A senhora Salamelli
parecia realmente irritada. Olhava diretamente para o jovem Pietro
com suas sobrancelhas arqueadas e maquiagem borrada enquanto o garoto
se encolhia todo na cadeira ouvindo a todo o tipo de porcaria que a
diretora poderia inventar para assusta-lo. A régua de 50cm feita de
alumínio estava repousando ao lado das mãos ossudas da mulher:
- Então? O que me diz agora? De novo mandam você até mim, Pietro. De novo! Você sabe o que vai acontecer com você a próxima vez que roubar da mochila dos seus colegas?
O garoto permaneceu
em silêncio, apavorado.
- Sabe?! Ela gritou e o assustou novamente
- Va...vai me mandar...pra...pra Almeida Pla...
- Iremos manda-lo para o Colégio Almeira Platos, sim. E você sabe que lá é um colégio só para rapazes...problemáticos como você, não sabe?
Silêncio da parte
do jovem e amedrontado Pietro. Mas aquele silêncio era tão mais
aterrorizante que preferiu se explicar
- Mas senhora Salamelli, eu não roubei da mochila do Iago, eu juro!
- Bom, não foi isso o que o seu colega e seu pai vieram me contar hoje de manha
- Não é verdade! Eu não peguei nada de ninguém! Aquela vez foi a única e eu nunca mais fiz de novo. Eu juro por Deus, senhora Salamelli!
A mulher pegou a
régua metálica e deu uma bela reguada no braço esquerdo do garoto
que estava apoiado na mesa. Ficou vermelho na hora e Pietro foi o
mais forte o possível para não chorar na frente daquela pessoa
detestável e do inspetor Kalil, que estava sentado quieto em um
canto da sala da diretora com um suave riso em seus lábios,
apreciando a punição do suposto delinquente juvenil.
- Como tem coragem de colocar o santo nome de nosso Pai em vão? Ó, meu Deus! Coloca-lo em meio a uma mentira deslavada como essa, no meio de um roubo a um amigo! - a diretora apoiou a cabeça nas mãos e tinha um ar de desprezo pelo garoto.
O menino Pietro
segurava seu braço machucado e sentia a região aonde a régua
acertou esquentar. Apertou o braço com sua mãozinha e desejou
pular em cima da diretora e morder seu pescoço para que ela
sangrasse e morresse naquela sala nojenta e velha em que ela passava
todos os dias de sua vida dos últimos trinta e cinco anos. Não era
a primeira vez que passava pela sala. Não era a primeira vez que
fora levado para aquela sala injustamente e todos sabiam que naquela
sala só entrava quem estava em sérios problemas. Quando o inspetor
Kalil entrou no meio da aula de história do professor Moacir e
chamou pelo nome de Pietro Gonzalez, ele sabia que estava na merda.
Quando se levantou todos os amigos começaram a rir e falar coisas
que assustaram o menino, foi de cabeça baixa até o inspetor e antes
de sair olhou para o seu professor de história careca e barbudo que
tinha um olhar de dó para o garoto. Kalil fechou a porta e deu um
tapa na cabeça do jovem, um tapa forte e depois foi levando-o aos
chutes até a sala da temível diretora Nora R.Salamelli, outrora
professora de línguas. Talvez até tivesse sorrido um dia e talvez
ela tivesse aproveitado a juventude também, mas agora já tinha se
esquecido disso e já tinha se esquecido de como sorrir e como fazer
os outros sorrirem. Agora era apenas a diretora Salamelli e aquilo
parecia ser a única coisa que ela sabia fazer e o ponto alto de sua
vida pessoal e profissional. Pietro não queria ser diretor, nem
professor, queria ser pintor, mas sabia que ninguém o apoiaria nisso
então não se iludia tentando explicar para as pessoas qual era o
sonho, apenas falava "médico" ou "advogado"
quando o perguntavam essas coisas e assim todos saiam achando que ele
teria um futuro. Mas a senhora Salamelli parecia não se importar
muito com isso e o inspetor Kalil certamente menos ainda, enquanto
chutava o traseiro do garoto escada acima e o perturbava
psicologicamente dizendo que estava fodido e que o mandariam para
Almeida Platos, ao lado de retardados e caras que eram incapazes de
limpar até a própria bunda. Pietro não sabia o que aquilo tudo
realmente queria dizer, mas com certeza todos na escola tinham medo
do colégio Almeida Platos e do que seus muros escondiam.
- Vamos, garoto! Sobe rápido que a diretora quer ter uma conversinha de homem com você. Você não é o machão que rouba seus amiguinhos? Então vai ser machão de enfrentar aquela cobra. VAMOS! - e deu uma joelhada nas costas do garoto, que foi ao chão de boca com a força do chute
- Aaaai.... - ele gemeu e se levantou do chão com o lábio cortado
- merda – resmungou Kalil baixinho – Levanta daí seu pirralho, antes que eu te acerte outra. E limpa esse sangue da sua boca e para de choramingar, bichinha. E se alguém perguntar você tropeçou na escada, entendeu?!
Pietro parou de choramingar na hora e segurou seu ódio por aquele
homem. Era um garoto forte, precisava ser forte. Apanhava toda semana
do pai ou da mãe e às vezes dos dois, a maioria das vezes sem
motivo para tal, mas sempre acabava apanhando e teve que aprender a
ser forte com a dor ou ia endoidecer mais cedo ou mais tarde.
No caminho até a diretora o inspetor Kalil não incomodou mais o
jovem, talvez com medo de outros cortes ou hematomas e uma possível
represália de sua chefe. Pietro se sentiu melhor com isso mas sentiu
também seu lábio inchar e o corte arder levemente, igual a um corte
de papel. Sentiu-se mal novamente quando parou em frente a porta da
bruxa e o inspetor cuzão bateu na porta três vezes e entrou sem
ouvir sinal algum da mulher antes.
E agora estava ali, sendo acusado novamente de roubo e com a boca
machucada por um brutamontes incapaz de demonstrar sentimento pra
qualquer coisa que não fosse um bife ou uma caneca de cerveja
gelada.
- Eu já comuniquei os seus pais e eles estão a caminho daqui, Pietro. Vamos ter uma conversa com eles.
Ele
permaneceu em silêncio e sem expressar nada por fora, mas por dentro
se tremeu todo de imaginar seu pai saindo de seu último dia de
férias para ouvir mais uma das peripécias que seu filho se meteu na
escola. Se estivesse bêbado então! Ferrou! Era capaz de tirar a
cinta na frente da diretora e do inspetor, abaixar a calça do filho
e espanca-lo ali mesmo até a hora que achasse que ele tivesse
aprendido a "lição". Era algo que ele sempre falava
quando terminava de surrar o garoto, "Agora que você aprendeu a
lição, espero que isso não se repita mais, filho" e falava
isso sempre com um estranho carinho na voz, o garoto não entendia
esse carinho repentino logo após uma surra daquelas e não conseguia
entender que lição era aquela que seu pai semanalmente queria
ensina-lo. Sabia que se um dia chegasse a ter filhos nunca tentaria
explicar uma lição de porrada pra eles, mas talvez o pai fosse
antigo demais e essa era a única maneira de ter um contato físico
com seu filho. O amava a seu jeito e o menino sabia disso. Era mais
inteligente do que a maioria e ninguém enxergava isso,
constantemente o julgavam de idiota ou rebelde e ele simplesmente não
dava a mínima. Não dava a mínima pra muitas coisas que falavam e
faziam com ele, sabia que não era lá o garoto mais sortudo do
mundo. Nenhuma das garotas da escola davam muita bola pra ele e os
poucos amigos que tinha eram aqueles que foram excluídos logo no
primeiro dia de aula, junto com ele, e eram aqueles amigos
descartáveis que só serviam para a solidão não tomar conta numa
idade tão nova assim. E as coisas pioraram depois que ele, num dia
em que estava triste com o mundo e com seus pais, por algum motivo
que não sabe explicar até hoje, pegou da mochila de sua colega de
classe Rachel um estojinho bordado cheio de moedas e um sapo de
pelúcia que a garota carregava sempre na mochila. A garota reclamou
para os pais, é claro, e para os professores, é claro, que
reclamaram para o Kalil, é claro, que levou, obviamente e com muito
gosto, o garoto até a senhora Salamelli. Naquele dia seus pais foram
chamados e seu pai chegou na sala da diretora vermelho como uma
pimenta. Ouviu tudo o que a diretora tinha a dizer, ouviu a confissão
do filho, deu-lhe um tapa na cara com tanta força que o garoto jura
que até o inspetor arregalou os olhos na hora. Depois levou-o para a
casa aonde a surra de verdade estava para começar. Aquilo havia
acontecido há seis meses. Agora o garoto esperava pela volta do pai
e sabia que dessa vez ele ia mesmo morrer de tanto apanhar. Abaixou a
cabeça e fechou os olhos, tentando esquecer tudo o que acontecia com
ele. Mas um impulso o fez levantar a cabeça e olhar pela janela
atrás da diretora Nora Salamelli, sim, o carro velho de seu pai
estava estacionando. Estacionou na vaga especial para os professores,
provavelmente já estava bêbado, pensou Pietro, sentiu uma
tremedeira tomar conta do seu corpo inteiro e até seu braço
avermelhado pela régua ficou frio. A diretora olhou para trás e
sorriu satisfeita com a chegada do pai do delinquente. O som da porta
batendo foi audível e o carro balançou todo. Ele não estava de bom
humor, como o garoto previu. Por que faziam isso com ele? Eles sabiam
que o pai iria espanca-lo por horas e sabiam o quanto aquilo dói,
talvez as pessoas fossem todas psicopatas querendo uma ver a outra
ser destruída. Talvez a senhora Salamelli nunca teve um filho para
espancar quando era preciso e agora fazia todos os pais baterem em
seus filhos quando chegassem em casa. Pietro pensou no azar que teria
uma criança que fosse filha da diretora e do inspetor. Com certeza
ela não sobreviveria por muitos anos, ou se tornaria um monstro que
nem os pais são, que nem o pai de Pietro era às vezes,
principalmente bêbado e de mal humor e quando o tiravam do seu
último dia de férias para ouvir mais uma que seu filhote aprontou
com os colegas.
- Agora que ele está subindo as escadas, quero que você conte tudo o que aconteceu e o que você roubou do seu amigo, ok Pietro? - agora sua voz havia mudado e estava parecendo com a do seu pai depois das surras
- Mas eu não roubei nada de ninguém, senhora Salamelli.
- Meu Jesus, garoto, essas suas mentiras não servem pra mais nada. Todos sabem o que você é e o lugar de onde você veio, nós sabemos que sua família não tem dinheiro e que você foi criado para ter que sobreviver. Mas você tem que aprender a conviver com os outros e....bom, deixemos essa conversa para quando o sr. Gonzalez estiver aqui, certo Kalil?
- Sim, Nora, com certeza – o inspetor parecia empolgado e talvez até excitado com a situação em que o garoto estava prestes a se encontrar.
Permaneceram em silêncio pelos próximos dois minutos, esperando
pela pesada mão de Victor Gonzalez bater na porta e entrar com sua
fúria ébria, procurando pelo filho causador de sua vergonha na
frente daquelas pessoas. E a porta não bateu, ele entrou de uma vez,
dois metros de carne um pouco mais escura que a do filho, cabelo
batido e roupas que provavelmente pegou na hora que saiu de casa
furioso com o garoto Pietro. Bateu a porta e olhou para a diretora e
para o inspetor, sem mirar o filho com os olhos ainda.
- Ahh, sr. Gonzalez. Um prazer revê-lo – disse a diretora com um sorriso mais falso do que seus peitos
- O que ele fez dessa vez? - Perguntou o pai visivelmente puto e bêbado.
A diretora pigarreou duas vezes e começou a contar
- Bom, o senhor bem lembra que essa não é a primeira vez que pegamos seu filho aprontando aqui dentro da escola, não é mesmo? - silêncio por parte do pai – Bom....é....houve aquela vez com o dinheiro e o brinquedinho da colega e aquela outra vez com o banheiro das meni....
- Eu sei o que meu filho fez e deixou de fazer, diretora. O que ele fez DESSA vez, foi essa a minha pergunta. Não perguntei o que ele fez há um ano e nem que a senhora citasse o que aconteceu antes...fui chamado para saber o que ele fez AGORA e é só isso que eu quero ouvir.
A diretora ficou sem o que falar por alguns segundos, apenas
encarando o pai com um olhar assustado, mas depois continuou.
- Bom, o pai de um colega de sala do seu filho, sr. Montagna, ligou e nos comunicou do desaparecimento de um estojo e de uma carteira de seu filho, Duda. Nós revistamos mochilas e encontramos o estojo na mochila do seu filho, sr. Gonzalez. Ele repete que não foi ele quem pegou mas essa semana nós notamos que ele anda comprando lanche na cantina todos os dias e até pagou um salgado para uma colega de sala. De onde pode ter vindo esse dinheiro, sr. Gonzalez?
O garoto estava em silêncio e sabia que o pai não estava lá para
ouvir suas palavras, apenas para ouvir a acusação e ter a sentença
decretada em casa, sem palavras, sem testemunhos. Apenas a palavra do
adulto no poder hierárquico mais alto e o carrasco que iria executar
o réu mais tarde, antes de dar um beijo de boa noite em sua testa.
Mas aí uma coisa inesperada aconteceu e o garoto ficou até sem o
que dizer na hora. Seu pai olhou para ele e perguntou:
- Você fez isso mesmo, garoto?
- Hãaã...éé...Não! Pai, eu peguei o estojo dele emprestado, ele me emprestou o estojo! Claro que estava comigo, foi a primeira coisa que eu disse, mas eu não roubei nada pai, eu juro!
- Ele nos contou essa história, sr Gonzalez, mas o filho do sr. Montagna disse que foi ele quem pegou, que ele viu o seu filho se abaixar e pegar o dinheiro de dentro da mochila.- tentou se retratar a diretora
- E então vocês simplesmente concluíram que foi o meu filho quem roubou? A partir das palavras de um moleque que provavelmente tem de dois a quatro empregados só para limparem sua bunda depois de sentar no troninho? Acham que não sei que esse Montaminhapica aí não é um dos principais colaboradores dessa espelunca, dona diretora? - Pietro sentiu o cheiro de cachaça saindo da boca do pai e estranhava o seu velho estar dando mais bronca na diretora do que nele.
- Sr. Gonzalez, pelo amor de Deus, não pense que tratamos os garotos aqui na escola a partir de sua condição financeira ou social...elas são todas as mesmas aos nossos olhos, apenas zelo pela segurança e pela inocência infantil que hoje em dia parece tão rara, não é mesmo?
- Não, não parece não, minha senhora. Me parece que estão discriminando o meu filho, porque eu vim aqui achando que ele tinha fodido tudo de vez mas eu lembro, minha senhora, mesmo estando bêbado que nem um gambá aquela hora eu me lembro quando ele chegou em casa na semana passada e me mostrou o estojo cheio de canetas coloridas e caras que seu amigo almofadinha havia emprestado para que desenhasse no caderno e em troca ele faria as lições de casa do sr. Calças de Ouro Montagna aí.
- Mas sr. Gonzalez, o estojo não é importante. O que queremos saber é de onde veio esse dinheiro que seu filho gastou na escola essa semana.
- De onde veio esse dinheiro? Que tal do meu bolso, senhora diretora? Que tal eu, um imigrante sem nada, ter conseguido um a mais trabalhando na porra das minhas férias e dei um dinheiro para o meu garoto poder gastar em alguma coisa pelo menos uma vez na sua vida? Que tal isso, sua diretora? Agora vocês me fazem sair de casa no último dia das minhas mais do que merecidas férias pra acusarem o meu filho de ROUBO? Que tipo de merda você pensa que é pra tratar minha família desse jeito? Ele já foi pego uma vez e eu o ensinei uma lição que ele nunca mais esqueceu aquela noite. Não foi, Pietro? - olhou para o garoto que respondeu balançando a cabeça com medo de todos os adultos do mundo naquele momento.
A diretora ficou novamente sem palavras na boca e o inspetor Kalil
se afundava no sofá de couro vagabundo. O sr. Gonzalez ainda estava
de pé com seus dois metros de altura, uma tática que sempre usava
para intimidar os outros desde que era o mais alto da turma na
escola. Não tirou os olhos dos da diretora desde que havia percebido
a injustiça com seu filho. E ninguém podia ser injusto com seu
menino além dele e da mãe do garoto. Nenhuma velha mal comida ou um
monte de merda que por algum motivo virou inspetor ia jogar o filho
contra o pai dessa maneira, sabia a laia que aquela escola chupava e
sabia quem eram as famílias que mandavam naquele lugar. Ele não era
tão ignorante quanto aparentava ser também. Podia não saber ler
muito bem ou não ser a pessoa mais racional do mundo, mas proteger a
família era sagrado para ele e todos os seus irmãos, primos, tias,
avós, pais, todos eles viviam sobre a regra básica de nunca ficar
contra a própria família. E aquilo era a coisa que ele mais se
orgulhava de ter feito bem até hoje.
Após alguns minutos de desconforto a diretora ainda não havia
conseguido encontrar palavras para dialogar com o pai bêbado do
aluno, então pensou no mais óbvio.
- Senhor, o senhor está bêbado, está fora da sua razão. Eu sei que é triste ter uma notícia de que seu filho é um delinquente – e ela percebeu na hora a má escolha de palavras quando os olhos do pai saltaram – mas....mas...precisa conversar...com...seu filho. Entende?
- Delinquente?
- Eu não quis dizer isso, senhor Gonzalez, me expressei errado.
Victor Gonzalez já ia explodir quando foi interrompido pelo inchaço
na boca de seu Pietro. A boca do garoto estava ficando roxa e um
pequeno fio de sangue começava a descer. O garoto percebeu o olhar
do pai para ele e abaixou a cabeça com medo de entregar Kalil e
apanhar mais no dia seguinte ou quando sua suspensão terminasse.
- O que é isso na sua boca, menino? Brigou de novo? Ele brigou com alguém também? - Perguntou o pai irritado para a diretora.
- Eu não sei o que aconteceu, na verdade, senhor. Ele entrou aqui assim, não sei se brigou com alguém.
Pietro olhou para o inspetor de relance e ele tinha uma expressão de
nervosismo mas seus olhos eram ameaçadores para o garoto, sabia que
sofreria nas mãos do inspetor se falasse algo. Abaixou a cabeça
- Com quem você brigou, Pietro? Você brigou ou se machucou sozinho? Me fala agora ou você sabe muito bem que vai ser pior.
Ele tremeu e sentiu uma lágrima querer sair pelos seus olhos.
Engoliu a saliva e todas as lágrimas possíveis.
- Pai, é que eu....
- O que?
- Ele me chutou quando estava subindo comigo até aqui e eu caí de boca no degrau, papai. Ele me deu um tapa também e vários outros chutes. - e esse foi o momento que ele mais se sentiu aliviado e livre nos últimos meses, olhou para Kalil que se levantava do sofá e já ia se explicando
- Como assim? Ele está louco? Eu chutei o garoto? Nunca! É mais uma mentira dele, diretora.
Mas a diretora não falou nada porque sabia que quem mentiu dessa vez
não foi o garoto, porque essa não foi a primeira vez que o inspetor
Kalil foi alvo de acusações do mesmo tipo. A diretora também sabia
que já estava atolada demais na merda com o pai do garoto pra tentar
salvar a pele de mais um que não sabia lidar com crianças. Victor
Gonzalez estava possuído de verdade e Pietro pode sentir a raiva de
seu pai crescer e ele ficar vermelho e seus poros exalarem o cheiro
forte do álcool, o garoto sorriu.
- Você...Você bateu no MEU filho? Você chutou o meu FILHO DA PORRA DE UMA ESCADA? É ISSO MESMO?
- N...não...não. É claro que não sr. Gonzalez, seu filho está inventando isso para se safar da bronca. Ele roub...roubou o amigo, senhor Gonzalez. Ele está mentindo.
- Ele não tá mentindo porra nenhuma, cara. Essa foi outra lição que eu ensinei pro Pietro, sabe. ELE NÃO MENTE. Não pra mim, pelo menos.
Inspetor Kalil ficou em silêncio apavorado com aquele brutamontes
alcoolizado de dois metros e poucos.
- Filho...Pietro, você não está mentindo pra mim, não é? - perguntou o pai, aproximando-se lentamente do inspetor
- Não, pai. Ele me bateu mesmo, e não foi a primeira vez que fez isso.
Nessa
hora o sangue de Victor borbulhou e ele avançou em Kalil, que tentou
um soco no estômago do gigante que não serviu pra nada além de
deixa-lo mais puto. Ele revidou com um murro com toda a força que
conseguiu juntar no maxilar de Kalil que o levou ao chão que nem um
pedaço abóbora podre. Na queda ele quebrou um abajur que parecia
ser bem caro e deslocou sua mandíbula que ficou torta que nem
naqueles filmes de terror. Como o murro não desmaiou o inspetor por
algum motivo desconhecido, ele se arrastou até o outro lado da sala,
com a boca torta sangrando enquanto a diretora assistia aquilo com
horror nos olhos e paralizada. Pietro sentia-se tão protegido
naquela hora que começou a rir do inspetor em silêncio. Victor foi
até o homem no chão e o chutou no estômago repetidas vezes
enquanto gritava com fúria na voz:
- NINGUÉM....ALÉM DE MIM....E DA MINHA....MULHER...ENCOSTAM UM DEDO....NA PORRA DO MEU......FILHO! VOCÊ ENTENDEU? VOCÊ ENTENDEU? NINGUÉM...NESSA PORRA...ENCOSTA O DEDO NA MINHA....PORRA! VOCÊ ENTENDEU?! SEU MONTE...DE....MERDA! - e cada chute era uma palavra que ele falava que era respondida com um gemido do homem agonizante ao chão
- PELO AMOR DE DEUS, SENHOR GONZALEZ! O SENHOR VAI MATA-LO! - gritou a diretora desesperadamente
Victor parou de chutar o homem, voltou-se para a diretora com seus
olhos vermelhos de raiva paternal e a diretora se encolheu na
cadeira, dando um grito de pavor. O homem furioso pegou a régua
metalizada e gigante da diretora. Com um golpe só ele a quebrou em
dois na nuca do inspetor Kalil, que desmaiou de vez. Um cheiro de
fezes começou a tomar conta do cômodo, uma poça amarelada saia
debaixo das calças do inspetor desmaiado. Victor levantou a cabeça
do inspetor pelos cabelos e falou para sua mandíbula destruída e
nariz quebrado:
- Acho que agora você aprendeu essa lição, não é meu rapaz? - e ele tinha na voz aquele estranho tom de compaixão que usava quando terminava de surrar o filho.
Silêncio foi a resposta vinda do inspetor
- Foi o que pensei. Vamos, Pietro. E dona monte de merda, não fale o santo nome em vão, tenha modos.
Jogou a metade da régua que não voou longe em cima da mesa da
diretora estática, pegou na mão de seu filho e bateu a porta quando
saíram daquele lugar fedendo a merda. Pietro ouviu o choro da mulher
com o susto que havia acabado de levar e imaginou que aquela foi a
última vez que entraria e sairia daquela sala. Olhou para seu pai e
o abraçou forte na altura da cintura, o pai afagou seus cabelos e
sorriu para o filho.
Entraram no carro e o pai deu partida no motor velho e barulhento.
- Sabe, garoto, pensei que devíamos aproveitar esse meu último dia de férias pescando na represa. O que acha?
- Vamos!
- Mas antes vamos comer uns tacos. Eu sei que você adora, não?
- Sim!
O pai sorriu para seu injustiçado filho:
- Aquele cara se borrou todo, você viu? - Perguntou Victor ao filho
- E se mijou todo depois!
Pai e filho riram. Ele deu ré no carro e saiu do estacionamento a
toda a velocidade, ainda tinham que comer e passar em casa para pegar
os equipamentos de pesca da família.
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