Casal conversando
sobre suas cicatrizes
Interna:
Quarto não muito grande no Belém com luzes apagadas e iluminado por
luz de fora. Pôr do Sol amarelado e laranja é visto de fora da
janela, mistura da poluição de São Paulo com o final da tarde.
Jovem casal deitado na cama com os rostos próximos um do outro e
feições relaxadas. O rapaz acaricia o rosto da garota e brinca com
seu cabelo usando os dedos. O rádio ligado deixa um som ambiente de
uma estação de música clássica.
Rapaz
(passando a mão no cabelo da companheira)
- Essa poluição toda tem alguma coisa boa no final de tudo.
Moça
(repara a janela)
- Como assim?
Rapaz
- Bom, essa cor bonita que a gente vê no céu é poluição humana com beleza natural, sabia?
Moça
- Humm, na verdade não, sr. Inteligência. E estou com preguiça para uma explicação completa agora. Mas eu sei que mais tarde você explica, não é?
Rapaz(gabando-se):
- Bom, é só mais uma das minhas qualidades, baby.
A moça ri e beija seu parceiro, um beijo longo e lento, as mãos do
jovem enterram-se nos cabelos cumpridos e claros de sua amante e vão
descendo por todo o corpo, aos poucos. Passa a mão novamente no
couro cabeludo da garota e para subitamente.
Rapaz(intrigado
com o que sentiu)
- O que é isso? Uma cicatriz?
Moça
- Sim.
Rapaz
- É um tanto quando monstruosa. Como você conseguiu?
Moça
(dá um tapa sem muita força no homem)
- Primeiramente, vá a merda (risos). E segundo, eu caí de uma escada há uns cinco anos e quase me matei na queda. Minha cabeça bateu na quina do último degrau e acordei no hospital quatro horas depois com treze pontos e essa maravilha na minha cabeça pelo resto da vida.
Rapaz
(ainda acariciando a região da cicatriz e zombando da garota)
- Tadinha de você. Mas que vergonha também, hein...um tombo desses depois de velha? Tava doidona? Haha
Moça
- (risos) Não. Tropecei no gato da minha amiga mesmo. Eu sei, é pior. Tenho também uma na perna de quando caí da bicicleta em cima de um esgoto a céu aberto...mas dessa vez eu estava chapada, ó.
O rapaz
não consegue segurar o riso.
Rapaz
(sério e tirando o lençol de cima de sua perna)
- Também tenho uma cicatriz de quando voei de bicicleta, olha só....Aqui, viu? Parece um sorriso, né?
Moça
(passando o dedo no machucado cicatrizado)
- Uhuum.
Rapaz
- Perdi o equilíbrio quando fui trocar de marcha, meu tênis escapou do pé de vela e quando bati na guia dei uma cambalhota no ar com a bicicleta e fui parar dentro da avenida, no corredor dos ônibus. Só não fui dessa vez porque era de manha e passavam poucos ônibus. Se fosse no meio da tarde, adeus meu velho.
Moça(impressionada)
- Caralho! Ficou com o cu na mão, né?
Rapaz
- Na verdade, não muito. Fiquei era com vergonha porque devia ter uns quatrocentos carros parados no farol olhando um gordo voar um metro e meio com uma bicicleta e aterrissar no meio da avenida deles. E nenhum dos filhos da puta pensou em perguntar "Ei, cara...tá vivo aí?" Só me levantei o mais rápido o possível com a bike e saí pedalando, fui perceber esse corte só quando cheguei em casa.
Moça(coloca
o dedo logo abaixo da sobrancelha dele)
- Eu tenho essa no joelho que é bem grande e rosa. Caí tentando descer uma rua de longboard, péssima ideia, eu sei. Olha como está ralado até hoje. E esse seu furinho aqui?
Rapaz
- Mordida de um dálmata da chefe do meu pai quando eu tinha cinco anos. Brinquei com ele o dia inteiro e o filho da puta encheu o saco bem na hora que eu ia embora. Virou do nada, encarou meus olhos e simplesmente aquela bocarra estava ao redor da minha cara dois segundos depois.
Moça(voz
de criança)
- Ahhh, mas que gracinha. Aposto que chorou por horas com a cara toda sangrando, né?
Rapaz
- Não lembro, mas devo ter chorado sim, lembro de ter ido ao banheiro e minha mãe desesperada, de resto não lembro muito bem, era muito pirralho ainda. Tem essa aqui também embaixo da marca da bicicleta, é menor mas está aí faz um bom tempo...quando inventamos de pular o muro da escola pra fumar um e me rasguei inteiro no caminho, minha calça, minha perna, meu pulso. No final ninguém sabia ainda bolar um baseado naquela época, então não conseguimos fumar. Ainda bem que faz muito tempo ou eu teria vergonha de contar isso pra qualquer ser.
Moça(rindo
da cara dele)
- Nossa, como você é loser, bicho. Não sei nem o que eu estou fazendo com você aqui (risos).
Rapaz
- Ahh então vai lá fazer coisas com pessoas menos imbecis. Isso aqui é VIVER, gata, VIVER! Todas essas marcas são tatuagens da VIDA!
Os dois
riem e dão outro beijo, menos demorado dessa vez mas com mesma
ternura. Param e ficam olhando um para o outro em silêncio por
alguns minutos
Rapaz(sério
novamente, encarando-a nos olhos verdes)
- Você vai me deixar alguma outra cicatriz?
Moça
(sorrindo)
- Hmm, não sei...você quer outra? Eu posso deixar várias.
Rapaz
- Bom, se for deixar alguma eu só peço que deixe do lado de fora. Não me marque por dentro que nem essas nos marcam na pele. Essas não são tão superficiais assim, gata.A moça permanece em silêncio por um instante, com certo desconforto em seu olhar e beija os lábios do rapaz depois.
Moça
- Posso já deixar uma se você não desligar esse rádio com essa música insuportável!
Rapaz
- Eu gosto de ouvir essas velharias às vezes, tem coisa boa.
Moça
- Eu imagino pilhas e pilhas de naftalina quando essas músicas começam em algum lugar. Apenas toneladas de velhotes com bolas de naftalina em seus bolsos e fumando cachimbos fedorentos.
Rapaz
(rindo da imaginação da garota e se aproximando de seus lábios)
- Então você é minha velhota cheirando a naftalina e com agulhas de tricô pra todos os lados.
Se beijam
novamente e as mãos sobem e descem enquanto a câmera desvia dos dois e
enquadra no cair do dia poluído e colorido do final da tarde.
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