domingo, 27 de março de 2011

Eric e O Suiço Vermelho no mundo do devaneio.

Que tudo no mundo tende a dar errado já é do conhecimento geral, certo? Mas passava por uma fase de constante azar e aquilo me deprimia assustadoramente, já não aguentava mais passar o Victorinox no braço esquerdo e ver os filetes rubro correndo pelo meu braço em direção ao chão, em alguma direção que não fosse mais para alguma veia importante. Eram essas as cenas que satisfaziam minhas deploráveis madrugadas, noites essas que eu passava em branco por opção, muitas eram feriados ou às vezes férias e eu simplesmente rasgava a minha epiderme até a derme, e vazavam quantidades mínimas, porém vistosas, de sangre. Me inebriava com a minha desgraça todas as madrugadas e parecia querer mais e mais, coisa de adolescentes como vocês já sabem.
Não sei porque quero escrever esse relato dos meus dias aqui, é um modo de manter acesa essa chama que me dá gosto pela escrita e leitura, algo que me faz parecer culto e inteligente, postando em redes sociais diariamente os livros que lia e os que pretendia ler. Não que eu não gostasse ou que não goste de ler, veja bem, amo e sempre amei esse hábito, mas fazia questão de mostrar para todos o que lia e batia no peito com orgulho falando das dezenas de livros que havia lido no começo de tal ano. Apenas um jeito de conseguir atenção de alguma garota que curtisse um leitor assíduo, frequentador da Livraria Cultura e da Paulista.
Outra coisa interessante é que passava horas na Cultura e simplesmente não comprava nada, ficava lá pegando livros e folheando-os, lendo uma ou outra nota de rodapé, do editor, orelhas, passagens e etc, isso quando não avançava nos de Arte ou importados e tentava me mostrar como a um diplomata, que de tudo tinha conhecimento e admirado era por milhares, centenas de milhares de homens e mulheres que queriam ser como ele ou ter alguém como ele, um sincero amante da boa leitura, das línguas europeias e do conhecimento geral e dos mais diversos assuntos, desde o que andava na moda até os mais antigos textos, autores, culturas e costumes do mundo e dos animais.
Vivia fantasiando com a fama, dinheiro e mulheres. Festas nas quais eu chegava com toda a modéstia e humildade e era ovacionado e admirado por todos os presentes, pedindo autógrafos, contando piadas e sacando do incrível puxa-saquismo humano que ilumina nossos relacionamentos desde o início dos tempos. Era "Eric isso" e "Eric aquilo" pra tudo quanto era lado, eu sorria timidamente e me sentava num sofá e lá passava o resto da noite conversando, contando piadas, me drogando, conhecendo fãs, músicos, artistas e poetas. E no final da noite sempre me apareciam duas ou três garotas para fechar aquele momento com chave, cadeado, baú e até pregos de ouro. No dia seguinte eu acordava no meio da tarde só para entrar  no estúdio que tinha dentro de casa, tocar, criar, calejar, transar e recomeçar, renovar toda aquela gigantesca onda de felicidade que havia tomado conta da minha vida nos últimos anos, e que eu tinha certeza que duraria para toda a vida tal fama conseguida à base de muito suor, dedicação, contatos, paciência, ovadas e um tanto de sorte.
Mas no final das contas sempre me via de volta em frente ao computador, os meus instrumentos pairando minha cabeça e estava com o suiço vermelho em mãos, escancarado e olhando para o meu lado esquerdo, manchas fortes brotavam como numa cena de filme trash e me sentia revigorado, completo, feliz, e corria para o banheiro para poder estancar a hemorragia que, com certeza, deixaria a marca de sua visita em mim por um longo tempo.
Passado um tempo que gostava de admira-las, tratava-as como a um ferimento de guerra, assim como um velho veterano, já lunático por causa da idade e das mortes que vira em vida, olhava para aquilo como se tivesse ganho por servir meu país com amor e bravura, um tiro de fuzil dado no estômago e que, por intervenção divina, havia conseguido me safar depois de meses no hospital do exército. E anos depois da guerra, depois de todo o sofrimento que presenciei há poucos metros de distância e ajudei a criar, rasgava os botões da velha camisa listrada no bar, já certamente alcolizado, e mostrava o ferimento para todos os companheiros e madames que lá estavam, todas me olhando como em um filme antigo, com olhos arregalados e as mãos cobrindo a boca com um ar de atiradas e promiscuas.
Mais uma vez me encontrava lendo um livro no metrô, era um livro um tanto quanto chato, coisa que não me interessava muito, mas estava lendo porque já tinha lido todos da minha reserva que havia feito nas férias e era um livro bem cultuado, de um sujeito muito famoso e obrigatório em muitas escolas e até universidades. Terminei no mesmo dia e já me vangloriei de modo modesto e humilde em umas 4 redes sociais que fazia parte. Sempre me fazendo de culto singelo, que não faz questão de admiradores mas que o que mais quer é, de fato, admiradores.
Andava cansado de tanto exibicionismo mascarado e decidi sumir de vez com os meus teatrinhos que ninguém dava bola, só me achavam um pouco mais idiota a cada vez que dava as caras e decidia digitar algo pela Internet. Mas nunca larguei o hábito de fantasiar sobre tudo, fantasiar usando como fundo um último livro que li, último texto que escrevi, último filme que vi, último disco que ouvi. Tudo aquilo parece me afastar da realidade e me deixar como um usuário de drogas pesadas se sente durante as poucas horas de prazer que pode ter, que pode fugir da realidade até pedaços do seu corpo começarem a apodrecer.

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