Acordei com o telefone tocando, era Felipe me chamando para andar de bicicleta. Isso às 7:00h e fazendo sete graus.
“Você perdeu a cabeça, homem?!” falei com uma voz arrastada e alcoolizada de sono. Desliguei.
Tinha o hábito de pedalar com Felipe e outros amigos nas manhas de domingo, ainda não sei o que deu na minha cabeça para aceitar tal convite desses. Domingo tem a estranha característica de ser o dia mais entristecedor da semana, mais filho da puta, por que acordar no começo da madrugada para andar de bicicleta, enfrentar um frio cortante e agoniante, transpirar, feder, me sujar e perder horas valiosas de sono só para andar de bicicleta? Bom, ainda não tenho a resposta. Mas algo sempre me fazia voltar todos os domingos às ciclovias, ruas e pontos turísticos da cidade, para pedalar com o mesmo pessoal de sempre.
Voltei a dormir um pouco, mas só um pouco, teria que acordar cedo de qualquer forma para ir tocar em um festival fuleira que arranjaram pra gente, cheio de hipsters achando que a vida é uma merda e que a morte é a solução mais sábia. Talvez estejam certos. O despertador começa a se intrometer nos meus sonhos às 8:30, tirando-me de um sono quente e aconchegante que tive durante uma noite que não era bem dormida assim há tempos.
Espero pelo telefonema de William para confirmar a presença do pessoal, ele liga e realmente não entendo nada o que ele fala. O sono estava quase me dominando de novo mas, com muito esforço, saio dos confortos do meu colchão localizado no chão do quarto, pego umas roupas que considerei de algum jeito estilosas, tomo um banho solitário e deprimente, com água quente que cai escassamente, fazendo com que eu tenha que ficar me mexendo constantemente para manter o corpo quente naquele banheiro gélido.
Devo ter comida alguma coisa qualquer, mas devia ter muita caloria porque consegui aguentar o dia inteiro com praticamente só aquilo no organismo. Meti duas camisetas – nunca faço isso – uma camisa preta de veludo e xadrez, calça velha, tênis velho, marrom e conservado por fora e fui dar de cara com o frio cortante das ruas do meu bairro.
A escassez de indivíduos da raça humana na rua é uma das coisas que mais me agrada ao sair de casa pela manhã. Vejo alguns cães revirando sacos de lixo, procurando algum pedaço de nada que algum porco deixou de comer, eles olham pra mim, eu olho pra eles, amo cães mas tenho trauma de infância deles, medo de abrirem suas bocarras gigantescas e cravarem seus dentes suavemente no meu rosto, como fizeram quando era pequeno. Eles voltam a revirar o lixo, e eu volto a revirar minha mente.
O agradável frio começa a me animar, no metrô as pessoas ramelentas tem rostos sonolentos, tristes, vagos. O metrô numa manha fria de final de semana tem uma capacidade de alegrar-me que ainda não sei o motivo. Penso que estou atrasado e que Will estará puto quando chegar, mesmo que ele disfarce, sei que estará puto quando eu der as caras na estação na qual combinamos de nos encontrar. Odeio atrasar os outros, mas uma força maior sempre me puxa pra isso.
Chego na estação e, da escada rolante, começo a procurar por William ou Fátima, esperando já a cara de bunda da mesma quando me ver atrasado. Não encontro Will, mas vejo o corpo obeso e flácido de Fátima esperando ao lado de um ponto de informações da estação. Rezo internamente para que ela não tenha me avistado e vou a passos largos em direção ao lado oposto das catracas do metrô, longe de todo mundo e de Fátima, evidentemente. Queria evitar ficar sozinho com ela, tinha um certo anseio e timidez de ficar ao lado dela, e ao lado de qualquer outra garota, mas realmente me sentia acuado perto de tamanha garota. Fico vendo uma das exposições que colocam eventualmente nos metrôs, exposições que ninguém nunca demonstrou interesse nenhum em disperdiçar três minutos e meio de suas vidas para vê-las. Não os culpo, quem tem tempo para coisas assim? E quem tem saco? Só turistas gringos perdidos por aqui que podem demonstrar algum tipo de interesse por coisas desse tipo. Olho em direção ao lugar onde Fátima estava quando a vi, e vejo-a conversando com William. Apresso-me para encontra-los.
“Aee, nem vi nenhum de vocês dois, estava lá atrás vendo aquelas coisas sobre árvores da Região Norte e essas merdas todas.”
“Tem uns livros lá do lado, quero dar uma olhada lá, e tem que esperar a Ana, a Fernanda e uma amiga delas vem aí eu acho, sei lá. Tem tempo ainda.” – William encontrava-se disposto a conversar comigo o máximo possível e evitar os ataques bipolares de Fátima.
Conversávamos assuntos superficiais e não vou me lembrar de nenhum importante, cada um comentava um livro diferente. Tiramos um sarro da preferência de Fátima por escritores melosos e sua má pronúncia para com os nomes dos escritores de origem européia. Até ela ria e eu me sentia mal por tirar sarro de uma pessoa tão perdedora quanto eu, talvez mais.
Ana e Fernanda chegaram juntas. Ana era um morena que também tinha uma pele que seguia a coloração do cabelo, digo, nas proporções. O cabelo era totalmente preto, sua pele era um pouco mais morena, sem ser negra, mestiça, mulata, essas coisas. Fernanda era o contrário nesse aspecto, tinha um cabelo ruivo tingido e curto sem ser muito artificial, tinha uma pele branquíssima, característica que provocava-me um tesão instantâneo em qualquer mulher, feia ou bonita, e no exato momento que bati o olho dele imaginei suas intimidades rosadas, combinando com sua pele branca como papel, coisa que, mais tarde no metrô, meus olhos conseguiriam provar. As duas não eram feias, não para o meu gosto, pelo menos. William já tinha suas dúvidas quanto a Ana que, por ironia clássica, tinha uma queda visível por ele. Cansei das vezes que falei pra cair em cima e foda-se a beleza, mas com garotas somos diferentes, não tem jeito.
“Falta quem? A Margot?” – Perguntei ansioso com a resposta
“Margot não vem não, é a Renata, amiga minha, deve chegar daqui a pouco.” – Ana respondeu e minha cara por dentro foi para o chão.
Margot é um sonho meu. Só isso que vou falar. Não posso falar mais porque nunca a vi, nunca conversei, nunca ouvi sua voz e nem vi mais de duas fotos dela. Mas queria ela muito, muito. Mas não ia ter, é claro.
Um abraço típico de garotas jovens e vejo Renata cumprimentando as duas outras garotas, enquanto Fátima, William e eu papeamos alguma porcaria qualquer. Renata, assim como Fernanda, tem uma pele branquíssima, usa óculos com um armação escura e tem um cabelo loiro um tanto quanto escuro, tem um ar simpático e extrovertido, o que facilita para o dia não ser uma merda. Ainda foco mais minha atenção em Fernanda e nos vistosos peitos de Ana, que são valorizados devido ao decote exagerado que escolhera usar, deixando Renata aos olhos de William.
No caminho, como sempre, William, Fátima e eu nos excluímos das garotas, digo, conversávamos com elas e tudo o mais, mas sempre voltávamos para nosso casulo com espaço para cinco – Fátima ocupava três lugares – conversávamos, tirávamos sarro de nós mesmos, do nosso peso, nossa feiura, nosso azar. No vagão interagimos mais com as garotas, momento no qual não me arrependo nem um pouco, já que no vai e vem do vagão, tive a sorte de reparar que os seios de Fernanda eram menores do que seu sutiã e camiseta, revelando-os assim, aos olhos de gordos oportunistas, como eu. Como mencionei, meus olhos comprovaram o que meu cérebro imaginou mais cedo, a coloração rosada de suas intimidades, coisa belíssima de se ver. Essa visão me acompanhou durante toda a manha e toda a tarde, quando também puxei William de canto e contei o que via, nos divertimos assim durante o domingo, um olhando com o canto do olho para o outro, com um olhar infantil e dando um sorriso de adolescente em apuros para transar.
Tentava impressionar as garotas com meu raso conhecimento musical e cultural, elas não se impressionavam mas também não menosprezavam. Mantemos esse nível durante todo o trajeto do metrô, quando fomos buscar Jane e seu acompanhante estranhíssimo fisicamente e sexualmente numa estação distante da qual nos encontramos.
Já estava nervoso pelo show, não gostava muito de tocar em público, fazia pelas mulheres na verdade, não que elas aparecessem, mas era melhor do que não tocar. Minhas mãos suavam e eu tremia, não conseguia falar de jeito nenhum nem agradecer ninguém, era sempre assim só de pensar em tocar. Tentei disfarçar conversando com o pessoal sobre o festival.
Eu levava só duas gaitas nos bolsos, não trouxera violão ou baixo ou guitarra ou bandolin, nada. Não tinha onde trazer nenhum desses instrumentos, haviam roubado meu case quando entraram em casa no começo do ano, desconfio que tenham levado o case pra embrulhar as velhas bebidas que ficavam na cristaleira, para não quebrar. “ok” – pensei. Realmente esperava que deixassem alguns instrumentos a nossa disposição no palco, ou que alguém que fosse tocar lá confiasse em mim e me emprestasse. A falta de vontade de tocar que eu tentava esconder era clara. Um lado meu não ligava em se apresentar, o outro queria só ficar sentado na grama, conversar e deixar que os outros tocassem e ganhassem créditos e mulheres fáceis.
Descemos para encontrar Jane e seu garoto, o sol já dava suas caras, dividindo o tempo com o frio. Nada mais bonito do que um dia ensolarado, sem nuvens e com um frio nórdico. E com os pequenos e rosados seios de Fernanda à disposição de seus olhos, haha.
Jane nos esperava na estação há algum tempo já, imagino. Quando chegamos, cumprimentou a todos, nos apresentou ao seu amigo, que acho que se chamava Dante, e partimos à procura de algum ônibus para chegar até o parque que tocariamos.
Quando já nos encontrávamos em um grupo numeroso, decidi parar de conversar com o pessoal. Amava, amo e sempre amarei fazer isso, ficar sozinho um pouco faz bem pra cabeça, principalmente quando o resto do pessoal está se matando pra provar quem é melhor que o outro, coisa que fazem sempre. Então sempre gosto de ficar quieto, o que faz alguns pensarem que sou um filho da puta, foda-se.
O parque estava repleto de jovens, todos com cabelos encaracolados e camisas xadrez, parece que era tipo uma lei isso. Mas pelo menos não encontrei nenhum metido a headbanger, com cabelos sebosos, camisetas pretas cheias de estampas ininteligíveis, balançando suas cabeças e deixando-me com vergonha por eles, dó e vergonha. Encontrei dois logo após pensar isso.
Sentamo-nos todos na grama e conversamos por uns momentos. Um homem que levava uma espécie de frigobar nas costas estava distribuindo água para o público. Fomos pegar, demorou uns cinco minutos para encher só três copos. Bebi a água e era com gás. Reguei o gramado.
“Melhor a gente ir indo lá atrás do palco e arranjar um jeito de falar com o pessoal, senão estamos fodidos.” – William falou e fomos ele e eu procurar uma maneira de conversar com os organizadores.
Arranjamos um modo de chegar até atrás do palco, Will e eu vimos uma quantidade invejosa de garotas acompanhadas de caras estúpidos, com cara de imbecil, aidéticos com um físico de trinta e sete anos, gays enrustidos com medo do que os outros pensam, namorando garotas inocentes para sentirem-se bem com eles mesmos. Passamos por todo o povo que se encontrava esperando pelo próximo som, enquanto o sistema de som tocava alguns clássicos dos anos 70, coisa boa.
Chegamos lá e explicamos toda a situação. Não havíamos trazido instrumentos, William não tinha como ligar o violão dele e eu não tinha como trazer os meus de jeito nenhum. A solução que arranjaram para o nosso problema foi a mais clara, rápida e eficiente que podiam ter pensado. Não tocamos.
Fomos dar uma mijada nos banheiros químicos e porcos que estava à disposição do público e pensávamos em uma desculpa que não nos envergonhasse par ao grupo que nos encontrávamos. E tudo o que queriamos era impressionar algumas delas. Sentamos novamente na grama, em cima de uns paninhos que não vou lembrar o nome precisamente agora, que Fátima sempre trazia para eventos assim, junto com algumas bebidas alcoólicas – que não trouxera dessa vez – e mais algumas coisas que Will trouxe, como salgadinhos e chocolates que escondemos da maioria para comermos sozinhos.
Will e eu, sozinhos como sempre, ainda nos divertiamos com a roupa larga de Fernanda, Ana continua dando em cima dele e ele não dava bola. Jane e Dante se agarravam, se abraçavam, se beijavam, se acariciavam, tiravam fotos, ignoravam a todos. Will se mandou pra um canto, Ana o seguiu. Invejei-o por isso. Senti que as pessoas sentadas na toalha de Fátima imaginavam que eles estavam se amando com fervor atrás das árvores do palco. Voltaram e William me explicou que não ficaria com ela, não estava afim de nada com ninguém. Compreendi, não faria igual, mas compreendi.
As pessoas continuavam em harmonia com suas parceiras, aquilo me entristecia. William estava triste por causa de um fora que havia levado. Fátima também estava triste, eu estava triste. As garotas estavam alegres, conversando, rindo, gritando com suas vozes estridentes irritantes. Jane se agarrava com Dante e riam carinhosamente um com o outro. Olhei para eles dois. Levantei e fui andar sozinho, sentar-me perto das árvores tentando chorar e não conseguindo, rezando para que Fátima não me seguisse, sabia que William não o faria, ele me entendia.
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