O cão ladrava pelas
ruas de um bairro residencial qualquer, em uma cidade movimentada
qualquer, pra ele não fazia diferença. O céu já estava escuro e
o cão andava de cabeça e cauda para baixo, com frio e procurando
algum saco de lixo para revirar, talvez achando um osso com fiapos de
carne ou resto do que os bichos maiores deixavam para fora de suas
moradias. Abocanhou um saco branco parado na sarjeta e o levou até
um canto escuro, aonde a luz forte daquele poste não o revelava na
calada da noite. Mordeu até rasgar o nó que fechava o saco e jogou
todo o seu conteúdo no chão: papéis sujos, úmidos, palitinhos
azuis sujos de amarelo nas pontas, "Merda", pensou o cão,
e foi andando pelo meio daquela rua escura e parcialmente inóspita.
Carros passavam
apressados pelo cão, com seus donos xingando e discutindo entre si.
O cão ia pela calçada quando avistava ou ouvia um carro com outros
animais dentro se aproximando, já havia perdido companheiros para
aqueles animais e aprendeu da forma mais cruel como se portar
naquelas ruas aparentemente calmas e vazias. Ia passando por uma casa
pintada toda de azul e, em frente ao portão, percebeu uma pequena
pilha de sacos de lixo e de mercado. Foi empolgado em direção ao
lixo e olhou para os lados procurando algum outro cachorro que
quisesse disputar a posse daquele lixo. Estava tudo limpo e ele
seguiu alegre para os restos deixados pelos humanos. Abriu um dos
sacos lá mesmo e se deparou com um cheiro maravilhoso quando enfiou
o focinho dentro, fuçou e fuçou e agarrou restos de uma lasanha em
um prato de plástico. Lambeu o prato até sentir que não havia
nenhum vestígio e pariu para a próxima sacola, aonde achou um pouco
de arroz, feijão e o seu preferido, o prato da noite, carne. Bom, um
pedaço de osso com fiapos e gordura, mas mesmo assim era carne e
devorou tudo com vontade e sua cauda balançava com entusiasmo em
movimentos involuntários. Achou um pouco mais de comida e umas
frutas podres em outra sacola mas não teve tempo de comer porque um
homem saiu de uma de suas casas e expulsou o cão a pauladas,
gritando e amaldiçoando-o em língua humana. O cão saiu daquele rua
o mais rápido o possível, com a barriga cheia e rindo do homem que
queria espanca-lo.
O cão divertia-se e
distraia-se com os cheiros e criaturas da noite, andava com o focinho
apontando para o chão, guiando-se mais pelos cheiros daquelas ruas
do que pelo que seus olhos viam. Já parecia estar bem de noite e o
cão parou para dar uma cagada no calçada. Estava terminando quando
viu um vulto acizentado passar de uma calçada a outra numa
velocidade impressionante, seus olhos já ficaram em alerta e foi à
procura do vulto que tinha passado atrás de um carro e não saído
de lá. Foi calmamente em direção ao carro e, conforme se
aproximava, sentia aquele cheiro ficando mais forte, um cheiro que de
alguma forma sempre o instigava e o deixava furioso. Chegou perto da
roda do carro e começou a cheirar tudo o que podia, enquanto aquele
aroma que vinha do vulto estava no seu ápice. Chegou na roda
traseira e o gato saiu correndo em um pinote só pela rua, o cão
começou a correr o máximo que podia e deu uns latidos para o gato,
mandando-o parar. O gato provavelmente não entendia a língua dos
caninos e correu e correu até achar um muro de uma escola e dar um
jeito de subi-lo enquanto via o cão diminuir a velocidade e olhar
para gato parado lá em cima, sereno e imóvel como se não tivesse
quase sido despedaçado por um cão de rua. O cão rosnou para o
gato, que respondeu com um miado agudo e despreocupado. Pulou o muro
e caiu do lado de dentro da escola, aonde foi tratar de sua vida e o
cão fez o mesmo, seguindo para uma praça onde avistou uns seres
fazendo algo.
Três humanos
estavam sentados nos bancos fazendo alguma coisa e bebendo o que
parecia água para o cão. Sentiu sede e foi se aproximando deles,
alerta para qualquer hostilidade vinda daqueles seres do sexo
masculino. Tudo parecia bem e ele chegou aonde os três estavam
sentados, eles conversavam em sua língua e tentavam chamar a atenção
do cão que se aproximava deles. O cão roçou na perna de um e
cheirou sua mão, um dos homens começou a afagar os pêlos sujos e
fedidos do cão e parecia não se importar com isso, "tomara que
ele não cheire a pata depois", pensou. Os três olhavam para
ele e faziam brincadeiras com o cão, que se sentia um tanto quanto à
vontade naquela praça escura, na presença daqueles três outros
animais. Viu aquela água na mão deles e abriu a boca e pôs a
língua pra fora, como se estivesse pedindo pela água. Os homens
comentaram algo entre eles e um deles esticou a garrafa para o cão
cheirar, tinha um cheiro forte e o cão não se lembrava de ter
sentido um cheiro assim. Se interessou e o homem deixou um copo até
a metade com aquela água no chão, para ele beber. Meteu a língua
dentro do copo e aquilo tinha um gosto estranho demais, forte demais
e quase fez o cão sair daquele lugar, mas aquela água esquentou sua
língua e sua garganta e ele se sentiu bem com aquilo e deu mais umas
linguaradas no copo. Os humanos pareciam se divertir com aquela cena
e o cão, após sorver metade da quantidade de líquido que tinham
lhe dado, deitou embaixo do banco onde eles estavam e ficou lá por
um tempo. Se sentiu estranho depois de alguns minutos deitado lá,
tonto e com o corpo mole, levantou-se e deu uma volta pela praça,
cambaleava um pouco de um lado para o outro e ouviu os humanos dando
risadas, Não entendia o que estava acontecendo e deitou-se novamente
próximo aos homens, ficou lá um bom tempo, sentindo-se tonto e
mole, estranhamente alegre, enquanto os três homens brincavam e
conversavam com ele. Colocaram mais daquela água no copo do cão e
ele bebeu um pouco mais. Passado uns trinta minutos os homens se
despediram do cão e foram embora, deixando-o com o seu porre,
sozinho.
O cão vadiou mais
um tempo na praça, deu mais umas linguaradas no copo até não
atingir mais o líquido no fundo do recipiente e foi dar uma volta
novamente pelas ruas. Havia muito silêncio e solidão naquele bairro
aquela noite, pensou ter sentido frio, mas ainda estava zonzo e
anestesiado pela água mágica que os humanos deram-lhe na praça.
Andou e andou e começou a sentir muita sede, não sabia aonde
poderia arranjar água naquela solidão de ruas apagadas e
sonolentas. Parou ao lado de um carro e deu uma bela e longa mijada
em sua rua até se sentir completamente aliviado e até mais leve.
Subiu umas ruas e o cheiro dos outros cachorros era forte, casas de
humanos formavam um grande corredor com seus portões grandes,
pequenos arame farpado e cercas elétricas, árvores fazendo sombras
nas sombras da noite e o cão andava ébrio no meio daquele corredor
e aquilo reacendeu uma estranha e esquecida fagulha de memória na
mente do cão, aquelas casas e aqueles portões lhe eram mais
familiares do que pareciam, as árvores na porta e os cachorros
vizinhos pareciam ser algo vívido em sua cabeça, de alguma forma,
mas o efeito da água mágica o fez esquecer logo daquela fagulha que
tentava se acender no fundo de seu inconsciente e voltar sua atenção
para a noite que vivia agora. Passado alguns metros, um cachorro
começou a latir furiosamente para o cão, que se assustou mas não
perdeu o andar na frente do semelhante trancado do lado de dentro do
portão. Latiu de volt dizendo: "Imbecil, fica preso aí e só
sai quando o deixam", o outro ouviu e respondeu nervoso "Seu
vagabundo sujo, fica ladrando e só come quando tem um lixo que ainda
não foi revirado por outro cachorro vadio", "Fresco",
"Vira lata". E seguiu seu rumo, ignorando o latido de
outros cachorros que quiseram se intrometer na discussão. O cão
aproveitava sua aparência de lobo para obter mais respeito vindo dos
outros seres, os cachorros da rua latiam até vê-lo passar
calmamente, não dando bola, e depois calavam-se novamente perante
seus longos pêlos escurecidos em umas partes, esbranquiçados em
outras e orelhas levantadas, deixando parecer que havia se perdido de
sua alcateia.
Chegou ao final
daquele corredor de caninos acordando seus donos e ainda se sentia
baleado e confuso e estranhamente alegre pela água amarga que havia
tomado, "Podia ter dado mais uns goles", lamentou, mas
aquela água havia deixado-lhe com mais sede do que antes e pensou
que foi melhor não ter tomado mais daquela coisa mesmo.
O sono e o cansaço
atingiram finalmente o pobre cão vagabundo e agora somavam-se à
sede que o atormentava. Não se sentia mais tão tonto ou quente,
apenas cansado e muito sonolento, continuou andando e enxergou de
longe uma espécia de recipiente na calçada, se aproximou e tinha
água lá dentro. Água de verdade! Estava suja mas não importava
para ele naquele momento, bebeu até se sentir cheio e hidratado
novamente, bebeu metade da água que havia dentro daquele pote de
sorvete que alguma velha tinha deixado para os animais que moravam
nas ruas. Saiu da calçada com a cauda involuntariamente empolgado e
avistou uma grande árvore que o deixaria protegido durante o resto
da noite caso algo acontecesse. Deitou perto do grosso tronco daquela
árvore anciã, no final de alguma rua igualmente velha, e se sentiu
muito bem. Comeu, bebeu, perseguiu, brigou de certa forma e agora
iria dormir até a hora em que a luz do dia esquentasse os seus
grossos e longos pêlos sujos. Sorriu e dormiu em questão de
segundos.
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