quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Paciente Leonard Naujocks, sessão nº 21.


Cena: O paciente Leonard Naujocks e o doutor Albert Serpens estão começando a consulta. Naujocks parece exausto e está quase deitado no diva. Dr. Serpens parece bem disposto em sua poltrona vinho.

O consultório é retangular e espaçoso, com uma estante de mogno no canto esquerdo e uma escrivaninha larga da mesma madeira na frente de uma janela com bastante entrada para o Sol, em cima da mesa há papéis, canetas, computador e alguns livros espalhados. Há alguns metros da mesa está a poltrona vinho do doutor e o divã preto no qual o paciente está acomodado. Os dois permanecem em silêncio um tempo, olhando um para o outro.

AS: Como vai, Leonard? Cara de cansado...

LN(olheiras e bocejo) Mal. Minha mulher....

AS: Acha que está traindo-o novamente?

LN: Não! Claro que não...espero muito que não. A maldita me chutou a noite inteira! Não dormi nada.

AS(ainda sério): Brigaram, Leonard?


LN: Nada disso, me chutou dormindo, achou que era um canguru pulando por aí, sei lá eu. Acho que sonhou que estava dentro das engrenagens no Tempos Modernos.

AS: ou então um cachorro perseguindo um coelho

LN: É, não tinha pensado nisso

Albert Serpens sorri e vai aprofundando na terapia

AS(voz amigável): E como vão as crianças, sr. Naujocks?

LN(bocejo demorado) ...Péssimas. Maria não fala comigo há uma semana e Junior t´´a mal na escola. Chamaram os pais mas é laro que Berenice me fez ir até lá e ficar com cara de babaca na frente do diretor e de uma caralhada de professor, coordenador, orientador, sei lá o que mais, tudo igual.

AS(olhar curioso): Todos? O que ele fez de tão sério?

LN: Um professor entrou na sala e o pegou praticando o que chamaram de discurso antisemita. Acredito nisso? Uma semana de suspensão! Viu o que o merdinha arruma pra minha cabeça? Disseram que estava até com o cabelo penteado pro lado gritando em cima da mesa com a mão no peito...meu Deus, vou coloca-lo no teatro quando chegar em casa.

AS: Você conversou com ele sobre?

LN: Ainda não, acabei de voltar da escola dela. Não ia nem passar aqui, passei porque era caminho, nem comi direito desde ontem. Eu saí de noite e acabei num karaokê, bêbado e cantando George Michael pra todo mundo que tava por lá. Meus amigos sumiram, me deixaram lá cantando para umas velhas cachaceiras. Filhos da puta, doutor, estou rodeado de filhos da puta. Por todos os lados. Um taxista queria me levar até em casa cantando marchinhas de carnaval porque estava sem rádio. Não tive escolha, Dr. Serpens, abri a janela e vomitei tudo na lateral do táxi. Eu avisei pra ele parar com aquilo, mas devia estar doido também. Ele me expulsou do carro, queria me fazer limpar aquela merda e eu chutei sua porta.

AS(abafando riso): E como voltou pra casa, sr. Naujocks? Estava longe?

LN(nervoso): Estava há milhas da minha casa, doutor! Tava puto! Fui andando mas voltei ao juízo e achei um ônibus pra me tirar daquele centro logo.

AS: E você tinha algum motivo pra beber no meio da semana?

LN(olhar confuso): E precisa de um motivo pra se beber algum dia?

AS: Leonard, você já pegou pra se perguntar se não é um alcoólatra? Digo, você sempre me conta pelo menos uma ou duas histórias com álcool ou bebedeiras homéricas quando sua mulher não está em casa ou quando você não está em casa. Acho que você já passou do nível social, entende?

LN(relaxando novamente no divã e bocejando): Não esqueça das bebedeiras quando não consigo escrever ou em convenções sociais insuportáveis. E não consigo escrever nem meu nome ultimamente.

AS: E as tais convenções sociais?

LN: Ando aparecendo em muitas ultimamente, entende?

AS(olhos para cima): Sr. Naujocks, o senhor se importa se eu fumar aqui?

LN: Não, não. É o seu consultório, oras.

Albert Serpens levanta-se com calma e vai até uma gaveta em sua escrivaninha, Retira seu cachimbo de madeira e pega o tabaco em um recipiente de vidro trabalhado em sua mesa, volta para a poltrona vinho e começa a preparar o cachimbo.

AS: Por favor, continue, Leonard. Você dizia sobre esse seu problema com a bebida...

LN(franzindo o cenho): Não falei que era um problema, consigo segurar essa onda numa boa. Você que tocou nesse assunto aí.

AS: Então sobre o que você que falar?

LN(pensando): Não sei...talvez sobre a minha teoria de que a primeira capa da Playboy não era Marilyn Monroe. Nunca que aquela garota é a Marilyn, doutor. Podiam ter colocado a Betty Boop, antes um desenho do que uma farsante, né?

AS(desanimado): Não sei, Leonard. Realmente não sei. Você disse que sua filha não falava com você há uma semana. Por que isso?

A primeiras baforada de fumaça sai da boca e do cachimbo do doutor Albert Serpens, cobrindo-o em uma neblina por um momento.

LN: Belíssima fumaça, doutor. Adoro o som do fumo queimando.

AS: Eu também, Leonard.

LN: Me lembra uma fogueira da Inquisição queima...

AS(impaciente): Leonard, sua filha?

LN:(lembrando-se da pergunta após um curto bocejo) Ahh, Maria não fala comigo porque dei em cima da amiga dela. Ou isso é o que ela diz. Eu só servi vinho pra garota enquanto minha filha estava lá em cima no banho e quando ela chegou achou que eu estava dando em cima.

AS: Não tentou explicar pra sua filha o que aconteceu?

LN(bem agitado): Claro que tentei, dr. Serpens. Acha que gosto de ser tirado de tarado? Mas ela é louca, minha família só tem doido, não acabei de falar daquele pirralho nazista discursando contra os judeus no meio da aula?! Comentei que a escola foi FUNDADA por malditos judeus? Eles são loucos, doutor, são todos loucos e estão me deixando doido igual a eles.

AS(ainda calmo perante o nervosismo do paciente): Mas a amiga não falou nada para explicar?

LN: NÃO! Estou rodeado de filhos da puta, doutor. Todos querendo que eu os arruma e os carregue nas costas.

Doutor Albert Serpens levanta novamente sem falar nada e vai até um quadro com a imagem de Sartre que fica ao lado da estante de mogno repleta de livros.

AS(encarando o quadro com uma das mãos no bolso): Sabe, Leonard, desconfio mesmo que seu problema nada mais é do que um estresse crescente e inacabável que o seu trabalho e vida familiar causam, ocasionando esses seus ataques de fúria, melancolia e descaso na voz e nas palavras quando fala da sua família, entende o que digo aqui?

LN: huum...

Serpens puxa o quadro com a mão, que abre para o lado como uma portinhola, revelando a porta de um pequeno cofre com abertura eletrônica.

LN(olhando para o cofre): Um clássico...

O doutor abre o cofre e tira de seu interior escuro dois copos e uma garrafa de conhaque.

As(voltando para sua poltrona vinho): Enfim, você está sob um estresse significante, não seria grave normalmente, mas acho que pode levar à depressão se você não der um jeito nisso agora.

LN(arregalando os olhos para a garrafa) E o senhor tem em mãos o melhor dos remédios para me passar, não?

AS(enchendo os copos): Acho que seria melhor o senhor tentar escrever mais e dar mais atenção à sua família. Diminuir a birita também, sr. Naujocks.

LN(nervoso): É isso? Eu pago cento e cinquenta pilas a hora para você vir e me dizer isso? Acha que não sei disso? (vira o copo num gole e coloca-o de frente para a garrafa, indicando para o doutor enche-lo novamente) Se eu soubesse não teria vindo aqui, iria gastar essa grana no spa, num restaurante, no bar, na porra do puteiro, não sei...

Albert olha para o paciente reclamar com o copo numa mão e o cachimbo soltando um filete de fumaça densa na outra, sem silêncio.

LN(decepcionado): E eu não consigo escrever nada, estou com aquela porra de bloqueio. Achei que isso não existia, mas agora parece que estou naquela perseguição no Blues Brothers. Minha ideia imortal está no carro, correndo de todo o contingente da polícia de Chicago e eu sou o capitão da polícia, com uma garrafa na mão e minha família embaixo das rodas da minha viatura .(para de falar por um momento) Ou então amordaçados no porta molas. Jogaram gás mostarda nas minhas ideias, doutor. Estão todas destruídas e mortas, com o pulmão todo furado e corroído pelo gás. (bebe mais um trago do copo que Serpens encheu) Trincheiras e mais trincheiras cheias de ideias mortas e vazias. Perdi a cabeça em algum lugar, doutor Serpens.

Doutor Serpens bebe um gole de conhaque e puxa seu cachimbo.

AS: Novamente, Leonard, você está passando por muito estresse, só isso. Não que não deva se preocupar, mas procure um esporte ou algo do tipo, arranje um animal de estimação que também ajuda muito.

LN: Não! Sem esportes, última competição que participei eu passei o resto do dia vomitando na privada.

AS: Que tipo de competição, Leonard?

LN: Era um de quem comia mais cachorros quentes em meia hora. Comi uma cacetada e em cheguei em terceiro. Sou um desastre em tudo, cara...

AS(impaciente, com olhos virados para cima): Você não se cuida e não cuida mais da sua família, está decepcionado com o jeito que as coisas estão em casa, está cansado dos problemas que seus filhos lhe aparecem e que não fazem o menor sentido, não aguenta mais o imperialismo de Berenice, tudo isso o leva a esse bloqueio de ideias, ou melhor, à sua crença de que nenhuma de suas ideias vale alguma coisa, porque você acha que não vale nada nem para a sua família. Mas pare para pensar como seria a vida deles sem você, Leonard. Onde estariam?

Leonard Naujocks termina seu copo novamente e permanece em silêncio na sala iluminado pelo Sol e os dois homens se encaram .

LN(mais nervoso e agitado do que antes): Estariam na merda sem mim! Só não estão na merda agora porque eu seguro essa merda inteira com as mãos, tenho que segurar toneladas e mais toneladas de coco mole todos os dias para que eles não tenham que engolir tudo de uma vez. E o que ganho por isso? Mais uma pratada de bosta pra comer, nem um bife ou Coca pra ajudar a engolir. Merda pura mesmo.

Albert permanece em silêncio e deixa Leonard falar, mas o paciente cala-se e olha para o teto, deitado no divã.

AS(apoiado no braço da poltrona vinho): Você toca algum instrumento, sr. Naujocks?

LN: Não encosto em um há tanto tempo quanto Mama Cass num microfone. Tenho tendinite, não consigo tocar nem cinco minutos de uma tocata bachiana ou um estudozinho de Villa-Lobos, meus dedos ficam duros que nem nervos de boi congelados e quando me dou conta estou parecendo o Aleijadinho Superstar tendo uma convulsão.

AS: Já pensou em meditação? Sei que é cético quanto a essas coisas, mas foi comprovado cientificamente os seus bene...

LN(cortando o doutor): Ahh, eu lá tenho cara de quem perde tempo meditando? Mantra? Iluminados e nirvana e essa porra toda...prefiro a iluminação de um poste de rua no meu rosto, caído chapado em alguma viela com um bando de vagabundos e

AS(também interrompendo e levantando-se para andar pela sala novamente) Leonard, desculpe, mas desde quando você se tornou um idiota? Nas suas primeiras consultas você parecia mais controlado e focado do que hoje. O senhor não se atém a nada além das suas neuroses familiares e crises clássicas de bloqueio de criatividade que qualquer escritor, melhor, qualquer artista tem durante sua existência. Você precisa se acalmar, pare e medite um pouco, porra (bate em sua mesa com pouca força, ajeita o cabelo com as mãos e deixa o cachimbo na mesa)

Leonard olha intrigado para o alterado doutor Serpens.

AS: Vá para a casa hoje e pense nessa sua bebedeira e na sua família, sr. Naujocks. Lute contra a sua submissão perante sua mulher e não eduque a porra dos seus filhos como nazistas ou patricinhas mimadas que só existem para arrancar o seu dinheiro.

Leonard olha perplexo para o psicólogo, que volta à razão e dirige-se ao paciente

AS(sem graça e envergonhado): Bom, sr. Naujocks...me desculpe...me alterei aqui...

LN(relaxando): Tudo bem, se você não estivesse certo eu até quebraria essa garrafa, depois de esvazia-la, na sua costela. Mas você infelizmente está certo, então foda-se isso.

Os dois se encaram e os copos estão vazios.

LN: Já vou indo, cansado demais para ficar de papo pro ar aqui, doutor. Ainda tenho uma tarde inteira para dormir. Uma última para a viagem de volta? (ergue o copo para Serpens)

AS(aparente alívio na voz) Por Freud, sim.

Doutor Alber Serpens vai até a garrafa de conhaque e enche os copos com doses generosas. Passa para o paciente que vira metade em um gole.

LN(suspirando): Caramba, esse conhaque é bom demais!

AS(após um gole): Eu sei, ganhei de um paciente. Vira e mexe a gente ganha alguma coisa nesse ramo. Pacientes agradecidos por alguma coisa que ainda não sei o que.

LN: Bom, até semana que vem então, doutor Serpens...eu acho. Aquela tarde não será dormida sozinha, haha. (vira o resto do conhaque e entrega o copo a Albert)

AS: Até, Leonard.

Leonard Naujocks aperta a mão do doutor, sai e fecha a porta do consultório
Albert Serpens vai até sua mesa e senta-se de frente com o Sol na janela, bebendo o conhaque.

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