Cena: O paciente
Leonard Naujocks e o doutor Albert Serpens estão começando a
consulta. Naujocks parece exausto e está quase deitado no diva. Dr.
Serpens parece bem disposto em sua poltrona vinho.
O consultório é
retangular e espaçoso, com uma estante de mogno no canto esquerdo e
uma escrivaninha larga da mesma madeira na frente de uma janela com
bastante entrada para o Sol, em cima da mesa há papéis, canetas,
computador e alguns livros espalhados. Há alguns metros da mesa está
a poltrona vinho do doutor e o divã preto no qual o paciente está
acomodado. Os dois permanecem em silêncio um tempo, olhando um para
o outro.
AS: Como vai, Leonard?
Cara de cansado...
LN(olheiras e bocejo)
Mal. Minha mulher....
AS: Acha que está
traindo-o novamente?
LN: Não! Claro que
não...espero muito que não. A maldita me chutou a noite inteira!
Não dormi nada.
AS(ainda sério):
Brigaram, Leonard?
LN: Nada disso, me
chutou dormindo, achou que era um canguru pulando por aí, sei lá
eu. Acho que sonhou que estava dentro das engrenagens no Tempos
Modernos.
AS: ou então um
cachorro perseguindo um coelho
LN: É, não tinha
pensado nisso
Albert Serpens sorri
e vai aprofundando na terapia
AS(voz amigável): E
como vão as crianças, sr. Naujocks?
LN(bocejo demorado)
...Péssimas. Maria não fala comigo há uma semana e Junior t´´a
mal na escola. Chamaram os pais mas é laro que Berenice me fez ir
até lá e ficar com cara de babaca na frente do diretor e de uma
caralhada de professor, coordenador, orientador, sei lá o que mais,
tudo igual.
AS(olhar curioso):
Todos? O que ele fez de tão sério?
LN: Um professor
entrou na sala e o pegou praticando o que chamaram de discurso
antisemita. Acredito nisso? Uma semana de suspensão! Viu o que o
merdinha arruma pra minha cabeça? Disseram que estava até com o
cabelo penteado pro lado gritando em cima da mesa com a mão no
peito...meu Deus, vou coloca-lo no teatro quando chegar em casa.
AS: Você conversou com
ele sobre?
LN: Ainda não, acabei
de voltar da escola dela. Não ia nem passar aqui, passei porque era
caminho, nem comi direito desde ontem. Eu saí de noite e acabei num
karaokê, bêbado e cantando George Michael pra todo mundo que tava
por lá. Meus amigos sumiram, me deixaram lá cantando para umas
velhas cachaceiras. Filhos da puta, doutor, estou rodeado de filhos
da puta. Por todos os lados. Um taxista queria me levar até em casa
cantando marchinhas de carnaval porque estava sem rádio. Não tive
escolha, Dr. Serpens, abri a janela e vomitei tudo na lateral do
táxi. Eu avisei pra ele parar com aquilo, mas devia estar doido
também. Ele me expulsou do carro, queria me fazer limpar aquela
merda e eu chutei sua porta.
AS(abafando riso): E
como voltou pra casa, sr. Naujocks? Estava longe?
LN(nervoso): Estava há
milhas da minha casa, doutor! Tava puto! Fui andando mas voltei ao
juízo e achei um ônibus pra me tirar daquele centro logo.
AS: E você tinha algum
motivo pra beber no meio da semana?
LN(olhar confuso): E
precisa de um motivo pra se beber algum dia?
AS: Leonard, você já
pegou pra se perguntar se não é um alcoólatra? Digo, você sempre
me conta pelo menos uma ou duas histórias com álcool ou bebedeiras
homéricas quando sua mulher não está em casa ou quando você não
está em casa. Acho que você já passou do nível social, entende?
LN(relaxando novamente
no divã e bocejando): Não esqueça das bebedeiras quando não
consigo escrever ou em convenções sociais insuportáveis. E não
consigo escrever nem meu nome ultimamente.
AS: E as tais
convenções sociais?
LN: Ando aparecendo em
muitas ultimamente, entende?
AS(olhos para cima):
Sr. Naujocks, o senhor se importa se eu fumar aqui?
LN: Não, não. É o
seu consultório, oras.
Albert Serpens
levanta-se com calma e vai até uma gaveta em sua escrivaninha,
Retira seu cachimbo de madeira e pega o tabaco em um recipiente de
vidro trabalhado em sua mesa, volta para a poltrona vinho e começa a
preparar o cachimbo.
AS: Por favor,
continue, Leonard. Você dizia sobre esse seu problema com a
bebida...
LN(franzindo o cenho):
Não falei que era um problema, consigo segurar essa onda numa boa.
Você que tocou nesse assunto aí.
AS: Então sobre o que
você que falar?
LN(pensando): Não
sei...talvez sobre a minha teoria de que a primeira capa da Playboy
não era Marilyn Monroe. Nunca que aquela garota é a Marilyn,
doutor. Podiam ter colocado a Betty Boop, antes um desenho do que uma
farsante, né?
AS(desanimado): Não
sei, Leonard. Realmente não sei. Você disse que sua filha não
falava com você há uma semana. Por que isso?
A primeiras baforada
de fumaça sai da boca e do cachimbo do doutor Albert Serpens,
cobrindo-o em uma neblina por um momento.
LN: Belíssima fumaça,
doutor. Adoro o som do fumo queimando.
AS: Eu também,
Leonard.
LN: Me lembra uma
fogueira da Inquisição queima...
AS(impaciente):
Leonard, sua filha?
LN:(lembrando-se da
pergunta após um curto bocejo) Ahh, Maria não fala comigo porque
dei em cima da amiga dela. Ou isso é o que ela diz. Eu só servi
vinho pra garota enquanto minha filha estava lá em cima no banho e
quando ela chegou achou que eu estava dando em cima.
AS: Não tentou
explicar pra sua filha o que aconteceu?
LN(bem agitado): Claro
que tentei, dr. Serpens. Acha que gosto de ser tirado de tarado? Mas
ela é louca, minha família só tem doido, não acabei de falar
daquele pirralho nazista discursando contra os judeus no meio da
aula?! Comentei que a escola foi FUNDADA por malditos judeus? Eles
são loucos, doutor, são todos loucos e estão me deixando doido
igual a eles.
AS(ainda calmo perante o nervosismo do paciente): Mas a amiga não falou nada para explicar?
LN: NÃO! Estou rodeado
de filhos da puta, doutor. Todos querendo que eu os arruma e os
carregue nas costas.
Doutor Albert
Serpens levanta novamente sem falar nada e vai até um quadro com a
imagem de Sartre que fica ao lado da estante de mogno repleta de
livros.
AS(encarando o quadro
com uma das mãos no bolso): Sabe, Leonard, desconfio mesmo que seu
problema nada mais é do que um estresse crescente e inacabável que
o seu trabalho e vida familiar causam, ocasionando esses seus ataques
de fúria, melancolia e descaso na voz e nas palavras quando fala da
sua família, entende o que digo aqui?
LN: huum...
Serpens puxa o
quadro com a mão, que abre para o lado como uma portinhola,
revelando a porta de um pequeno cofre com abertura eletrônica.
LN(olhando para o
cofre): Um clássico...
O doutor abre o
cofre e tira de seu interior escuro dois copos e uma garrafa de
conhaque.
As(voltando para sua
poltrona vinho): Enfim, você está sob um estresse significante, não
seria grave normalmente, mas acho que pode levar à depressão se
você não der um jeito nisso agora.
LN(arregalando os olhos
para a garrafa) E o senhor tem em mãos o melhor dos remédios para me
passar, não?
AS(enchendo os copos):
Acho que seria melhor o senhor tentar escrever mais e dar mais
atenção à sua família. Diminuir a birita também, sr. Naujocks.
LN(nervoso): É isso?
Eu pago cento e cinquenta pilas a hora para você vir e me dizer
isso? Acha que não sei disso? (vira o copo num gole e coloca-o de
frente para a garrafa, indicando para o doutor enche-lo novamente) Se
eu soubesse não teria vindo aqui, iria gastar essa grana no spa, num
restaurante, no bar, na porra do puteiro, não sei...
Albert olha para o
paciente reclamar com o copo numa mão e o cachimbo soltando um
filete de fumaça densa na outra, sem silêncio.
LN(decepcionado): E eu
não consigo escrever nada, estou com aquela porra de bloqueio. Achei
que isso não existia, mas agora parece que estou naquela perseguição
no Blues Brothers. Minha ideia imortal está no carro, correndo de
todo o contingente da polícia de Chicago e eu sou o capitão da
polícia, com uma garrafa na mão e minha família embaixo das rodas
da minha viatura .(para de falar por um momento) Ou então
amordaçados no porta molas. Jogaram gás mostarda nas minhas ideias,
doutor. Estão todas destruídas e mortas, com o pulmão todo furado
e corroído pelo gás. (bebe mais um trago do copo que Serpens
encheu) Trincheiras e mais trincheiras cheias de ideias mortas e
vazias. Perdi a cabeça em algum lugar, doutor Serpens.
Doutor Serpens bebe
um gole de conhaque e puxa seu cachimbo.
AS: Novamente, Leonard,
você está passando por muito estresse, só isso. Não que não deva
se preocupar, mas procure um esporte ou algo do tipo, arranje um
animal de estimação que também ajuda muito.
LN: Não! Sem esportes,
última competição que participei eu passei o resto do dia
vomitando na privada.
AS: Que tipo de
competição, Leonard?
LN: Era um de quem
comia mais cachorros quentes em meia hora. Comi uma cacetada e em
cheguei em terceiro. Sou um desastre em tudo, cara...
AS(impaciente, com
olhos virados para cima): Você não se cuida e não cuida mais da
sua família, está decepcionado com o jeito que as coisas estão em
casa, está cansado dos problemas que seus filhos lhe aparecem e que
não fazem o menor sentido, não aguenta mais o imperialismo de
Berenice, tudo isso o leva a esse bloqueio de ideias, ou melhor, à
sua crença de que nenhuma de suas ideias vale alguma coisa, porque
você acha que não vale nada nem para a sua família. Mas pare para
pensar como seria a vida deles sem você, Leonard. Onde estariam?
Leonard Naujocks
termina seu copo novamente e permanece em silêncio na sala iluminado
pelo Sol e os dois homens se encaram .
LN(mais nervoso e
agitado do que antes): Estariam na merda sem mim! Só não estão na
merda agora porque eu seguro essa merda inteira com as mãos, tenho
que segurar toneladas e mais toneladas de coco mole todos os dias
para que eles não tenham que engolir tudo de uma vez. E o que ganho
por isso? Mais uma pratada de bosta pra comer, nem um bife ou Coca
pra ajudar a engolir. Merda pura mesmo.
Albert permanece em
silêncio e deixa Leonard falar, mas o paciente cala-se e olha para o
teto, deitado no divã.
AS(apoiado no braço da
poltrona vinho): Você toca algum instrumento, sr. Naujocks?
LN: Não encosto em um
há tanto tempo quanto Mama Cass num microfone. Tenho tendinite, não
consigo tocar nem cinco minutos de uma tocata bachiana ou um
estudozinho de Villa-Lobos, meus dedos ficam duros que nem nervos de
boi congelados e quando me dou conta estou parecendo o Aleijadinho
Superstar tendo uma convulsão.
AS: Já pensou em
meditação? Sei que é cético quanto a essas coisas, mas foi
comprovado cientificamente os seus bene...
LN(cortando o doutor):
Ahh, eu lá tenho cara de quem perde tempo meditando? Mantra?
Iluminados e nirvana e essa porra toda...prefiro a iluminação de um
poste de rua no meu rosto, caído chapado em alguma viela com um
bando de vagabundos e
AS(também
interrompendo e levantando-se para andar pela sala novamente)
Leonard, desculpe, mas desde quando você se tornou um idiota? Nas
suas primeiras consultas você parecia mais controlado e focado do
que hoje. O senhor não se atém a nada além das suas neuroses
familiares e crises clássicas de bloqueio de criatividade que
qualquer escritor, melhor, qualquer artista tem durante sua
existência. Você precisa se acalmar, pare e medite um pouco, porra
(bate em sua mesa com pouca força, ajeita o cabelo com as mãos e
deixa o cachimbo na mesa)
Leonard olha
intrigado para o alterado doutor Serpens.
AS: Vá para a casa
hoje e pense nessa sua bebedeira e na sua família, sr. Naujocks.
Lute contra a sua submissão perante sua mulher e não eduque a porra
dos seus filhos como nazistas ou patricinhas mimadas que só existem
para arrancar o seu dinheiro.
Leonard olha
perplexo para o psicólogo, que volta à razão e dirige-se ao
paciente
AS(sem graça e
envergonhado): Bom, sr. Naujocks...me desculpe...me alterei aqui...
LN(relaxando): Tudo
bem, se você não estivesse certo eu até quebraria essa garrafa,
depois de esvazia-la, na sua costela. Mas você infelizmente está
certo, então foda-se isso.
Os dois se encaram e
os copos estão vazios.
LN: Já vou indo,
cansado demais para ficar de papo pro ar aqui, doutor. Ainda tenho
uma tarde inteira para dormir. Uma última para a viagem de volta?
(ergue o copo para Serpens)
AS(aparente alívio na
voz) Por Freud, sim.
Doutor Alber Serpens
vai até a garrafa de conhaque e enche os copos com doses generosas.
Passa para o paciente que vira metade em um gole.
LN(suspirando):
Caramba, esse conhaque é bom demais!
AS(após um gole): Eu
sei, ganhei de um paciente. Vira e mexe a gente ganha alguma coisa
nesse ramo. Pacientes agradecidos por alguma coisa que ainda não sei
o que.
LN: Bom, até semana
que vem então, doutor Serpens...eu acho. Aquela tarde não será
dormida sozinha, haha. (vira o resto do conhaque e entrega o copo a
Albert)
AS: Até, Leonard.
Leonard Naujocks
aperta a mão do doutor, sai e fecha a porta do consultório
Albert Serpens vai
até sua mesa e senta-se de frente com o Sol na janela, bebendo o
conhaque.
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