com ele, alguém que também vinha a passos arrastados e
preguiçosos, imaginamos que fosse o tenente, mas Eric e August
subiram as escadas e o sargento estava com uma porção de
garrafinhas de rum nas mãos e um baralho de cartas saindo do bolso
da camisa:
- Não vou beber não, cara – repetiu Ian
- Também não vou. Minha barriga ainda está ruim de ontem – falei sem fazer ideia do que Eric realmente queria
- Relaxem, irmãos. Vamos jogar umas cartas, pitar esse fumo e tomar um pouco de rum – o sargento sorriu
- Eu tomo numa boa – Pablo se sentou e pegou as cartas
- Eu tomo também, vai. - mandei o estômago para o inferno de uma vez
Segundos depois
todos estávamos bebendo e embaralhando e fumando e jogando:
- August, o que acha de colorirmos as coisas por aqui? - o sargento disse passando o baseado para Valdéz
- Eu acho que é a coisa certa a se fazer – os dois eram cheios desses teatrinhos antes de aprontarem alguma merda que envolveria a todos nós
Todos olharam Eric
enfiar as mãos gordas no bolso da calça e tirar de lá de dentro um
pequeno frasco marrom escuro tampado por um conta gotas. Tirou a
tampa e pingou uma diminuta gota dentro de sua garrafa de rum e
passou o frasco para o soldado
- Uma gota apenas e passem para o próximo – disse
- Isso é o que eu acho que é? - Pablo soltava muita fumaça pela sua boca que se abrira num sorriso
- Exatamente, meu caro amigo imigrante – Eric deu um grande gole no seu rum batizado
- Ácido? Onde vocês acharam isso no meio dessa merda toda? - Ian não escondia sua surpresa
- Não importa como. Importa que estamos aqui agora e esse pôr do sol será fascinante demais para o vermos sóbrio.
Bruce já havia
pingado sua gota e passou o frasco para o cabo:
- Valdéz, seu que você é meio doidinho, mas é só uma gota disso! Essa coisa aí é poderosa, não é qualquer porcariazinha que se acha no meio da rua. Isso vai te levar pro espaço – alertou o sargento
- Eu acho que não vou tomar hoje. Se a coisa ficar feia por aqui eu não quero estar doidão e perder a cabeça – falei com preocupação na voz
August Bruce riu de
minha preocupação e disse:
- Cara, a gente pode nem estar vivo amanha a essa hora. Foda-se se a coisa ficar feia. Se ficar a gente mata todos eles doidões de LSD! Hahaha
- Não sei, não sei – ainda calculava os prós e os contras disso tudo quando o frasco chegou em minhas mãos e fiquei olhando para ele com uma grande duvida na cabeça
Apertei o conta
gotas e uma gota caiu dentro da minha pequena garrafa de rum porto
riquenho
- Ei, cara. Uma gota só já está bom! - lembrou-se o soldado quando já estava prestes a cair a segunda gota na garrafa
A maconha ainda
rolava naquela rodinha de cartas e drogas e Aldo apareceu de repente
no meio de nós e pediu uns tragos no fumo e pegou uma das garrafas
que estavam fechadas aos pés do sargento para preencher o seu cantil
- Aldo, não quer um pouco disso? - perguntou o sargento esticando o frasco marrom para o piloto
- E o que seria isso, senhor? - parecia intrigado
- Algo que o fará ir para as estrelas, meu velho.
- Ah, muito obrigado, sargento. Mas já estive nas estrelas uma vez, voltar para lá pode fazer um cara enlouquecer para sempre!
Ninguém entendeu o
que Aldous Bhatnagar quis dizer, mas achamos melhor não drogar o
cara que nós dependíamos inteiramente para chegar até o nosso
destino. Continuamos jogando cartas e bebendo as garrafas de rum com
algo a mais, jogamos e bebemos e fumamos uns cigarros que alguém
tinha por lá e todo aquele ácido não havia dado efeito nenhum em
nossas cabeças, mas também não sabia se estava chapado com a
maconha que havíamos fumado e não percebia o efeito do lsd vindo.
Esperamos por mais de quarenta minutos e o final da tarde já
começava a ficar no ápice de sua perfeição. O laranja e o
vermelho se misturavam de uma forma simplesmente única, o fogo da
natureza se misturava com o verde da mesma, o rio e seus litros de
água pareciam o espelho mais verdadeiro do mundo naquele momento.
Havia mais aves do que o normal cantando naquele momento e tudo ao
nosso redor parecia ser pura Natureza e simetria. Me sentia
estranhamente bem no meio de todos aqueles caras potencialmente
loucos no meio daquela guerra completamente insana e estúpida.
Jogava as cartas mas nem percebia o que estava jogando, queria mesmo
era continuar ignorando toda aquela guerra e dar risadas com aqueles
caras, ali e naquela hora e foda-se o que viria depois, a glória ou
a tortura de nossos corpos. Pensava em muitas coisas naquele momento
e não me lembrava mais do ácido vindo ou não, não sabia se aquilo
era mesmo ácido ou se Eric só estava de gozação com a nossa cara,
estávamos todos olhando para os lados para ver se víamos alguma
coisa diferente e nada, apenas nossas mesmas caras e aquele
crepúsculo unicamente vivo e claro. Tentei deixar aquilo de lado,
terminei meu rum e joguei a garrafa no rio, as ondas que se formaram
na água pintaram círculos suaves e perfeitos, lembrei de Van Gogh
por algum momento e olhei para o Sol novamente. Sua cor estava mais
viva do que nunca, aquele era com certeza o final de tarde mais lindo
que eu via em muito tempo, revoadas de pássaros passavam em frente à
luz solar e saiam de lá intactos. Eu ri com aquela cena e voltei a
olhar para o rio e seus litros e mais litros de água, e haviam ondas
gigantescas agora...Espere, ondas? Ondas? Ondas gigantescas em um rio
parado? Não comentei nada com ninguém e apenas fiquei vendo aquelas
ondas atrás de nosso barco ficando cada vez maiores e mais
transparentes, e cada vez mais pássaros pareciam entrar pelo Sol e
sair de lá intactos e aquilo não me parecia muito certo. Pensei que
tudo fosse coisa do meu cérebro sendo sugestionado a crer que estava
louco, já tinha quase certeza que aquele ácido do Bruce e Eric eram
alguma balela dos dois só para darem risada de nossas caras. Mas
aquelas ondas ainda pareciam fascinantes demais para eu me atrever a
olhar para trás e avisa-los daquilo, achei também que eles não
fariam questão de ver ondas em um rio, não sei porque pensei isso,
mas pensei. Desviei meu olhar das águas e olhei para um canto da
selva que achei ter ouvido um macaco gritando. Ouvia cada vez mais de
perto um bando de macacos se aproximando, mas não sabia ao certo se
estava realmente ouvindo aquilo, apenas apertei minha vista o máximo
que pude em direção a algumas árvores e vi arbustos se mexendo.
Abri a boca e abafei um grito de desespero quando um bando de macacos
saiu de dentro das árvores, mas estavam todos despedaçados. Estavam
todos ensanguentados e com as cabeças e membros estourados ou
completamente mutilados, gritavam e apontavam para dentro do barco,
olhando para mim com toda a fúria selvagem que tinham, alguns
carregavam pedaços de seus corpos nas mãos e outros tinham filhotes
mortos em cima de seus pescoços. Entrei em um pânico tão absurdo
que simplesmente não conseguia me mover, respirar ou falar nada.
Simplesmente havia travado com aquela visão, eles iam pegar e iam me
devorar, morder meu pescoço e me deixar sangrando até a morte no
meio daquela selva. Eu teria realmente perdido a cabeça se Ian
Goldberg não tivesse quebrado o silêncio absoluto que todos nós
nos encontrávamos há mais de dez minutos e não havíamos nos dado
conta disso:
- Meu Deus, o que foi aquilo na...
- Selva?! Os macacos? - interrompi claramente desesperado
- Não, na água. Tem alguma coisa na água, cara
- O que? - perguntou Pablo olhando para fora do barco
Eric riu de nossas
caras e disse:
- Vocês já estão todos muito loucos, hahaha
- Eu juro que vi uma coisa passando por baixo do barco, algo gigante.
- Você está ficando louco. Ninguém viu o banco de macacos que estava prestes a pular no barco e acabar com a nossa raça? - falei quase gritando em pânico – Eles estavam ali agora pouco, cara, é sério! Cadê eles? ESTÃO SE ESCONDENDO DE NÓS? - eu estava perdendo a lucidez
- Heey, cara, acalme-se! Isso aí é o lsd fazendo efeito, a gente falou que uma gotinha só te levaria pra outro mundo, não é? - Bruce levava um sorriso tão aberto em sua boca que parecia que ela estava prestes a rasgar nos cantos
- As cores tem tanta vida nesse momento, meu – Pablo estava olhando para todos os lados, como se quisesse absorver toda a energia que conseguisse daquele lugar e daquele fim de tarde
Aldo ouvia a nossa
conversa do leme e ria de nossa reação às drogas em um lugar
daqueles:
- Sabem, vocês não podem deixar isso levar a mente de vocês em um lugar assim. Vocês nunca mais voltam depois, sabiam? - e Aldo riu de nossas caras
De alguma forma
nossas caras pareciam mesmo diferentes. Olhava para cada um dos
rapazes ao meu redor e cada um parecia mais intenso e único. A
sensação que sentia naquele momento era tão única que queria
apenas abraçar aqueles caras e jogar cartas e rir o dia inteiro e
depois tomar mais desse ácido violento, fumar e beber até tudo o
acabar, a noite ou o universo. Tanto fazia.
As horas foram se
passando e as cores estavam mais vivas do que nunca em nossas
cabeças. Alguém havia ligado o rádio em uma estação de rock e
dançávamos conforme nossos espíritos dançavam. Estávamos sem
camiseta, dançando na proa do barco, gritando e rindo que nem
loucos. O sargendo Eric, enquanto isso, estava na popa, em posição
de Lótus e meditando que nem um porco pelado. Os últimos resquícios
do dia batiam na água que parecia coberta por fogo e refletiam no
rosto e no peito do sargento, que parecia estar num estado de extase
perfeito:
- Sargento, como vai o senhor nesse momento? - perguntei, tirando-o do seu transe
- Bem, cara, simplesmente bem- respondeu rindo – sabe, tomei mais umas gotas dessa belezinha
- UMAS gotas, sargento? Quantas exatamente?
- O soldado Bruce e o cabo tomaram mais uma cada um. Eu pinguei mais duas no rum e uma no olho pra ver se enxergava as coisas de um modo diferente
- Três, senhor? Não acha que vai ficar muito pirado das ideias? Com uma gota só eu já estou vendo tudo bem diferente – ignorei a gota de ácido no olho
- Sim, essa é a intenção – Eric riu que nem um doido varrido, abrindo um sorriso que engoliria a selva e arregalou os olhos de uma forma que roubaria os últimos raios solares
Olhei para o lado e
vi Ian e August com um sinalizador na mão cada um
- Lá vai! - gritou August e acionou o sinalizador que começou a jorrar uma densa fumaça amarela, cobrindo todo o seu corpo
Todos rimos e
ficamos vendo a fumaça iluminar o final do crepúsculo, uma cortina
de loucura no meio daquele país, no meio daquela guerra, no meio da
maldita selva. Em seguida foi a vez de Ian e sua fumaça era roxa e
soberana à amarela. A mistura das duas fazia tudo parecer tão
estranhamente colorido, nossas pupilas dilatadas pareciam receber
mais luz e realidade do que nunca antes:
- Isso é lindo, cara. Nada pode ser mais foda do que essa visão nesse momento – o jornalista tentava pegar a fumaça com as mãos
- É, cara. Eu acho que tô chapado demais – Pablo surgiu no meio da fumaceira que agora já era quase inteiramente roxa
- Acha? Hahaha, eu com certeza estou! - August arremessou seu sinalizador longe
- Cadê o sargento? - perguntou Goldberg
Levantamos todos e
fomos para a parte de trás do barco. Eric estava deitado no chão,
rindo sozinho e sem camiseta, suas pernas ainda estavam cruzadas e
ele apontava e fazia gestos estranhos para as estrelas
- Olhem as estrelas, soldados. Elas estão perfeitas. Estão ligadas ao meu cérebro hahaha
Seus olhos estavam
completamente dilatados e seu rosto tinha uma expressão de alegria
tão natural que não sabíamos dizer se ele havia encontrado a
felicidade absoluta ou se tinha enlouquecido de vez.
- Por que ele está deitado aí? Bêbado de novo? - Gerald havia acordado e ninguém notara que ele estava do nosso lado
- Tenente! Não, não estamos bebendo! Hahaha - riu o sargento
- Então o que? - Gerald parecia irritado, seu estômago devia estar doendo ainda
Olhamos um para o
rosto do outro, um vendo o rosto do outro distorcido e colorido de
alguma forma impossível de se explicar. Pablo e Ian não se
aguentaram e soltaram uma gargalhada, seguido por Eric que agora
levantava do chão e se via cercado por todos nós. Aldo assistia a
toda a cena lá do leme e ria sozinho, "Essa garotada, haha",
pensou e continuou a olhar para o rio que agora já se encontrava no
escuro quase que total.
- O que foi que estão rindo a tarde inteira? Acordei umas cinco vezes e dormi que nem merda, porra! - Gerald parecia bem estressado dessa vez
- Tenente, bom, a verdade é que... - Pablo ia começar a explicar mas foi interrompido pela objetividade da resposta de Aldo
- Eles tomaram uma quantidade exorbitante de um poderoso LSD concentrado, senhor – e gargalhou de sua cabine
- O que?! É verdade isso, sargento? - berrou, puto
- Sim, senhor! - o sargento bateu uma continência sarcástica que tirou o riso de alguns de nós
Na verdade, o sermão
que ouvimos do tenente Gerald Gomes naquela noite, sobre como eramos
inconsequentes e que havíamos colocado a vida de nós mesmo e,
principalmente, a dele próprio em risco não nos interessou. Ouvimos
por vários minutos ele falando muitas coisas que nenhum de nós
estava realmente prestando atenção e, no final, ele dirigiu todo um
discurso à nossa falta de respeito para com o nosso superior e que o
sargento Eric von Demark não tinha mais limites e um dia iria se
afundar na própria loucura e miséria. Essa parte todos nós
concordamos, inclusive o sargento.
VII
A noite já estava
na metade e o breu era completo, assim como o efeito daquilo em
nossas mentes. Eric, Pablo e August ainda estavam completamente
alucinados, sobretudo o sargento, que não parara de falar desde a
hora em que o tenente terminou seu sermão. Falava sobre qualquer
coisa que poderia falar e parecia que seu estoque de palavras não
terminava. O rádio ainda rocava uns rocks antigos e todos viajávamos
no som, alguns olhando as estrelas, outros limpando seus fuzis e
Gerald lia algum livro com a sua lanterna nas mãos. O breu era total
e o único som que ouvíamos, além dos Beach Boys tocando no rádio,
eram os incontáveis insetos e animais noturnos lá naquela selva
negra. Ian desenhava personagens e paisagens abstratas em seus papéis
e sua sensibilidade para com o mundo parecia estar muito maior. Seus
desenhos estavam quase ganhando vida, a simetria de tudo era
simplesmente inesquecível. Começamos a nos juntar ao redor e ver
seus desenhos. Acontece que ele estava o tempo todo desenhando e não
havia escrito praticamente nenhuma palavra, quando muito tinha feito
umas anotações em seu diário e só:
- O que você vai falar quando voltar com um monte de desenhos e nem uma palavra no papel? - perguntei
- Eu me viro depois. Não ia deixar de aproveitar esse ácido mágico e não desenhar um pouco, hehe
O silêncio e os
desenhos foram interrompidos por um ribombar a alguns quilômetros de
distância rio acima. Nosso caminho. De repente, a noite e o breu
eram cortados por clarões coloridos lá em cima das árvores e todos
nós já sabíamos que, finalmente, a coisa ficaria feia
- Eu estou muito louco ou aquilo é um bombardeio? - Pablo estava surpreso e as explosões brilhavam em seus olhos
- É, sim. Deve estar há uns cinco ou seis quilômetros subindo o rio – Aldo respondeu com seus binóculos em mãos
Olhamos novamente um
para o outro e nenhum de nós fazia ideia do que pensar ou o que
fazer naquela situação. A verdade era que metade de nós nunca
havia estado em combate e a metade que havia lutado estava em estados
alterados de percepção naquele exato momento. Mas isso não impediu
Eric de sair correndo à procura de seu fuzil e o resto de sua farda,
pelo visto estava esperando aquele bombardeio há semanas demais já
e nem tentamos lembra-lo que ele estava altamente alucinado naquele
momento:
- Olha isso, bicho! É lindo demais! Quero ver acertar uns japas vendo todas essas luzes, cara!
Sua voz soava como a
de um louco e seu olhar era frio e iluminado pelas luzes que piscavam
há cinco ou seis quilômetros de distância de nosso barco. Pablo
Valdéz já estava com seu equipamento em mãos, checando a munição
de sua M16 e amaldiçoando os nativos e suas explosões com urros de
fúria. O som de rajadas e granadas explodindo há muitos metros de
nós já eram bem nítidos e, em nossas cabeças, haviam homens
gritando de dor e raiva, desmembrados por bombas e em chamas pelo
napalm. Um filme inteiro de guerra passava pela minha cabeça. Pela
cabeça de todos nós, imagino. Gerald tinha um olhar sério de
preocupação e andava de um lado para o outro do barco, pensando se
seus homens sobreviveriam a tudo aquilo, tentando deixar de lado o
agravante de que não estávamos sóbrios. O soldado August suava
frio mas já estava se preparando para o que viesse pela frente:
- Eu fico na M60 e não quero nem saber! - avisou e riu
- Seu merda, eu é que fico na 60, vai lá embaixo e traga umas granadas extras pra galera se divertir por aqui – ordenou Eric
- Porra, sargento! Que estraga prazeres – August tentou protestar mas sabia que nem adiantava
- Relaxa, soldado, todos vamos nos divertir por aqui! Já estamos nos divertindo desde o final da tarde, na verdade.
August desceu a
estreita escada que dava para a parte de baixo do barco e foi
procurar as granadas, Eric ajustava a metralhadora fixa na popa e
parecia bastante empolgado com aquela situação toda em que nos
preparávamos para entrar e eu preferia nem pensar em que estado
iríamos sair. O barco ganhava velocidade em cima das águas sombrias
do rio e seu motor parecia fazer mais barulho do que nunca, parecia
estar a ponto de explodir e fazer uma chuva colorida, que nem as que
víamos no horizonte. Pensei que poderia ser a última vez que via
aqueles caras únicos em minha vida e tentei dar uma boa olhada
neles, via tudo como um filme, em câmera lenta. Cada ação de seus
corpos era captado pelos meus olhos como em uma fotografia, não
sabia se sairia vivo de lá e, se eu saísse, algum deles com certeza
não sairia. Aquela seria a última noite para algum de nós, ou para
alguns, mas ninguém saberia dizer quem e eu não sabia se aquilo era
uma brincadeira do universo ou se era apenas pura crueldade sua:
- Sargento, como vai o senhor nessa metralhadora? - Gomes perguntou
- Não se preocupe, tenente. Irei proteger o seu rabo e o de todos os homens por aqui como se fosse o meu próprio rabo – ele sorriu despreocupado
- Ótimo. Mas essa era exatamente a minha preocupação – sussurou o nosso comandante
Em cinco minutos
todos estávamos reunidos e o barco corria como uma bala rio acima.
Passávamos uns pedaços de pão para enganar o estômago e umas
garrafas de rum para molhar o bico, Gerald até começou a falar para
não bebermos e lutarmos aquilo sóbrio mas se lembrou do resto da
tarde e simplesmente ignorou nossas garrafinhas de bebida:
- Agora escutem bem: Sei que todos vocês ainda estão chapados e que todas essas cores parecem lindas demais no momento. Só quero que fique bem claro que se eu levar um tiro na bunda porque os senhores estavam ocupados demais respirando junto com o mundo ou tendo a epifania que esperaram a vida inteira, terão que tirar a porra da bala do meu traseiro com a língua, e sem passar a perna por cima das minhas ordens como vocês adoram. Entendidos?
Ele terminou de falar
e um raio diminuiu o volume de todas as explosões, tiros, gritos,
mortes, peidos e broncas de comandantes num raio de muitas milhas.
Todos olhamos para o céu e parecia que Deus havia comprado uma caixa
de nuvens carregadas instantâneas e jogado no céu naquele exato
momento:
- Chuva? Eu não vi um raio de nuvem desde o dia em que cheguei aqui, eu acho – August reclamou
- Isso vai energizar as coisas hahahahaha – Eric abriu os braços e a boca e esperou as gotas de chuva caírem em sua boca. Aquilo fez Pablo rir e fazer o mesmo
- Não sejam idiotas, a chuva vai demorar alguns minutos ainda pra cair. E como vocês acham isso bom? Estamos a ponto de trocar bala com sei lá diabos quem! - disse Gomes
As explosões, as
chamas, os tiros e os gritos estavam cada vez mais brilhantes e
próximos para nós, o tenente começava a ficar cada vez mais aflito
com o que poderíamos encontrar, se as coisas estavam bem para o
nosso lado ou se os japas já tinham terminado o serviço e
estraçalhado cada membro de cada soldado nosso. Os raios também se
aproximavam cada vez mais, cada vez mais altos e aterrorizantes em
nossos ouvidos chapados de ácido, rum e vestígios de um baseado que
havíamos fumado mais cedo. De repente, como uma fruta caindo da
árvore ou um pássaro voando livre e um caçador atira em seu peito,
zilhões de litros de água começaram a despencar em nossas cabeças,
caindo com a maior tranquilidade do mundo, como se a chuva não
soubesse que aquilo atrapalhava todos os nossos planos. Pablo e Eric
soltaram um grito de alegria os dois e começaram a dançar para a
chuva, August dava risada da cena e os três não pareciam estar
ligando para aquilo tanto quanto o tenente
- Olha que chuva mais incrível, cara. Demais! - sorriu o soldado
- Sargento Demark, corra e pegue umas capas lá embaixo pra gente não ficar oito quilos mais pesado por causa da água dessa porra de chuva. MERDA! - ordenou o tenente, novamente puto
- Senhor, olhe essa chuva! Está perfeita, não está sentindo? - tentou o gordo homem
- Vá logo, cazzo!
- Ok, ok. Mas vocês já estarão todos ensopados quando eu voltar e...
- AGORA!
Eric saiu correndo
com o grito do sargento e, não sei se era a chuva ou sua mente
ébria, mas quando ele chegou perto da portinhola que dava para o
convés, escorregou e caiu de uma vez lá dentro, desaparecendo num
piscar de olhos de nossa frente e fazendo um barulho estrondoso
quando alcançou o chão. Realmente achei que a queda havia matado o
homem e todos corremos até a portinhola e fomos ver se ele estava
bem, alguém gritou seu nome e apontou uma lanterna para dentro do
convés. Ouvimos um gemido e Eric apareceu na luz, dando um sorriso
cheio para nós que agora faltava um dos dentes da frente, depois
voltou a procurar as capas
- Esse cara não existe – disse o tenente Gerald Gomes. E depois começou a rir como não o víamos rindo em muito tempo
Rimos até a hora
que o sargento subiu, e quando subiu com as capas e vimos novamente
seu buraco na frente da boca e o sangue que saia de lá como petróleo
rimos mais um pouco, nem conseguíamos falar. Vestimos as capas e
fomos ver se ele estava inteiro:
- Cara, você tá bem? - perguntou Ian
- Estou sim. Nem sei o que aconteceu, cara. De repente tinha uma lanterna na minha cara e todos vocês estavam olhando pra mim e rindo. Agora vi sangue na minha mão mas não sei de onde vem.
- Achei que você tinha morrido, cara – comecei – Espera....você não sabe de onde vem o sangue na sua mão e em toda a sua camisa?
- Aonde tá machucado? Porra, nem tinha visto minha roupa, hahaha, engraçado.
Sentei no chão para
rir dessa vez. Eric olhou para todo o corpo e apalpava dos pés até
a cabeça procurando sinais de lesão ou algum corte vistoso até a
hora que alguém o informou de que havia um buraco negro no lugar do
seu dente da frente. O sargento correu até alguma superfície
metálica e olhou seu reflexo, Gerald Gomes ria que nem uma criança
daquela cena, não havia parado de gargalhar desde que viu a cara
ensanguentada do sargento no andar de baixo do barco. Havia até
esquecido de vestir a capa de chuva e já havia se tornado parte da
chuva. Von Demark olhou seu buraco no lugar do dente e parecia estar
um tanto quanto triste com aquilo, mas sorriu novamente e olhou para
todos nós com aquele seu clássico sorriso de lunático e disse:
- Não falei que íamos todos nos divertir?
VIII
Já conseguimos ver
homens correndo e barcos parados nas margens do rio, víamos as
explosões inteiras e não só o cogumelo que se formava depois.
Gomes mandou Aldo diminuir a velocidade do barco e todos nos juntamos
para ouvir suas ordens:
- OK, não há voltas agora, seus bostas. Vamos uma parte por terra e a outra fica no barco e desce chumbosa em quem chegar perto, quem vai comigo?
- Eu vou - falei
- Também – Pablo parecia realmente empolgado
- Não perco isso por nada! - disse Eric ainda mais empolgado, com um buraco em sua boca espirrando saliva e sangue
Gerald pareceu não
concordar muito com aquilo e olhou para Eric como que dizendo "Ei,
cara, você está chapado demais para sair por aí no meio de uma
guerra"
- Não me olhe com essa cara, Gerald. Você sabe que eu não vou perder isso depois de sei lá quanto tempo naquela base maldita.
- Sargento, precisamos de um oficial no barco e o cabo Valdéz já vai comigo. Entenda.... - Gerald tentou amenizar mas Eric estava convicto de que iria para a guerra
- Senhor, eu sei que posso estar chapado e que não sou um grande merecedor de sua misericórdia e coisa e tal – Eric se aproximou do tenente e pôs o braço ao redor de seu ombro – mas o senhor tem que quebrar essa pra mim, tenente. E você, quebre essa por mim, Pablo. Por favor, cara...eu sei que você gosta de uma ação mas eu preciso ver isso.
- Merda, sargento. Você está alucinado demais pra sair por aí com uma arma na mão.
- Por favor, cara! Você também está! Depois te arranjo metade desse ácido pra você tomar tudo ou colocar na comida dos outros, sei lá, faça o que quiser.
Pablo olhou para o tenente, desistindo de argumentar com o insistente sargento e o tenente também desistiu. Era pior do que criança e até ele sabia disso, o sargento sorriu e abraçou o tenente - Vai ser divertido, cara. Verás haha – Espere só mais um minutinho
Eric correu para o a
M60, tomando cuidado para não cair e quebrar outro dente, e começou
a desprende-la de seu suporte. August viu aquilo e correu para
protestar
- Qual é, sargento, o senhor já vai pra ação. Porque vai levar a minha diversão?
- Porque eu tenho autoridade para tal. E tem aquela .50 aí atrás, ela é bem mais fodida que a 60, cara. Não da pra levar a outra em terra, essa aqui sim. Sem falar que se eu fosse ficar aqui eu a usaria de qualquer forma, portanto nem perca sua palavras e saliva falando. E tomem cuidado com essa chuva, rapazes.
- Ahh, então enfia ela no rabo, desdentado – disse revoltado
- Soldado, porque o senhor não nos acompanha? Tenho certeza de que o sargento o deixará disparar uns tirinhos por aí. Quem sabe até não acerta alguma coisa – sugeriu Gerald
- Você quer a sinceridade mesmo, senhor?
- Não, quero apenas que pegue seu fuzil e umas granadas extras e venha conosco agora. E isso é uma ordem, soldado – disse o tenente antes que o soldado pudesse abrir a boca novamente para contestar ordens
Aldo encostou o
barco na margem do rio, há algumas dezenas de metros da ação e em
um lugar escondido, descemos do barco eu, o tenente Gerald Gomes, o
sargento Eric von Demark e o soldado raso August Bruce. Os outros
ficariam lá protegendo o barco e nos esperando inteiros ou mortos
com armas e granadas até os dentes. A chuva ainda caia em nossas
cabeças e nem a percebíamos mais, Ian, Pablo e Aldo se despediam de
nós e senti que alguns deles eram mais sentimentais do que
aparentavam ser:
- Boa sorte, cara. Volte com o seu rabo inteiro pra gente poder trocar uns chutes depois – brincou Pablo e eu ri
- Pode deixar, irmão – respondi e sorri
- Me traga umas histórias boas dessa guerra aí, cara – disse Ian Goldberg - E não morra, caralho!
Ri de novo e
enquanto o resto dos rapazes se desejavam boa sorte uns aos outros eu
vi Eric e Pablo dando um abraço e se despedindo e até hoje posso
jurar que vi uma lágrima descer dos olhos do sargento, mesmo com
toda aquela chuva inacabável eu consegui distinguir uma diminuta
lágrima caindo dos olhos cheios de ácido do sargento maluco e o
cabo Valdéz parecia estar a ponto de entrar na mesma situação. Ian
Goldberg nos olhava como se fosse a última vez. Seu olhar era
profundo e melancólico, ele sabia que aquele grupo não seria o
mesmo daqui a algumas horas e aquilo parecia fazer diferença para
ele no final de tudo, estar com um bando de cretinos, no final de
tudo, parecia ser uma boa forma de se morrer. E o tenente olhou para
seu relógio e disse as últimas palavras antes de partirmos:
- O relógio está marcando 01:23 agora. Se não estivermos aqui até as 03:00, vocês podem partir. Mas tentem nos achar antes!
Pablo acenou com a
cabeça e depois com as mãos.
Terminamos aquele
momento de sentimentalismo duvidoso que nunca mais se repetiria em
nossas vidas e Aldo ligou o barco novamente e avançou lentamente
para as explosões coloridas e infinitas. Nos separamos aí.
*******
O cheiro de gasolina
e pólvora no ar se misturavam com o de morte e agonia. Nos
aproximávamos lentamente pela selva fechada e fomos acompanhando o
nosso barco desaparecer na escuridão da noite com os nossos olhos. O
soldado e o sargento iam na frente, Bruce com o fuzil pronto para
mandar fogo e o sargento com o cinturão de balas da metralhadora
passando pelo seu pescoço, segurando a pesada arma na altura da
cintura e mais do que pronto para explosões e tiros ensanguentados.
O tenente e eu seguíamos logo atrás, eu estava bem aflito, não
sabia o que ia acontecer, não conseguia ter aquela tranquilidade do
tenente ou a insanidade do sargento. Conforme íamos chegando perto
fui me lembrando de que ainda estava sob o efeito daquele LSD e minha
visão do mundo estava consideravelmente afetada no momento. Olhei
para o sargento e o soldado e eles pareciam estar bem, mas sabia que
os dois estavam fervendo os miolos dentro de suas cabeças, a cada
cogumelo colorido que levantava no ar como uma lufada de energia
assassina, os olhos dos dois brilhavam e, ou faziam um comentário ou
davam uma risada de leve, extasiados com o lado belo da destruição.
Adentramos na selva
de vez e os gritos de ordens e de desespero de homens martelavam em
nossos ouvidos como se estivessem a poucos metros de nós, e de fato
estavam! O tenente ordenou que corressemos e fossemos nos proteger
atrás das árvores e próximos um do outro. Começamos a andar mais
depressa, com aquele equipamento pesado em nossas costas e mãos e o
sargento Eric custava para nos acompanhar com todo o seu peso e
aquela pesada metralhadora que carregava como se fosse uma filha
ferida. Ficamos numa fileira de largas árvores e há poucos metros
da verdadeira ação, o tenente nos mandou esperar abaixados e pegou
o binóculo para ver se conseguia enxergar quem estava na nossa
frente, nossos homens ou o exército inimigo. Se fossem os nossos
homens estaríamos em segurança, se fosse o exército inimigo nós
conseguíramos matar o maior número pelas costas antes de nos
vararem de balas. Rajadas coloridas de fuzis atravessavam a noite
escura e a semelhança de tudo aquilo com uma festa era tão grande
que até senti que devia dançar, mas achei que aquilo ia causar um
enfarto no meu comandante. Eric e Gerald revezavam nos binóculos e
conversavam sobre alguma coisa que não conseguia ouvir, mas percebia
que o sargento parecia suar frio e estava bem nervoso:
- O senhor está bem, sargento? - perguntei
- Sim, sim. É que me faltou ar agora da corrida e essa porra pesa muito – disse ofegante
- Você está mesmo em condições de fazer isso, Eric? - perguntou o tenente
Eric olhou para o
tenente e depois pra mim, August Bruce parecia estar se deliciando
com as explosões e nos seus olhos nasciam uma empolgação que nunca
havia imaginado antes, queria mesmo entrar naquele monte de gente
morta e deixar mais algumas. Parecia que todos estávamos
enlouquecendo de vez naquele momento e aquele lugar era o manicômio
absoluto de nossa existência, como se o destino houvesse nos mandado
até lá, no meio daquela guerra, naquele conflito em especial, nos
fazendo usar drogas poderosas e ver tanta destruição para,
finalmente, no final de nossos destinos, enlouquecermos e cortarmos a
garganta um do outro. Me livrei daqueles pensamentos estranhos e
levantei para ver como as coisas estavam lá no front. Explosões e
tiros coloridos ainda. Voltei a me abaixar e olhou para os lados, e
ao olhar para os lados eu reparei em uma coisa que não havia
reparado desde a hora em que havíamos nos camuflado atrás daquelas
árvores, fugindo de estilhaços mortais e o fogo do front de
batalha. Do meu lado, há uns cinco metros de onde estava minha
árvore, havia o mais incrivelmente lindo tigre que já vi até hoje.
Morto. Bem, quase morto. Seu corpo estava perfurado por tiros e seus
olhos já perdiam as últimas pinceladas de brilho selvagem e
natural, olhava para nós e não fazia som algum, apenas olhava para
nós com aqueles belos olhos e não parecia estar sofrendo, parecia
estar apreciando os seus últimos segundos na sua casa invadida por
humanos da melhor forma que achou. Olhava para nós e depois olhava
para algum canto da selva, seu instinto já era inútil e ele sabia
disso, todos olhamos para ele e ele sorriu para nós, eu acho. Depois
fez um barulho que parecia uma tosse e parou de se mexer e respirar e
nos olhar e parou de viver, finalmente. Ficamos olhando para aquele
tigre sem falar ou olhar um para o outro por alguns segundos, e
August quebrou aquele silêncio entre nós dizendo apenas:
- Esse deve ter sido um dos animais mais lindos que eu já vi
- Coitado do tigre – lamentou o sargento, que tirou seu capacete em sinal de respeito
- Sargento, não acho que seja uma boa hora para tirar seu capacete....espere....vamos avançando, acho que os chinas estavam abandonando seus postos. Estão avançando, se formos por trás em silêncio conseguimos pegar a maioria deles – o tenente havia visto no binóculo que estávamos bem atrás do inimigo e agora não tinha mais volta
- Tenente, com todo o respeito, mas se formos até lá vamos ser mortos e nem vamos perceber – disse
- Não vamos ficar aqui parados, essa é a melhor hora para fazer algo. Eles estão separados e não esperem por nós vindo por suas costas
- Vamos logo então, cara. Não aguento mais ver tudo isso e não fazer parte. Vamos logo – disse o sargento que parecia mais ansioso ainda
- Espera aí, Eric. Temos que ir aos poucos, pelas árvores e.... - tenente se abaixou para explicar para nós e quase não percebeu quando o sargento Demark gritou
- PELO AMOR DE DEUS VAMOS AGORA! - e saiu correndo dentro da floresta, em direção à guerra
O tenente não sabia
o que falar, levantou e ficou vendo o sargento sair correndo que nem
um desvairado, disparando tiros para o alto com a M60 e gritando
alguma coisa em alemão para seus inimigos. Gerald não tinha outra
opção a não ser dizer:
- Porra! Doido! Me sigam e fiquem atentos! Fiquem com granadas em mãos!
Saímos correndo
logo atrás do sargento e as árvores molhadas passavam por nós como
a brisa na manha. O sargento parecia estar cambaleando e já estava
bem próximo do inimigo, gritando cada vez mais alto e sendo abafado
pelo barulho de granadas e metralhadoras de calibre alto. Gomes nos
mandou apertar o passo para chegarmos nele e não deixa-lo sozinho no
meio dos japas e corremos mais e mais, imaginava que haveriam minas
no chão só esperando para que pisássemos e nossas pernas e bolas
saíssem voando alguns metros por aí. Tentei tirar essas imagens
lisérgicas da minha cabeça e apenas continuei correndo até chegar
nas costas do sargento, com o tenente e o soldado August no meu
encalço
- Protejam o meu rabo, caras, por favor – eu disse
- O mesmo pra você – falou Bruce
Acertei o primeiro
há uns quinze metros de mim e o vi se arrastar no chão enquanto a
rajada sem fim que saia da metralhadora que Eric von Demark rasgava o
ar e meus tímpanos, derrubando alguns homens que nem sabiam que
haviam morrido. Jogamos as granadas e Eric fez o mesmo logo depois, o
sorriso em seu rosto ao ver o inimigo cair era algo que nunca havia
visto antes em seu rosto, ele havia encontrado a felicidade de sua
vida naquele momento, talvez. O tenente estava abaixado atrás de uma
árvore e alvejava quantos conseguia, com calma e profissionalismo, o
seu rosto encostava no corpo frio de seu M16 e os músculos vibravam
numa só frequência a cada tiro que disparava. August Bruce estava
do seu lado, os dois se encontravam há apenas alguns metros de mim e
do sargento, mas nós dois estávamos em posições muito mais
perigosas, de frente para os japas que já começavam a perceber que
seus amigos caíam não por tiros e granadas jogadas do front, mas de
alguém que estava vindo por trás para uma emboscada. Olhei para
Eric e sua arma não parava de disparar seus projéteis gigantes, o
cinturão de balas se movimentava pelo seu pescoço e ele gritava sem
parar para o inimigo. Gritei para o sargento me seguir e pulei para
trás de uma árvore para me cobrir da resposta que receberíamos
agora que já sabiam de onde vinham as mais recentes mortes de seus
colegas. Sentei na raiz da árvore pensando que o sargento estava ao
meu lado e não me assustei quando olhei pra trás e ele ainda estava
lá atirando e gritando para os outros, sem nem ver se estava
acertando algo ou só assustando os macacos novamente:
- Sargento! Sargento! Saia daí, eles vão te matar! - gritava coisas assim sem parar pra ele
Os japas começaram
a lançar granadas em nossa direção que explodiam a poucos metros
do sargento, os tiros passavam pela sua orelha e até hoje não sei
como não o acertaram naquela hora:
- SEUS MERDAS! NINGUÉM VAI ME MATAR AQUI! NÃO AGORA! EU VOU BRINCAR COM OS ORGÃOS DE TODOS VOCÊS! - ele realmente havia perdido sua cabeça, a expressão em seu rosto era completamente distorcida e amendrontadora, talvez os caras do outro lado realmente tenham se assustado com um cara aparentemente sem medo como aquele
Já olhava para o
sargento e me despedia de sua companhia divertida por todos aqueles
meses, não acreditando que ele sairia dessa vivo, não tinha como
aqueles tiros que vinham das AK-47 e de granadas que voavam pela
noite em nossa direção não destruirem o que o sargento Demark
conhecia por existência. A chuva e as balas cobriam o ar e
preenchiam a noite, o barro atrapalhava a marcha e as trincheiras de
ambos os exércitos e tudo iria ruir em poucos segundos para o nosso
lado. Mas é nessas horas que as coisas que menos esperamos acontecem
e, num piscar de olhos, o sargento que não abandonaria seu posto por
nada naquele momento caiu no chão e foi arrastado até uma espécie
de amontoado de arbustos e árvores pelo soldado raso August Bruce,
que parecia bem irritado com seu superior:
- Caralho, você ficou louco? Eles já descobriram nossa posição e você tá aí que nem idiota achando que vai matar todos eles?
- ME DEIXA IR LÁ, SOLDADO! É UMA ORDEM! - esperneava como uma criança sem dente querendo ir brincar na vizinhança
- Você está louco demais, cara, vão te explodir inteiro lá. Fique aí. Acalma esse rabo, cara. Você tomou demais daquele ácido, entendeu? Agora não consegue se controlar e fica aí dando uma de maluco. Você só vai conseguir é morrer dessa forma – disse August se acalmando mais conforme recuperava o fôlego depois de correr para tirar o rabo do sargento da linha de fogo.
O sargento não
falou nada, se virou e deu uma vomitada amarela em cima do mato.
Depois vomitou mais um pouco e deu uma gemida agonizante que vinha de
dentro de seu estômago. O vomito se misturando com a água da chuva
que mantinha o mesmo nível desde a hora em que começou e fazendo um
pequeno canal de gorfo. Olhamos para aquilo com pena e receio, o
sargento estava inválido para aquele combate a partir de agora, e
sabíamos que sua loucura faria falta no meio de toda aquela loucura
ao nosso redor:
- Meu Deus, Eric, você está bem? - perguntou Gomes
- Estou...maldito rum...estou bebendo só aquilo desde a hora em que...subimos na merda do barco... - disse ofegante e com uma baba de gorfo pendendo de sua boca
- OLHA A MERDA QUE VOCÊ FEZ, CARA! OLHA A HORA QUE VOCÊ VAI PASSAR – explodiu o tenente, cansado da insensatez do sargento de uma vez por todas
Eric apenas ouviu o
tenente e os tiros zunindo por suas orelhas. Bom, na verdade só os
tiros e os baques de corpos e árvores caindo no chão, estava mal e
chapado demais para ouvir mais um sermão do comandante
- Não rouba a minha brisa, cara – disse com os olhos fechados, quase desmaiando
- Brisa? BRISA?! A brisa é que a gente vai morrer por sua causa no meio dessa selva, sargento, essa é a brisa – gritou August
Peguei meu cantil
com água e dei na mão do sargento, que ficou segurando com cara de
bobo, sem saber o que fazer com aquilo. Era como se tudo o que ele
tivesse bebido estava fazendo efeito naquela hora, que a maconha
havia sido guardada em seu organismo para fazer efeito numa hora
daquelas e que aquele ácido não ia parar de fazer a sua mágica
nunca. Peguei o cantil de sua mão e inclinei sua cabeça pra cima,
joguei um pouco de água dentro de sua boca, que engoliu tudo num
gole só, joguei mais um pouco e depois mais um pouco, o sargento
bebeu quase toda a água e o resto eu joguei em seu rosto, para que
acordasse. Enquanto isso o tenente e August tentavam lidar com os
incontáveis inimigos que se agrupavam há alguns metros de nós e
esperavam vacilarmos para descarregarem seus fuzis em nossas bundas.
- Ele está melhor aí? - gritou o tenente, cuidadoso com os japas
- Trabalhando nisso, senhor – falei – Como está, sargento?
- Mais água....aí melhoro
- Minha água acabou, sargento, o senhor bebeu tudo
Olhou para o meu
cantil vazio e tentou pegar o seu, que não estava mais lá, devia
ter caído em algum lugar pela selva ou no barco, ele não bebia
muito dela mesmo. Se esticou no chão e alcançou o cantil de August,
que parecia cheio, pegou e virou quase toda a água de uma só vez
em sua boca. Terminou a água, respirou fundo e me entregou o cantil,
esperando que eu fizesse não sei o que com aquilo. Respirou fundo
novamente, pegou sua metralhadora gigante e levantou num esforço só,
ainda cambaleando um pouco. O tenente viu aquilo e se sentiu mais
aliviado, apesar de sentir que aquilo daria errado de alguma forma,
se virou e fez um sinal de positivo para o sargento, que respondeu
com um de paz e amor e disse:
- Que se foda, vamos logo pega-los e...
- ESPERA! Não vai dar uma de louco de novo e nos colocar em risco – alertou o comandante
- Ok, ok, ok, ok...
- Na verdade, acho que não tem como a gente ficar por aqui agora, a artilharia está pesada demais pra nós quatro segurarmos. Acho que devíamos voltar e procurar o barco.
- E ficar de costas para os japas enquanto saímos correndo? - falei
- O que sugere então? É isso ou trocamos bala até a morte com esses caras.
De repente uma
explosão absurda fez todas as outras parecerem estalinhos jogadas
por crianças nas ruas aos domingos e se seguiu um silêncio perfeito
por alguns milésimos de segundo, como se todos tivessem parado de se
odiar e de se matar só para aproveitar aquele momento, com chamas se
formando nas árvores no horizonte, incendiadas pelo napalm de nossos
aviões. Olhamos para aquele fogo todo e para pequenos traços acesos
correndo de um lado para o outro, em desespero, homens que queimariam
até o último segundo de suas vidas no chão frio e úmido daquela
selva chuvosa naquela noite desgraçadamente colorida.
- Olha como eles queimam- comentou o sargento
- Uns metros mais pra frente e a gente estaria torrando lá junto com esses coitados – falou August
O tenente olhou para
onde o inimigo se agrupava para atacar o que imaginavam ser todo um
pelotão de fuzilamento, e agora havia apenas metade deles vindo em
nossa direção, lentamente. A outra metade havia ido para perto de
onde haviam jogado o napalm, talvez procurando por sobreviventes ou
para se cruzar frente a frente com o inimigo de uma vez por todas e
acabar aquela guerra para eles de um modo ou de outro
- Daqui eu contei uns quinze deles agora. Parece que se separaram. Essa é a nossa chance de sairmos desse buraco
- Eu queria ficar e lutar, tenente – disse Eric
- Você não está em condições nem de limpar sua bunda, sargento. Vamos, você vai atrás e fica mandando bala nos que vierem. Ainda há alguns deles para derrubarmos
Um tiro acertou a
árvore do lado da que o tenente estava abaixado e um grito agudo e
aterrorizante se aproximou de nós, um rosto furioso e insano corria
em nossa direção, com a baioneta em seu fuzil e loucura no olhar,
ele ia se aproximando para furar o primeiro que conseguisse com a
baioneta, e Gomes estava na sua frente. O tenente ficou parado
olhando o japa chegar, não havia mais o que fazer, ele chegou junto
com os tiros e não tivemos tempo de reagir. Quando ele estava a
alguns passos do comandante, com a baioneta encostando quase que no
rosto dele, Eric pulou na frente do sujeito e o derrubou com a
metralhadora. Nos assustamos com aquela reação louca e assistimos
ao sargento socar a cabeça e furar os olhos puxados do soldado com
os dedos, enquanto gritava como um macaco vencendo seu inimigo. Pegou
sua faca da bainha e começou a furar a barriga do soldado, furava e
gritava e xingava e seus olhos estavam vermelhos e sedentos, o suor e
a chuva se misturavam e o homem no chão se debatia, tentando se
soltar do seu agressor. Olhamos aquela cena e comecei sentir o
verdadeiro horror da guerra, homens perdendo a cabeça de vez nas
selvas, matando outros homens sem nem saber o motivo, apenas tendo
que apagar um ao outro sem fazer perguntas e sem misericórdia,
apenas o horror e o sangue e a chuva nas nossas cabeças enquanto o
nosso sargento assassinava brutalmente um ser humano, e ria com o
sangue da pança aberta do sujeito, com suas tripas à mostra e
sangue saindo de sua boca. Eric ainda enfiava a faca em sua barriga e
peito e seu braço e sua capa estavam completamente ensanguentados e
sua boca sangrava novamente, olhamos aquilo e ele olhou para nós,
voltou a encarar o homem destruído no chão e agarrou suas tripas e
as puxou para fora, como um guerreiro antigo. Olhei para aquilo e
naquela hora eu tive a certeza de que Eric von Demark havia perdido a
cabeça, não sei se para sempre, mas havia perdido o equilíbrio de
seu cérebro naquele momento e feito algo realmente asqueroso. Aquela
cena quase fez August vomitar e Gomes puxou Eric de cima do homem e
apontou para todos os outros que vinham ao nosso encontro. Todos
olhamos para o lado em que viemos, uns dez soldados estavam vindo no
nosso caminho, armados de fuzis e lança granadas. Estávamos
cercados. Olhei para aquilo e sabia que era o fim.
- É isso, acabou. Obrigado por servirem comigo, amigos – lamentei
- Agora sim eu concordo com a sua ideia, tenente – disse Eric, voltando do seu torpo assassino como se nada tivesse acontecido – Vamos logo acabar com esses caras e voltar, estou a ponto de desmaiar aqui no meio
- MERDA, MERDA! Joguem granadas para os dois lados e uns sinalizadores, saiam atirando quando ouvirem as granadas explodirem e corram pelo mesmo caminho que viemos. Ouviram? Sargento, vá na frente com August e divirta-se. AGORA, PORRA! - gritou o tenente, desesperado com a responsabilidade de nossas vidas em suas mãos
O sargento deu um
grito de felicidade e saiu correndo para sua tão esperada glória.
Os tiros inimigos zuniam por seu corpo aparentemente fechado e nossos
tiros faziam seu trabalho. O tenente e eu ficamos do outro lado, com
treze ou quinze que haviam ficado lá, nossas granadas explodiram e
os sinalizadores soltavam suas fumaças laranja e amarela e saímos
correndo pelo caminho que viemos, indo quase que de frente com os
outros dez soldados orientais e furiosos, parcialmente cegos por
nossos sinalizadores, o que os deixou ainda mais fodidos e querendo
nos ver mortos. Jogaram umas granadas de volta, que passaram meio que
longe de nós e Eric e Bruce foram fuzilando tudo o que podiam,
derrubando homens com uma facilidade hollywoodiana, suas pernas e
braços sendo destroçados por aquelas balas gigantes da M60 e da
potente M16 abrindo buracos nos peitos e nas cabeças daqueles
homens. O sorriso no rosto do sargento era algo realmente notório,
se divertia como uma criança ao ver o inimigo caindo aos seus pés,
sangrando como um porco no abate. Não por ser ruim ou um psicopata,
apenas gostava da vitória no campo, estava lá para matar e vencer
e, se acontecesse o contrário, não ligava contanto que levasse o
maior número possível de japas com ele.
Passamos pelos dez
homens que nos confrontavam, que agora eram apenas três ou quatro, e
continuamos correndo e atirando a esmo para assustar os que vinham
atrás e se juntavam aos que sobravam. Agora havia virado pessoal e
os doze japas restantes corriam atrás de nós como um perdigueiro
perseguindo coelhos nos campos verdes. As balas colidiam em árvores
e jogavam barro formado pela chuva pelos ares, acertando em nossa
roupa e nossos rostos, aquilo te apavora de um jeito que só te faz
correr mais e mais, quebrar qualquer limite ou recorde olímpico é
brincadeira no meio de uma guerra. Ganhamos distância na corrida e
carregamos nossas armas ainda na corrida, com chuva e lama em nossas
cabeças, deixando até o ato de respirar um desafio. Terminamos de
carregar os fuzis e os caras vinham atrás de nós sem parar de
atirar e nos assustar, foi aí que Eric von Demark parou de frente
para eles e engatilhou sua M60, colocando a primeira bala do cinturão
na câmara:
- O que está fazendo, sargento? Vai ficar aí e matar todos?! - perguntou Gomes, indignado
- Sim
- Está louco?
- Sim – o sargento respondia secamente e estava puto – Podem ir se quiserem, eu vou ficar
- Sargento, isso é uma ORDEM! Volte agora para o bar... - e as balas zuniram pelo ouvido do tenente – MERDA
Abrimos fogo
novamente contra aqueles caras e a metralhadora cantava a canção da
morte mais perfeita de todas, jogamos mais granadas e uns
sinalizadores, o que acabou se mostrando uma tática muita boa para
situações como aquela e nossas armas e preparo dizimaram grande
parte daqueles caras, e todos rimos com a cena, até o tenente Gomes,
o inimigo caia um a um e nosas armas pegavam fogo e soltavam uma
fumaça ameaçadora, e o sargento ria histericamente e gritava e
fazíamos o mesmo, havíamos todos perdido a cabeça e aquilo era
maravilhoso. Mas um tiro pegou na perna de Eric e, em seguida, em seu
pescoço, que atravessou e dilacerou metade da nuca do gordo
sargento, que caiu no chão ainda disparando sua amada M60 e se
debatendo como um peixe fora d'água. Olhamos para aquilo e não
podíamos fazer mais nada além de continuar atirando até terminar
com o último deles, ou eles atirarem e terminarem de matar todos
nós. Olhei novamente para o homem se debatendo no chão e não
conseguia suportar aquela visão agoniante sem fazer nada, pulei no
barro e puxei o sargento para trás de alguma árvore:
- Sargento! Sargento! Está me escutando? - perguntei agoniado
Ele obviamente não
respondia, sua garganta e cordas vocais deviam ter ido para o espaço,
assim como parte de seu cérebro e agora, aos poucos, sua vida. Tinha
um olhar vago e o brilho louco e ébrio que era característica
marcante de sua pessoa e de nossas vidas desde que nos conhecíamos
estava desaparecendo lenta e cruelmente. Se debatia por puro reflexo,
imagino, já não devia mais estar lá, devia ter ido visitar as
estrelas novamente. E nunca mais voltado.
Olhei para o seu
corpo agora imóvel e ensanguentado e aquele momento parecia ter
durado uma eternidade, o sangue de sua cabeça ainda vazava em cima
de minha capa e se misturava com a chuva densa daquele país
selvagem. O tenente e o soldado correram para onde estávamos e
olharam para aquela cena, tinham visto o sargento cair mas não
acreditaram que ele havia sucumbido aos malditos chinas:
- Não, cara, não... que merda! QUE MERDA! - gritou August e Gerald o abraçou
- Vamos embora daqui antes que a coisa piore. Me ajude aqui com o corpo – falou o tenente
Peguei o corpo sem
vida do sargento pelos braços e o tenente pelas pernas, o sangue e
pedaços de cérebro caiam em minha capa e no chão e aquilo era
asqueroso quando era com um amigo seu. August ia na frente, alerta
com a M60 em mãos, finalmente pusera as mãos naquela metralhadora,
estava cabisbaixo e seu rosto parecia triste, o de nós três parecia
triste. Ele era nosso amigo, porra!
- Acelerem o passo – disse o tenente
Aceleramos e a chuva
ainda caia em nossas cabeças, limpando o sangue do rosto do
sargento, que agora parecia estar intacto, tirando que seu pescoço e
sua perna estavam bem judiados e nojentos. Tinha uma expressão até
que alegre em seu rosto, ou ainda era aquele ácido fazendo efeito na
minha cabeça. Mas continuamos seguindo, e agora os tiros e as
explosões e as mortes e os japas atrás de nós não pareciam mais
tão importantes. Importante era chegar logo barco e sair daquele
lugar que não devíamos nem ter parado à princípio.
IX
O peso do corpo de
Eric parecia estar maior a cada passo que avançávamos e os tiros já
estavam se distanciando de nós, pelo menos aonde havia mais riscos
de levar um na cabeça ou no pescoço. Não sabíamos aonde estava o
barco exatamente então o plano era irmos até a margem do rio e ir
subindo o rio à procura do resto dos caras. Imaginava como seria a
reação de Pablo ao ver o corpo do seu amigo despedaçado em nossos
braços, com pedaços de orgãos do inimigo presos em suas unhas e
parte de sua cabeça se desmantelando na minha coxa conforme
andávamos. Pensei também se estariam vivos quando chegássemos no
barco, qualquer coisa poderia ter acontecido e eu não tinha ideia do
que tinha acontecido, um japa poderia ter explodido tudo com um lança
granadas ou terem pulado lá dentro e cortado a cabeça de todos
eles, apesar que duvidava que o cabo Valdéz deixaria isso acontecer
com um fuzil e um par de granadas em suas mãos.
Chegamos na margem e
fomos avançando lenta e cuidadosamente por ela, com as árvores e
arbustos nos escondendo e August com os olhos atentos para algum
louco que quisesse nos cravejar de balas por ali. Olhava para o corpo
do sargento e eu era o único que encarava o seu corpo mesmo, August
não se atrevia a olhar e o tenente estava virado para frente.
Ninguém queria ver o corpo sem vida daquele cara ensandecido, pela
primeira vez desde que nós o conhecemos, Eric estava quieto por mais
de vinte minutos sem estar dormindo ou desmaiado chapado em algum
canto. Parei de olhar para ele e parei de pensar naquilo e segui em
frente, olhando para as árvores e para vultos se mexendo naquela
selva enganadora, os japas conheciam bem suas selvas, poderiam estar
escondidos embaixo de nossos pés a essa hora, correndo por seus
túneis fedidos e apertados, comendo carne de algum roedor que
encontraram por lá e insetos fritos, se virando do jeito que podiam
para não deixar um bando de estrangeiros dominarem sua terra e sua
gente. Entendia o lado deles, mas entendia o meu também, que era
sair vivo de lá e voltar pro barco, depois pensava em voltar para
casa ou para o hospital ou para a base...agora só queria voltar para
o maldito barco que não aparecia e já estava cansado, com bolhas se
formando nos meus pés ensopados por aquela chuva incessante. O barro
nos nossos pés estava se tornando denso e difícil de andar sobre,
tropecei em alguma pedra ou algum coisa parecida e quase caí no
chão, me reergui mas larguei a cabeça do sargento na lama, que
afundou na hora e realmente pensei em deixar por lá, já estava
morto e Eric com certeza não ligaria nem um pouco para isso e
provavelmente faria o mesmo conosco se assim o tivesse que fazer:
- Que merda! - disse pegando os braços do sargento novamente e deixando que a chuva os limpasse do barro – Estou cansado, senhor. Ele é muito pesado e esse barro tá foda de atravessar.
- Não podemos parar. Temos que achar logo o barco ou nos deixarão aqui com esses doidos. Continue andando que logo estaremos lá, quem sabe até dormindo.
Lembrei que tínhamos
hora para voltar ao barco e voltei a apressar o passo, August seguia
quieto uns metros à frente de nós e me perguntei que horas poderiam
ser. Havia perdido noção do tempo lá no meio daquilo tudo, havia
perdido noção do tempo desde a hora em que tomamos aquele ácido.
Na verdade ainda sentia seus efeitos em mim, mas acho que minha
cabeça estava cheia e cansada demais para dar bola para eles ou eu
já tinha morrido e achava que estava vivo ou sei lá o que. Andamos
e andamos e andamos mais alguns minutos e o cadáver em nossos braços
parecia nos atrasar como uma velha se preparando para sair e então
August disse:
- Senhor, acho que estou vendo alguns barcos lá na frente.
Olhamos e havia uns
quatro ou cinco barcos bem parecidos com o nosso parados um do lado
do outro, com o que parecia ser alguns homens com uma fogueira
embaixo de algumas árvores, assando alguma carne para comer e dando
risada como se não estivesse rolando uma matança a alguns
quilômetros dali. Fomos nos aproximando e avistei Aldo de longe,
bebericando no seu cantil de metal aquele seu rum que por algum
milagre ainda existia. Vê-lo foi tão reconfortante que quis largar
tudo e ir correndo e pulando abraçar ele e o seu barco velho e
pequeno. August acenou com uma das mãos para Aldo, que nos avistou e
veio se aproximando de nós, talvez ainda sem ver o corpo que
carregávamos em nossas mãos. Mas foi se aproximando e, conforme ia
vendo o que carregávamos no braço e o olhar caído de nós três,
foi diminuindo o passo e adquirindo um olhar mais sério e, quando
teve certeza do que e quem era, veio correndo até nós e me ajudou
com um dos braços do sargento, sem falar ou perguntar nada, apenas
olhou com tristeza para o cadáver, deu mais uns goles em seu cantil
e continuamos seguindo para o barco em silêncio.
O chão tinha
vestígios de um conflito que devia ter ocorrido a não muito tempo,
corpos e cápsulas faziam companhia aos homens que comiam alguma
coisa pela primeira vez no dia ou pela última vez de suas vidas e
ainda nem sabiam disso. Todos foram acompanhando com os olhos os
quatro homens escoltando o corpo do sargento até o barco, o velório
do sargento Eric von Demark, rodeado por guerras e chuva e barro e
silêncio e o despejamos no convés como um saco de batatas, fazendo
um barulho seco e frio misturado com a água da chuva. Subi no barco
num pulo só e fui para a cabine de Aldo, aonde a chuva não batia e
finalmente me vi livre daquela água que não cansava de cair na
minha cabeça. Tirei meu capacete e larguei meu M16 no primeiro lugar
seco que vi e fechei os olhos, exausto daquela situação e de
carregar o corpo de um companheiro. Esperava a hora em que Pablo e
Ian iriam aparecer e ver o corpo do sargento lá, deitado, roxo e
molhado com sangue e chuva e imaginei que seria uma cena um tanto
quanto triste, e de tristeza eu já estava bem cansado. Aldo e o
tenente conversavam sobre alguma coisa e August se sentou ao meu
lado, em silêncio:
- Cadê o cabo e o jornalista? - perguntei
- Não sei, Aldo disse que Ian estava agindo estranho desde a hora em que saímos daqui e que não falou com mais ninguém. E o cabo deve estar dormindo lá embaixo. Vou acorda-los.
Desceu a escada
estreita e foi chama-los enquanto eu continuava lá sentado, com
bolhas nos pés e um torcicolo começando a incomodar. Tirei o
coturno e as meias e deixei meus pés respirarem livres por uns
instantes, o vento frio da noite chuvosa passou pelos meus dedos e
senti um alívio tão grande correndo por eles que até dei um
sorriso no meio daquele inferno momentâneo. Alguns segundos se
passaram e ouvi o barulho de pés subindo as escadas, Pablo e August
saíram de lá e pensei que não deviam ter conseguido acordar Ian,
ou ele não quis subir. Pablo olhou para mim, caído no chão da
cabine com os pés nus e o corpo molhado e procurou pelo corpo do
sargento, que estava atrás de algumas caixas vazias de rum que Aldo
havia subido para se livrar delas ou para tentar enche-las novamente.
Cabo Valdéz se ajoelhou no chão do barco e ficou olhando para o
cadáver de Eric von Demark, seu rosto parecia triste ao ver seu
amigo de longa data lá, jogado no chão de um barquinho velho, com
metade da cabeça jogado em algum canto da selva, com seu sangue se
espalhando lentamente pelo convés e a ausência de um dente e
daquele olhar louco que sempre encontrávamos com o sargento agora
dava lugar para o vazio e o opaco. Olhei para o chão e vi várias
cápsulas de metal por lá, havia tido uma briga da boa por aqui,
aqueles corpos lá não eram de tanto tempo assim, deviam ter passado
por aqui e descido bala nos japas que estavam os esperando. Não
perguntei nada e não falei com mais ninguém, apenas dormi e dormi
bastante e ninguém tentou me acordar até a manha seguinte, quando
nossas cabeças estariam finalmente sóbrias de qualquer substância
que havíamos tomado ou fumado, estava precisando mesmo daquilo.
X
A manha era chuvosa
e mais cinzenta do que nunca, o Sol parecia ter esquecido daquele
lugar e de todos nós, deixando-nos apenas água caindo, água por
toda parte, embaixo e em cima era água e me sentia uma planta
hidropônica. Sentia uma leve dor de cabeça e no resto do corpo,
todos estavam um tanto quietos e chateados, com o corpo do nosso
sargento largado naquele barco, esperando para apodrecer lentamente
coberto por uma capa de chuva que deixava seus pés à mostra. Ian
Goldberg acordou e foi ver o corpo do companheiro, olhou por uns
segundos e saiu friamente, sem trocar uma palavra ou olhares, apenas
ficava deitado desenhando e bebendo um ou outro gole de rum. Imaginei
que fosse pela morte de Eric, mas Aldo e Pablo falaram que ele já
estava agindo estranho desde a hora em que pararam o barco perto do
acampamento japa e exterminaram a todos por lá. Pensei em ir falar
com ele mas achei que não gostaria de ter o saco enchido a cada vez
que fico melancólico, Ian vira e mexe tinha umas crises assim e a
melhor coisa era deixar ele supera-las sozinho.
O dia corria e
queríamos e devíamos ter partido ao amanhecer, mas fomos enrolando
como de costume e ninguém, nem mesmo o tenente, estava disposto ou
num humor bom para fazer qualquer coisa, e de qualquer forma não
estávamos muito longe do nosso destino. Passamos o dia com os
soldados e ajudamos nos feridos que apareciam, buscamos mais
combustível e comida para a nossa esperada viagem de volta e
enterramos o corpo do sargento perto da margem do rio, embaixo de uma
árvore muito grande e grossa, uma anciã, imaginei. Fizemos uma
cerimônia padrão no meio daquela chuva para não ter que ficar sem
falar nada, mas concordamos que o sargento odiaria aquilo com todas
as suas forças e zombaria de nossas caras. Rimos disso e nos
despedimos para sempre do sargento Eric von Demark, enterrado nas
margens de algum rio, em alguma data esquecida pelo mundo e por nós
mesmos.
A tarde passou
lentamente e sem muitas surpresas ou diálogos, nos preparamos para
ir embora e fomos desejar boa sorte aos outros homens com seja lá
qual fossem suas missões e ordens. August e eu ficamos dando um
jeito na bagunça do convés e os outros cuidavam de outros reparos e
organizações em nosso meio de transporte. Perto do crepúsculo o
barco estava pronto para partir e demos as últimas mijadas e cagadas
em terra firme antes de subirmos aquele rio e ver o que aconteceria
com o que restou de nós.
Finalmente deixamos
aquele acampamento fodido no cu lá pelo final da tarde e a chuva
parecia ter diminuído suavemente, apesar de ainda chover bastante. O
barco cortava o rio à toda velocidade e o Sol cinzento se despedia
de nossas caras mais uma vez, há um dia atrás exatamente estávamos
todos jogando e rindo, agora era cada um em seu canto, cantarolando
canções e limpando suas armas. Alguns tomavam uns goles de rum aqui
e acolá, fumamos maconha usando o cano de uma espingarda como
cachimbo e demos risada daquilo, as primeiras que havíamos dado
desde o enterro de Eric. Evitávamos conversar sobre morte e guerra,
apreciamos o pôr do Sol em silêncio e aquilo trazia um pouco de paz
para todas aquelas almas naquele barco e todo aquele país no geral.
A noite veio rápido e logo um breu total se formava ao nosso redor,
não era possível enxergar nem uma mão em frente ao nosso rosto,
mas Gerald mandou Aldo continuar subindo o rio sem olhar para trás
ou para os lados, apenas subisse independente do que acontecesse por
lá. Ian Goldberg continuava fechado em seu mundo e não queria comer
nada ou conversar com ninguém, tentei trocar algumas palavras com
ele mas sempre respondia desconversando ou disfarçando com alguma
piada boba, seu olhar era cinzento e sua expressão era estranha.
Alguma coisa havia acontecido com ele e ninguém sabia dizer o que,
estava pálido e parecia um tanto quanto doente, achei que poderia
ser isso e que logo passaria, mas a verdade é que ele realmente
estava na merda. Subia a escada apenas para poder vomitar no rio, e
depois ficava lá olhando e dando risada da mancha amarelada que
ficava na água, flutuando como bactérias no meio de tudo e com um
leve cheiro de bebida barata gorfada saindo de sua boca. Nem maconha
ele quis fumar com a gente, o que também achei estranho, talvez
alguns tragos o fizessem se sentir melhor com aquilo tudo e ele
pudesse aproveitar mais aqueles momentos estranhos, se é que tinham
algo para se aproveitar.
A madrugada chegou e
a chuva se foi e ainda não tinha sono, havia dormido grande parte da
manha e cochilei novamente durante a tarde, aquele dia tinha sido um
grande marasmo para compensar a loucura do dia anterior. Parei para
lembrar disso e realmente havia acontecido muita doideira naquele
dia, muitas nós lembraremos sempre e outras foram apenas para tingir
de colorido aqueles instantes lisérgicos rio acima e nunca mais nos
lembraríamos delas. Todos já estavam dormindo e eu fazia companhia
para Aldo que contava sobre seus filhos perdidos pelo mundo e as
mulheres doidas que conheceu por aí. Era um cara muito legal e já
havia feito muita palhaçada por aí, veio parar no exército depois
de umas noites de bebedeira contínua e gostou do que viu. Estava por
aí agora, sem ter pra onde ir e tendo todos os lugares que queria ao
mesmo tempo, estava no meio dessa guerra porque queria, se quisesse
ir embora simplesmente desapareceria por aí na selva ou no rio com o
seu barco e nunca mais ouviríamos falar de Aldous Bhatnagar,
contador de suas histórias malucas.
Ouvi alguém subindo
a escada e achei que seria Gerald me mandando ir dormir e trocar o
vigia, mas era Ian que subia a pequena escada com sua cara de sono e
seu olhar ainda cinzento. Olhei para ele e ele sorriu e disse,
balançando o baralho de cartas na mão:
- Querem jogar um pouco?
- Valendo umas cervejas – concordei
Jogamos por vários
minutos, talvez até algumas poucas horas, não me lembro. Jogamos e
rimos e conversamos e parecia que Ian estava se sentindo bem
novamente, falando bastante e rindo de qualquer coisa, filosofamos
sobre a vida e sobre a guerra, criamos roteiros para filmes e poemas
na hora, Aldo entrou no meio e ficou recitando alguns de seus poemas,
que eram muito bons e bem escritos. Ganhei umas e ele ganhou outras,
não sei quem ganhou mesmo no final, mas decidimos que beberíamos as
cervejas de qualquer forma e fumamos um antes de irmos dormir. Sabia
que seria sofrível para acordar na manha seguinte, se Aldo
continuasse naquele ritmo chegaríamos ao destino antes do almoço.
Dei boa noite para os dois e fui dar uma mijada antes de dormir,
estava lá me aliviando e no horizonte comecei a ver uns clarões,
sem som, apenas clarões brancos e o que me parecia alguns vultos no
céu. Na hora pensei que aquele ácido devia estar fazendo efeito
novamente na minha cabeça, que algum resquício dele ainda estava no
meu organismo, mas Aldo também viu aqueles clarões e nos olhamos e
não falamos nada. Fechei meu zíper e desci as escadas para dormir
algumas horas antes de chegarmos ao fim da viagem. E aqueles
relâmpagos ainda iluminavam o horizonte quando dei a última olhada.
XI
Acordamos todos
juntos com o som seco de um fuzil sendo disparado. Um único tiro e
uma revoada de pássaros saiu assustada. Pegamos nossas coisas e
subimos para o convés num pulo só, e a primeira coisa que vi foi
uma cápsula rolar solitária pelo chão e um filete de sangue
descendo tranquilamente em direção aos nossos pés. Seguimos o
rastro de sangue corria e vi o Ian deitado no chão do barco, com seu
fuzil ainda fumegante e sua cabeça explodida pela bala que entrou
pela boca e saiu deixando um buraco do tamanho de uma bola de
baseball atrás. Na hora não me passou pela cabeça que ele havia se
matado, pensei que estivéssemos sendo atacados por franco atiradores
escondidos nas árvores, mas uma fração de segundos depois eu
percebi que aquilo não faria sentido e enxerguei de fato o que ele
havia feito. Gerald olhou para o corpo e para a poça de sangue que
se formava, seus miolos escorrendo lentamente junto com o sangue
denso e uma leve fumaça saindo de sua boca aberta. Aquele M16 havia
feito um estrago e tanto na cabeça do pobre jornalista, ainda não
entendia como ele tinha feito aquilo, achei que estivesse se sentindo
melhor depois da noite passada, que rimos e conversamos por horas e
jogamos cartas até cansarmos. Lembrei daquelas cervejas que nunca
mais tomaria com ele, teria que ser com outra pessoa, um substituto
de Ian para aquela ocasião Fechei os olhos por uns segundos e tentei
tirar aquela imagem e aquelas mortes da minha cabeça. E Pablo disse
com um tom de desespero na voz:
- Que porra é essa, cara? Por que ele fez isso?
- Meu Deus...ele....meu Deus... - tentava falar August
Gerald continuava
olhando e não falava nada. Aldo fingia que aquilo não acontecia,
tentava fugir daquela cena grotesca, sem sucesso:
- Você viu o que aconteceu, Aldo? - perguntei
- Ele subiu mais cedo e......olhou para mim.....deu um bom dia e foi aí pra trás, continuei olhando pra frente e depois....ouvi o tiro e vocês apareceram – tentava explicar ofegante
Em menos de quarenta
e oito horas dois dos nossos morreram e não sabíamos o que
acontecia, aquilo era louco demais, ninguém imaginava que ele seria
capaz de fazer algo assim, e não deixou nada, nem um bilhete dizendo
seus motivos ou uma despedida formal. Apenas o fez, discreto e
silencioso, como era o seu estilo. O Sol saia e o sangue brilhava
mais do que nunca, pedaços do seu cérebro ganhavam uma forma mais
viva com toda aquela iluminação matinal batendo neles. De certa
forma parecia um tipo de arte não valorizada, o vermelho perfeito
espirrado por todo o barco e as pernas de Ian Goldberg, jornalista
deixado no meio de uma guerra, jogadas de qualquer forma, cruzadas e
seus braços respingados de sangue que vazava de sua boca e do que
outra hora foi a parte de trás de sua cabeça. Olhei para o rio e
ainda dava pra ver um pouco de sangue e massa cefálica boiando
despreocupadamente pelas águas calmas da manha. Ouvi um soluçar e o
tenente Gomes chorava, com todo o peso da morte de seus homens em
cima de sua cabeça:
- Não devia, cara...não devia ter aceitado, cara...não devia – dizia em choque
- Calma, tenente, não é culpa sua uma merda dessas acontecer – Pablo tentava consolar
- É, ele fez isso porque ele quis, problemas dele, nada a ver com você ou com a gente, tenente. Só não sei por que ele fez isso... - disse
- Não devia...NÃO DEVIA! Ter trazido vocês! NINGUÉM! Eric.....Goldberg...Merda – chorava desesperado
Não sabia como
ajudar o aterrorizado comandante e fiz o que achei que seria o
padrão, o abracei com força e esperei que ele se acalmasse um
pouco. O levei até lá embaixo, aonde ele se deitou e tentou dormir,
subi novamente para ver o que faríamos com o corpo do jornalista
suicida e ver quanto tempo faltava para sairmos daquele barco
ensanguentado.
Subi e ajudei os
rapazes a ajeitar o corpo de Ian em algum canto, limpar a sujeirada
que ele fez com seu sangue e cérebro e deixar tudo parecer menos
asqueroso possível. O clima agora era mais pesado do que nunca e
todos estavam deprimidos pelo desfalque em nosso grupo e por ter que
limpar restos de nosso amigo suicida de cima do barco. Ainda não
devia ser nem 10:00 da manha e a chuva havia desaparecido mesmo e não
devia voltar por um tempo. Sem nuvens, sem cinza, apenas o azul e o
amarelo no céu, refletindo nos bilhões de litros de água daquele
rio e fazendo tudo parecer um espelho brilhante e cristalino. Minha
cabeça rodava e me sentia mal, com sono, cansado, voltei para me
deitar um pouco e tentar esquecer toda aquela merda que acontecia ao
nosso redor e toda a loucura que havia vivido nos últimos dias.
Dormi pesado e sonhei com praias brancas e o céu vermelho, clarões
e corpos caindo como chuva, devo ter visto Eric no meio do sonho,
porque acordei pensando nele, olhava para as pessoas que caíam
mortas ou gritando e elas não pareciam ter rosto, apenas sangue e
terror no lugar de olhos e boca. Fiquei apavorado com aquilo, suei
frio durante as três horas e pouco em que cochilei, terrível.
Um
final rápido
Quando o Sol estava
em nossas cabeças e imaginei ser mais ou menos meio dia, Aldo avisou
que estávamos para chegar em nosso destino. O frio na barriga foi
sentido por todos, imagino, eu senti com certeza. A água parecia
inquieta e refletia o que se passava por nossas cabeças, pássaros
voavam e via os peixes correndo loucos por debaixo do espelho
brilhante e vivo em que navegávamos. Olhei para o horizonte e não
via nada, nem sinal de acampamento ou de fumaça ou de homens ou de
nada. Achei que teríamos que andar bastante até o lugar, não
queria mais sair daquele barco, queria fazer o que tinha que fazer lá
de dentro e mandar todo o resto pelo ares.
Fomos nos
aproximando lentamente e Gomes tentava ver algo com o binóculo,
parecia tudo muito calmo e não sabia se ficava feliz ou triste com
isso. Talvez fosse mais fácil do que havíamos pensado, apenas
acharíamos os quatro caras e a garota e daríamos um jeito neles,
não sei bem se teríamos que mata-los, mas certamente não havia
espaço no barco para prisioneiros ou caroneiros. Não ligava se
tivesse que matar todos, já que estava no meio daquela merda toda,
que se afunde de vez. O barco estava chegando perto da margem
novamente e começamos a ver o motivo de tanto silêncio e nenhum
movimento por lá, tudo estava destruído, bombardeado, fuzilado,
toda aquela área havia sido incendiada durante a noite e a fumaça
deve ter se dissipado com a brisa da madrugada ou enquanto lidávamos
com o problema de Ian. Haviam corpos e restos de um acampamento,
capacetes e fuzis espalhados pelo chão, nem uma viva alma por lá. O
barco parou e fomos descendo e pisando em terra firme de novo, aquela
sensação era sempre boa, como voltar para casa depois de ficar a
noite inteira bebendo e se drogando e seu corpo encostar na sua cama
quentinha de novo, aquela velha amiga nos esperando com seus braços
relaxantes e macios:
- O que aconteceu por aqui? - perguntou Pablo
- Não sei...não tem ninguém vivo, não? - disse o tenente
Andamos em formação,
com os nossos fuzis nas mãos, por entre corpos de nossos homens e
dos inimigos, uma loucura, mutilados, ensanguentados, pensei ter
ouvido um gemido de dor em um canto, depois em outro, mas não tinha
como achar. Estava tudo muito sujo naquele lugar, lama e destruição
davam uma ótima combinação num conflito daqueles, no meio da selva
e às margens de um belo rio como o que estávamos navegando. Ficamos
em silêncio procurando por alguém que nos explicasse o que tinha
acontecido no lugar que tínhamos que descer e fomos surpreendidos
por uma voz suave e amigável há poucos metros de nós:
- Ei, amigos, aqui!
- Quem é? - sussurei para August
- Vou saber?
- Bom, está do nosso lado...vamos logo – ordenou o comandante
Nos aproximamos do
rapaz um tanto quanto gordo e barbudo, com um cabelo na testa e
usando óculos, estava todo sujo de lama e sei lá mais o que, devia
ter passado a noite embaixo de uma vala pra tentar salvar seu rabo.
Ele acenava com as mãos para que nos aproximássemos e fomos
acompanhando sua mão como filhotes de cachorro seguindo a mãe, ele
tinha um sorriso calmo no rosto e parecia estar num parque, não num
lugar onde havia ocorrido uma chacina. Suas roupas estavam rasgadas
em alguns cantos e sua testa sangrava um pouco, no seu jaleco lia-se
o sobrenome Braga. Chegamos e o tenente foi tirar suas duvidas, mas
antes o rapaz se apresentou:
- Olá, tenente Gomes. Sou o capitão Braga, mas me chamem de Charlie que é a mesma merda por aqui.
- Como sabe o meu nome, senhor? E o que aconteceu por aqui? Temos ordens para descer aqui e...
- Estou ciente de suas ordens, tenente. Eu e meus homens estávamos esperando pelos senhores ontem à noite, bicho. Iríamos escolta-los porque a coisa ficaria feia...e realmente ficou. Tiveram sorte! - riu o capitão
- Bombardearam tudo? - perguntei
- Sim, é claro, não estão vendo? Noite passada eles estavam acabando com a gente, estávamos quase que todos atrás das árvores há algumas dezenas de metros dessa área, os vermelhos estavam descendo bala em cima da gente e tivemos que chamar um ataque aéreo ou não sobraria nenhum de nós...e quase não sobrou mesmo..
Na hora lembrei dos
clarões que havia visto na noite passada com Aldo e pensei que
aquilo devia ter vindo na minha cabeça na hora. Fiquei quieto e não
falei nada sobre aquilo, não achei que faria grande diferença
também saberem disso ou não.
- Hum, então acho que tivemos sorte de não ter alcançado esse lugar ontem de noite, senhor. Agora só temos que fazer nosso trabalho e ir embora – comemorou Pablo
- Oh, sim...eu diria até que estão com mais sorte ainda, cabo. Porque o trabalho de vocês já está pronto – sorriu Charlie
- Como assim, senhor? - Gomes levantou a sobrancelha
- Bom, se não me engano vocês vinham até aqui para achar e apagar alguns espiões ou coisa do tipo, não é?
- Sim, senhor. Quatro agentes e uma mulher infiltrados – confirmou Gerald
Olhamos um para o
outro e senti que a nossa ida até lá havia sido a coisa mais inútil
daquela guerra:
- Todos...foram capturados ontem à noite – Charlie sorriu ainda mais
- Como assim, senhor? Capturados? Nós que devíamos pega-los e dar um jeito neles - uma clara confusão parecia crescer cada vez mais dentro do nosso tenente
- Tenente, olhe para esse inferno – e apontou para aquele campo lamacento – acha que tinha como ter controle de alguma coisa aqui? Enquanto vocês estavam por aí curtindo a natureza o bicho pegava por aqui, bicho! As pessoas morriam e desapareciam.
- Mas como chegaram até eles, senhor? Não estavam aqui no meio dançando e cantando esperando por nós, certo?
- Isso é confidencial, tenente. Posso apenas lhes dizer que um informante nos indicou a posição deles e fomos lidar com isso. Depois tudo foi pelos ares e agora me perdi de todos os meus homens.
- Então não sabe onde estão as nossas pessoas?
- Bom, na verdade não, bicho. Estão por aí, ou com nossos homens ou mortas, mas não estão mais em atividade, isso com certeza
Gerald parecia
estressado, muito estressado, sentia sua raiva crescendo dentro de
cada um de nós, fomos até lá para nada, perdemos dois companheiros
para nada, toda aquela loucura e aquele rio foram nada no final de
tudo. Aquela história toda cheirava muito estranha para mim, não
acreditei naquilo de que foram capturados e agora estavam perdidos
junto com os outros homens do capitão Braga, mas novamente fiquei na
minha e não falei nada. Ficamos em silêncio um tempo e o sorridente
capitão ainda sorria para nós e ninguém sorria de volta. Olhei
para o barco que nos trouxe até aquele ponto inútil e lembrei do
corpo do nosso jornalista que já ia começar a feder com aquele Sol
em cima dele o dia inteiro:
- É...tenente? Temos que dar um jeito com Ian lá dentro do barco.
- Ahhh, e tem mais essa ainda. Temos um homem morto lá dentro, precisamos enterra-lo antes de...o que nós faremos agora, capitão?
- Tenente, agora vocês podem voltar, oras. Desçam o rio.
- Você está brincando, senhor, não está? - Gomes tinha uma certa agonia em sua voz
- Como assim, cara?
- Viemos até aqui e perdemos dois de nossos homens, senhor. Não seria justo com eles nós simplesmente voltarmos de mãos abanando para esse Sol, entende?
Charlie murmurou
algo que não consegui ouvir ou ler em seus lábios o que era:
- Sinto muito, tenente. Vocês podem ficar e me ajudar na procura de meus homens e depois ajudar com essa bagunça sem fim por aqui. E eu realmente adoraria se vocês o fizessem, apesar de não serem suas ordens. Mas, do contrário, não há mais nada para se fazer por aqui, não para vocês, bicho.
Gerald respirou
fundo algumas vezes e pensou um momento no que fazer, a frustração
em seu rosto era clara e senti pena por ele e por Eric e por Ian e
por todos nós lá. Virou para nós e disse:
- Rapazes, vamos dar um jeito no corpo de Ian, ajudar um pouco nessa bagunça e depois vamos. Não quero uma palavra, apenas vamos. Depois vocês falem o que vocês quiserem e eu finjo que ouço tudo.
Ninguém falou nada
e seguimos para o barco, deixando o capitão sorrindo atrás de nós
e procurando algum sobrevivente no meio de todos aqueles corpos
nojentos.
As moscas já
dançavam por cima da capa que cobria o cadáver de Ian Goldberg e o
Sol parecia acelerar o cheiro de morte que começava a exalar. Aldo
olhou para nós e não disse uma palavra, sabia ficar na sua quando
devia, sabia a hora de ficar calado e isso vale ouro no nosso mundo.
August e eu pegamos o corpo de Ian e a capa descobriu um pouco sua
cabeça, que tinha uma aparência realmente asquerosa e aquilo me
embrulhou o estômago na hora, engoli um seco e continuei sem olhar
para aquilo, descemos do barco com cuidado e fomos andando até perto
das árvores, onde tinha menos lama e deixamos o corpo no chão
enquanto começávamos a cavar sua sepultura. Ficamos lá cavando por
não sei quanto tempo e nem uma palavra foi reproduzida, se não me
falha a memória. Quietos e obedientes, Gerald nos mandava fazer algo
e fazíamos, estávamos no automático, estávamos putos pra caralho.
Pablo Valdéz trouxe as coisas de Ian Goldberg e abri sua mochila
para ver o que tinha lá dentro. Revistas, livros, letras de música
e alguns poemas, bons poemas, bons contos, muitos desenhos, desenhos
do nosso cotidiano e desenhos inspirados naquele LSD poderoso.
Achei o desenho de quando Pablo e eu lutamos e ele estava de canto
rabiscando alguma coisa, eramos nós dois lutando lá naquele papel,
um ótimo desenho, guardei no meu bolso. O resto joguei tudo junto
com o cadáver, seus lápis e seu equipamento, seus cadernos e seus
escritos. Adeus, Ian. Desculpe-nos por sua morte desnecessária e
suja.
Terminamos de
enterrar nosso amigo e fomos ajudar a organizar aquele lugar,
passamos a tarde recolhendo corpos dos nossos homens e ajudando a
cavar algumas covas rasas para enterrarmos seus corpos, passamos a
tarde naquilo e já estava cansado demais. Dias subindo o rio para
chegar e ter que enterrar corpos? Só podia ser brincadeira. Mas
continuávamos cavando e jogando homens dentro dos buracos, tirávamos
as plaquetas de seus pescoços e munição de seus equipamentos e
fuzis e os jogávamos dentro das covas e cobríamos novamente com
aquela terra lamacenta. A tarde passou e joguei a pá no chão.
Foda-se. Não ia mais fazer aquilo, não ia fazer mais nada e voltei
para o barco, minutos depois August apareceu e se deitou no piso,
ficamos lá conversando por algum tempo e ninguém veio falar nada.
Trabalhamos duro, Gerald viu isso, acho que ele quis nos dar um
descanso. Comentei com ele sobre aquela história mal explicada dos
agentes ou sei lá o que que havíamos pegar, ele concordou comigo
mas também não quis fazer nada. Não tinha nada para se fazer
também. Pensamos em fumar um baseado mas estava preocupado com a
reação do capitão se aparecesse por lá, apesar de parecer mais um
hippie do que um militar, mas preferimos não arriscar e esperamos
até sairmos daquele lugar.
Todos voltaram para
o barco, inclusive o capitão, e comemos alguma coisa, finalmente.
Estávamos exaustos e já havia passado da hora de partir, agora que
nossa missão havia sido enfiada no cu da selva:
- Obrigado pela sua ajuda e a de seus homens nisso aqui, tenente. Eu ia ter que fazer isso sozinho já que ninguém apareceu aqui desde ontem à noite – agradeceu Charlie
- Não é nada, capitão. Viemos até aqui para nada, alguma coisa tínhamos que fazer antes de partirmos – disse Gomes
- Sinto muito pelos seus homens mortos. Aqui nós perdemos nossos melhores amigos que nem perdemos a chave do carro. É uma merda completa.
- Eu sei, senhor. Obrigado
Nos despedimos
depois de comer e conversar por uma meia hora e Aldo ligou o barco.
Capitão Braga abraçou o tenente e o agradeceu novamente por sua
ajuda, nos abraçou também e nos desejou uma viagem de volta em
segurança. Parecia ser um cara legal, apesar de sua história não
ter colado muito. O barco acelerou e levantou bastante água, a noite
começava a cair azulada e bela, os insetos começavam a cantar e
acasalar nas folhas das árvores e os mamíferos iam dormir um pouco,
lembrei de Eric von Demark e lembrei de Ian Goldberg e de toda a
loucura que vivemos subindo o lisérgico rio que agora descíamos, e
Gomes mandou Aldo acelerar aquela lata velha como nunca antes. Ele
obedeceu. Obedeceu e fomos. E voltamos.
Parabéns,amei!
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