Havia acabado de melhorar de uma forte gripe tomou conta de toda a minha capacidade de fazer alguma coisa por um mês, até arrotar me tirava as energias. Não tinha dinheiro nem poder para ir em um médico, até porque imaginei que aquilo fosse acabar rápido, gripe não dura mais que alguns dias. Um mês depois eu consegui finalmente sair da cama para cagar. Na segunda feira seguinte da minha melhora eu fui, evidentemente, trabalhar.
6h00min
Saí da cama às seis em ponto, desacostumado com a antiga rotina devido àquela maldita gripe que não queria me largar, mas levantei com os olhos cheio de sebo seco da noite e o cérebro ainda em estado de demência. Tentei tomar alguma coisa, mas não consigo comer nada por um período de pelo menos vinte e cinco minutos depois que acordo, antes disso só café preto e com pouco açúcar desce tranquilamente pela minha barriga gorda. Faço um café que transborda pelo bule e suja o velho fogão que me acompanhava há anos, queimo minha boca e minha língua como todos os dias, tento comer um pedaço de pão sem nada. Levanto, lavo a pouca louça que sujei e minha mão congela com a água fria que desce da torneira, olho para fora e o céu está mais cinza e triste do que qualquer outro dia. Chuto que fazia uns 5 graus e eu de cueca em uma cozinha, descalço e com a mão adormecida devido ao frio. Não havia reparado no tempo até aquele momento. Trato de subir correndo a escada, pego uma cueca qualquer, minha toalha que estava meio úmida ainda – odeio toalha úmida – e entro no banheiro.
No banheiro eu olho para o espelho enquanto tiro a cueca, e quando a tiro, continuo olhando para o meu rosto, minha barba por fazer, faço algumas caretas e canto algumas músicas olhando para o meu reflexo e me acho lindo por alguns segundos. Tento lutar contra o meu narcisismo e vou abrir o registro do chuveiro. A água gelada quase perfura o meu braço, então a abro de uma vez e tiro o braço de lá e, enquanto esperava a água esquentar, me olho no espelho mais uma vez. Balanço meu pinto que nem um girocóptero e entro no banho.
Por algum motivo que ainda desconheço, a água não estava caindo com força, não tinha muita pressão para jogá-la contra o meu corpo como nós vemos nos comercias. Então o chuveiro só molhava uma parte do meu corpo enquanto alguma outra parte congelava, a solução foi ficar girando lentamente enquanto tomava banho, que nem uma dançarina de algum talk show dominical. Brinquei um pouco que era uma dançarina, toquei um pouco de guitarra, baixo, fingi que era um escritor famoso em uma coletiva de imprensa. Saí naquele frio escandinavo e me sequei em questão de segundos.
Depois de alguns minutos procurando alguma roupa e blusa para aquele frio, lembrei que uma parte das minhas roupas de frio estavam na casa da minha mãe. E a outra parte estava tentando se secar no quintal, mas com esse tempo era mais fácil secar gelo. Peguei a camiseta do pijama - que ainda cheirava à cama quente, o que quase me fez voltar para a mesma - uma camiseta de manga curta, a mais grossa que pude achar, uma camisa de flanela preta que achei que nem existia mais. Uma meia com o tecido a ponto de rasgar, meus tênis novos que desejava que envelhecessem logo e minha calça jeans larga na canela e apertadíssima na virilha.
6h40min
Pretendia ter feito tudo o que acabei de registrar aqui em menos de trinta menos. Mas sempre pretendo isso. Perco-me no banho com os meus devaneios e esqueço de tudo o que está acontecendo. Principalmente se estiver frio e a água quente.
Tinha que entrar às 7h30min. E o transporte público não ia me ajudar. Ia, na verdade, mas com a competência que lhes cabe nos dias de hoje. Nula. Corro pela casa pra tentar colocar pelo menos um desodorante e não feder durante o dia. Tropecei e quase perdi um canino. Levantei. Bati a mão na camisa pra ver se não tinha sujado. Mando um beijo pro meu gato. Rua.
6h45min
Vejo que ainda não estou tão atrasado, diminuo o ritmo um pouco e coloco as mãos no bolso apertado da calça, quase não cabe e não consigo mais dar passos largos ou eles quebrarão. Sinto um vazio e lembro que deixei o celular em cima da escrivaninha, carregando. Checo o outro bolso e também não sinto nada. Enfio a mão o máximo que consigo pra dentro dele e tiro um papel. Dinheiro. Dinheiro o suficiente pra ir e voltar pra casa. A rua está completamente deserta, apenas alguns cães ladram por lá, nem as velhas senhoras que madrugam para cuidar de suas velhas casas estão nas suas calçadas. Nenhum ser humano por perto em um raio de centenas de metros. Ótimo. Continuo minha caminhada não tão rápida e nem tão lenta em direção ao trem.
7h00min
Espero o trem na plataforma, quarenta e cinco milhões de pessoas decidiram usar o trem hoje, aparentemente. Ou eu que não lembrava o quão cheio ele era? De qualquer modo, a massa de pessoas fedorentas, mal-educadas, feias e miseráveis, pessoas como eu e você, ao tentar entrar no trem, me empurraram pra dentro dele e consegui ficar em uma posição perfeita, digo, não ruim. Perfeito seria estar nas cobertas novamente.
Enfim, o lugar que acabei sendo jogado parecia que havia sido reservado para uma pessoa do meu tamanho, e ainda havia uma loira natural de olhos azuis com a bundaapertadíssima. O inconveniente causado não precisa de comentários. Mas cada um permaneceu na sua até a hora em que ela desceu em uma estação não muito distante daquela na qual entrei. Em seu lugar, uma gorda de cabelo enrolado e dentes de coelho ficou de frente pra mim. Três dedos da minha boca. Lembrei que não havia escovado os dentes antes de sair de casa.
Enfim, o lugar que acabei sendo jogado parecia que havia sido reservado para uma pessoa do meu tamanho, e ainda havia uma loira natural de olhos azuis com a bundaapertadíssima. O inconveniente causado não precisa de comentários. Mas cada um permaneceu na sua até a hora em que ela desceu em uma estação não muito distante daquela na qual entrei. Em seu lugar, uma gorda de cabelo enrolado e dentes de coelho ficou de frente pra mim. Três dedos da minha boca. Lembrei que não havia escovado os dentes antes de sair de casa.
7h30min
Atrasado, sem celular e com a boca podre. Mas estava quase chegando, poderia telefonar de um orelhão se precisasse e há chicletes anti-sépticos em qualquer boteco da cidade. Encontrava-me há duas estações da qual precisava descer, coisa rápida. Na penúltima, uma leva de pessoas maiores que a obesa que há pouco quase beijara minha boca pútrida, entra no vagão e me manda para a porta do lado oposto ao o que eu havia entrado. A porta que não abria na minha estação, evidentemente.
Com a mão cobrindo suavemente minha boca, para não perceberem que ela cheirava à fermentação noturna com café preto e pão seco, começo a pedir licença para todos os paulistas, nordestinos, negros, brancos, chineses, bolivianos, indígenas, bêbados, sóbrios, drogados, retardados, velhos, velhas, adolescentes, grávidas, folgados. Todos são folgados, eu sou folgado. Uma velha negra e nojenta me olha com cara feia e murmura alguma coisa pra si mesma. Todos são uns filhos da puta quando estão dentro do transporte público. Quando estão fora também, só que não tão próximos de mim.
A porta se abriu e ainda havia três pessoas na minha frente, usei toda a força do meu corpo, ouvi reclamações, xingamentos, maldições pelas minhas costas. Estava fora.
7h37min
Minha bunda estava completamente suada, minhas pernas também. Não há sensação no mundo pior do que essa, acreditem. Quem já passou por isso sabe muito bem do que falo. Se você estiver usando uma calça jeans então, é melhor se sentar e tentar não enlouquecer. Pensei em sentar por dois minutos só para secar um pouco minhas pernas, não tinha tempo. Saí andando a passos largos pela plataforma, subi a escada normal, não a rolante, o que não melhorou a situação da minha bunda/pernas. Não há sensação pior que essa no frio, simplesmente não há. Não há mesmo. Rua novamente.
Praticamente corria em direção ao lugar onde se encontra meu trabalho, que é há poucos metros de onde acabara de sair, pra falar a verdade eu ainda poderia me atrasar por até 20 minutos, mas como não apareci por um mês e não justifiquei nada, achei melhor impressioná-los e chegar no horário de sempre. Mas não corria risco nenhum.
7h48min
Entro e tento esconder meu cansaço e dou bom dia e explico bem pausadamente a minha ausência às secretárias do primeiro andar, não presto atenção em absolutamente nada que elas disseram, só queria subir. Meu suor escorria pela minha têmpora, interior da coxa e toda a extensão do tronco. Marco o horário que cheguei, subo para a minha sala e começo o trabalho.
As pessoas me saúdam com fervor, me sinto bem por isso. Todas tinham uma expressão de surpresa em seu rosto, surpresas até demais, estranhei um pouco aquilo tudo, não sabia que era tão querido assim naquela merda.
Sento-me e começo a fazer o trabalho de sempre, nada demais, organizo os papéis – quase nenhum é meu – penso em ir conversar com o meu chefe e justificar minha ausência. Preferi organizar tudo – que estava uma bagunça – e fazê-lo só no final do expediente.
10h22min
Não conversei muito com quase ninguém, revirei meu cubículo de pernas para o ar procurando alguns papéis e documentos importantes que havia deixado por lá desde a última vez em que pisei na firma. Lembrei que havia pegado todos e deixado na casa da minha namorada, que agora era ex, e que devia passar lá semana que vem e pegar tudo. Olho para a bagunça que fiz e dou risada sozinho.
Uma fome inexplicável toma conta do meu estômago. Vou deixar para o almoço. Não consigo e peço para segurarem as pontas enquanto desço e como um sanduíche qualquer lá embaixo.
O sol estava fraco, mas embelezava o céu cinzento e as poucas árvores da rua, do parque que ficava em frente à firma, tudo ia aos poucos sendo iluminado pela fraca e lenta luz do sol. Não encontrei nenhum carrinho vendendo sanduíches, também não sei de onde havia tirado essa idéia, já que nunca vi ninguém vendendo isso pelas redondezas. Segui o cheiro mais fascinante que senti durante semanas e fui parar de frente para um sujeito de bigode e pele morena vendendo espetos de carne. Dei R$1,50 em suas mãos, peguei meu espeto. Comi enquanto observava lentamente a ascendência da luz da manhã vencendo o cinzento e deprimente dia. Joguei fora o palito que restara, despedi-me do homem de bigode e pele morena, que nem escutou o que eu disse, e voltei ao trabalho.
10h39min
Organizo minha mesa novamente, sento-me, trabalho.
12h30min
Almoço. Um colega meu me arranja um sanduíche que trouxera de casa, havia dado uma festa na noite anterior e sobrou muita coisa, decidiu comer no serviço e dividir com algum pessoal. Não precisei gastar dinheiro com o almoço e papeamos um pouco sobre festas em família, trabalho forçado, algo sobre gripes e fui pegar café para beber.
13h30min
Fim do almoço. Vou à sala do meu chefe e ele não está, espero dez minutos e acho melhor voltar à minha mesa e adiantar algumas coisas. Ou melhor, correr e tentar fazer tudo, estava com um mês de atraso!
Adiantei o máximo que consegui, tirei uma grande parte da grossa camada de trabalho que se acumulou em cima das minhas costas durante a minha ausência.
15h30min
Arrumei as minhas coisas e me preparei para ir embora, não sem antes passar na sala do meu chefe e explicar o um mês de atraso.
Bati em sua porta.
“Eric?! O que faz aqui?”
“Ãh, senhor, eu fiquei fora muito tempo. Desculpa. Fiquei severamente debilitado em conta de uma gripe fortíssima e destruidora que peguei, tive que ficar quase que o mês inteiro fora”
Olhava pra mim com seus olhos pequenos e seu cigarro king size queimava lentamente em suas mãos
“Por isso vim aqui, no final do meu expediente, pra me justificar. Claro que não precisa me pagar esse mês, pelo amor de Deus, não vim aqui para isso. Só vim para justificar minha falta e pedir desculpas pelo atraso”.
“Eric” – ele olhou para mim e estava com os olhos arregalados – “Sinto, mas você está demitido há mais de três semanas. Tentamos ligar para você logo que começou a faltar. Mas você não atendeu e tivemos que demiti-lo, se você checar seu e-mail, verá nossa carta de demissão”
Havia dado o telefone da casa de minha mãe quando entrei na empresa, me mudei de casa e esqueci de mudar o telefone. Eles ligavam para a casa dela, e ela não atende ao telefone nem se enfiarem na cabeça dela.
Olhava para o rosto de dó do meu chefe.
“Vou receber meu cheque?”.
“Evidentemente, Eric” – respondeu com um sorriso no canto do rosto.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, uma vontade de fumar um charuto barato tomou conta de mim.
“O senhor sabia que o churrasco aqui da rua de baixo é muito bom?”.
“Ãh? Não, digo, mas vou experimentar. É, obrigado pela dica, Eric, meu rapaz”.
“Ok, tenha um bom dia, senhor”.
Rua.
15h47min
Segui em direção ao trem novamente. Não fazia mais frio, entrei em um canto, tirei a camiseta do pijama, amarrei a camisa em volta o corpo e usei só a grossa camiseta de manga curta que achei no guarda roupas. Caminhei pela passarela em direção ao guichê para comprar um bilhete. Remexi o bolso e me dei conta de que faltavam R$1,50 para completar a passagem. Voltei para a rua.
Vi meu antigo chefe descendo a rua em direção ao homem de bigode e pele morena. O frio se fora e o sol da tarde iluminava tudo à sua volta e preparava para se pôr. Não havia ninguém na rua, nenhum ser humano. Ótimo.
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