quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O cão ladrava pelas ruas...




O cão ladrava pelas ruas de um bairro residencial qualquer, em uma cidade movimentada qualquer, pra ele não fazia diferença. O céu já estava escuro e o cão andava de cabeça e cauda para baixo, com frio e procurando algum saco de lixo para revirar, talvez achando um osso com fiapos de carne ou resto do que os bichos maiores deixavam para fora de suas moradias. Abocanhou um saco branco parado na sarjeta e o levou até um canto escuro, aonde a luz forte daquele poste não o revelava na calada da noite. Mordeu até rasgar o nó que fechava o saco e jogou todo o seu conteúdo no chão: papéis sujos, úmidos, palitinhos azuis sujos de amarelo nas pontas, "Merda", pensou o cão, e foi andando pelo meio daquela rua escura e parcialmente inóspita.
Carros passavam apressados pelo cão, com seus donos xingando e discutindo entre si. O cão ia pela calçada quando avistava ou ouvia um carro com outros animais dentro se aproximando, já havia perdido companheiros para aqueles animais e aprendeu da forma mais cruel como se portar naquelas ruas aparentemente calmas e vazias. Ia passando por uma casa pintada toda de azul e, em frente ao portão, percebeu uma pequena pilha de sacos de lixo e de mercado. Foi empolgado em direção ao lixo e olhou para os lados procurando algum outro cachorro que quisesse disputar a posse daquele lixo. Estava tudo limpo e ele seguiu alegre para os restos deixados pelos humanos. Abriu um dos sacos lá mesmo e se deparou com um cheiro maravilhoso quando enfiou o focinho dentro, fuçou e fuçou e agarrou restos de uma lasanha em um prato de plástico. Lambeu o prato até sentir que não havia nenhum vestígio e pariu para a próxima sacola, aonde achou um pouco de arroz, feijão e o seu preferido, o prato da noite, carne. Bom, um pedaço de osso com fiapos e gordura, mas mesmo assim era carne e devorou tudo com vontade e sua cauda balançava com entusiasmo em movimentos involuntários. Achou um pouco mais de comida e umas frutas podres em outra sacola mas não teve tempo de comer porque um homem saiu de uma de suas casas e expulsou o cão a pauladas, gritando e amaldiçoando-o em língua humana. O cão saiu daquele rua o mais rápido o possível, com a barriga cheia e rindo do homem que queria espanca-lo.
O cão divertia-se e distraia-se com os cheiros e criaturas da noite, andava com o focinho apontando para o chão, guiando-se mais pelos cheiros daquelas ruas do que pelo que seus olhos viam. Já parecia estar bem de noite e o cão parou para dar uma cagada no calçada. Estava terminando quando viu um vulto acizentado passar de uma calçada a outra numa velocidade impressionante, seus olhos já ficaram em alerta e foi à procura do vulto que tinha passado atrás de um carro e não saído de lá. Foi calmamente em direção ao carro e, conforme se aproximava, sentia aquele cheiro ficando mais forte, um cheiro que de alguma forma sempre o instigava e o deixava furioso. Chegou perto da roda do carro e começou a cheirar tudo o que podia, enquanto aquele aroma que vinha do vulto estava no seu ápice. Chegou na roda traseira e o gato saiu correndo em um pinote só pela rua, o cão começou a correr o máximo que podia e deu uns latidos para o gato, mandando-o parar. O gato provavelmente não entendia a língua dos caninos e correu e correu até achar um muro de uma escola e dar um jeito de subi-lo enquanto via o cão diminuir a velocidade e olhar para gato parado lá em cima, sereno e imóvel como se não tivesse quase sido despedaçado por um cão de rua. O cão rosnou para o gato, que respondeu com um miado agudo e despreocupado. Pulou o muro e caiu do lado de dentro da escola, aonde foi tratar de sua vida e o cão fez o mesmo, seguindo para uma praça onde avistou uns seres fazendo algo.
Três humanos estavam sentados nos bancos fazendo alguma coisa e bebendo o que parecia água para o cão. Sentiu sede e foi se aproximando deles, alerta para qualquer hostilidade vinda daqueles seres do sexo masculino. Tudo parecia bem e ele chegou aonde os três estavam sentados, eles conversavam em sua língua e tentavam chamar a atenção do cão que se aproximava deles. O cão roçou na perna de um e cheirou sua mão, um dos homens começou a afagar os pêlos sujos e fedidos do cão e parecia não se importar com isso, "tomara que ele não cheire a pata depois", pensou. Os três olhavam para ele e faziam brincadeiras com o cão, que se sentia um tanto quanto à vontade naquela praça escura, na presença daqueles três outros animais. Viu aquela água na mão deles e abriu a boca e pôs a língua pra fora, como se estivesse pedindo pela água. Os homens comentaram algo entre eles e um deles esticou a garrafa para o cão cheirar, tinha um cheiro forte e o cão não se lembrava de ter sentido um cheiro assim. Se interessou e o homem deixou um copo até a metade com aquela água no chão, para ele beber. Meteu a língua dentro do copo e aquilo tinha um gosto estranho demais, forte demais e quase fez o cão sair daquele lugar, mas aquela água esquentou sua língua e sua garganta e ele se sentiu bem com aquilo e deu mais umas linguaradas no copo. Os humanos pareciam se divertir com aquela cena e o cão, após sorver metade da quantidade de líquido que tinham lhe dado, deitou embaixo do banco onde eles estavam e ficou lá por um tempo. Se sentiu estranho depois de alguns minutos deitado lá, tonto e com o corpo mole, levantou-se e deu uma volta pela praça, cambaleava um pouco de um lado para o outro e ouviu os humanos dando risadas, Não entendia o que estava acontecendo e deitou-se novamente próximo aos homens, ficou lá um bom tempo, sentindo-se tonto e mole, estranhamente alegre, enquanto os três homens brincavam e conversavam com ele. Colocaram mais daquela água no copo do cão e ele bebeu um pouco mais. Passado uns trinta minutos os homens se despediram do cão e foram embora, deixando-o com o seu porre, sozinho.
O cão vadiou mais um tempo na praça, deu mais umas linguaradas no copo até não atingir mais o líquido no fundo do recipiente e foi dar uma volta novamente pelas ruas. Havia muito silêncio e solidão naquele bairro aquela noite, pensou ter sentido frio, mas ainda estava zonzo e anestesiado pela água mágica que os humanos deram-lhe na praça. Andou e andou e começou a sentir muita sede, não sabia aonde poderia arranjar água naquela solidão de ruas apagadas e sonolentas. Parou ao lado de um carro e deu uma bela e longa mijada em sua rua até se sentir completamente aliviado e até mais leve. Subiu umas ruas e o cheiro dos outros cachorros era forte, casas de humanos formavam um grande corredor com seus portões grandes, pequenos arame farpado e cercas elétricas, árvores fazendo sombras nas sombras da noite e o cão andava ébrio no meio daquele corredor e aquilo reacendeu uma estranha e esquecida fagulha de memória na mente do cão, aquelas casas e aqueles portões lhe eram mais familiares do que pareciam, as árvores na porta e os cachorros vizinhos pareciam ser algo vívido em sua cabeça, de alguma forma, mas o efeito da água mágica o fez esquecer logo daquela fagulha que tentava se acender no fundo de seu inconsciente e voltar sua atenção para a noite que vivia agora. Passado alguns metros, um cachorro começou a latir furiosamente para o cão, que se assustou mas não perdeu o andar na frente do semelhante trancado do lado de dentro do portão. Latiu de volt dizendo: "Imbecil, fica preso aí e só sai quando o deixam", o outro ouviu e respondeu nervoso "Seu vagabundo sujo, fica ladrando e só come quando tem um lixo que ainda não foi revirado por outro cachorro vadio", "Fresco", "Vira lata". E seguiu seu rumo, ignorando o latido de outros cachorros que quiseram se intrometer na discussão. O cão aproveitava sua aparência de lobo para obter mais respeito vindo dos outros seres, os cachorros da rua latiam até vê-lo passar calmamente, não dando bola, e depois calavam-se novamente perante seus longos pêlos escurecidos em umas partes, esbranquiçados em outras e orelhas levantadas, deixando parecer que havia se perdido de sua alcateia.
Chegou ao final daquele corredor de caninos acordando seus donos e ainda se sentia baleado e confuso e estranhamente alegre pela água amarga que havia tomado, "Podia ter dado mais uns goles", lamentou, mas aquela água havia deixado-lhe com mais sede do que antes e pensou que foi melhor não ter tomado mais daquela coisa mesmo.
O sono e o cansaço atingiram finalmente o pobre cão vagabundo e agora somavam-se à sede que o atormentava. Não se sentia mais tão tonto ou quente, apenas cansado e muito sonolento, continuou andando e enxergou de longe uma espécia de recipiente na calçada, se aproximou e tinha água lá dentro. Água de verdade! Estava suja mas não importava para ele naquele momento, bebeu até se sentir cheio e hidratado novamente, bebeu metade da água que havia dentro daquele pote de sorvete que alguma velha tinha deixado para os animais que moravam nas ruas. Saiu da calçada com a cauda involuntariamente empolgado e avistou uma grande árvore que o deixaria protegido durante o resto da noite caso algo acontecesse. Deitou perto do grosso tronco daquela árvore anciã, no final de alguma rua igualmente velha, e se sentiu muito bem. Comeu, bebeu, perseguiu, brigou de certa forma e agora iria dormir até a hora em que a luz do dia esquentasse os seus grossos e longos pêlos sujos. Sorriu e dormiu em questão de segundos.

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