E no calor carioca eu me encontrava novamente, em pleno outono e eu me encontrava de cueca sentado na poltrona de vovô, ouvindo um samba paulista de qualidade, por incrível que pareça, e olhava para o mar com olhos revoltados, preso naquela cadeira de rodas maldita, aquela prisão com rodas que havia privado-me de um dos maiores prazeres que eu conseguia desfrutar quando bem entendesse e sem precisar pagar por isso, andar.
Enrolei um cigarro cumprido, havia herdado um bom tabaco do meu avô, coisa de primeira, enrolei em uma seda que havia comprado e acendi aquele mini charuto com o meu Zippo que papai havia dado pra mim antes de eu nascer, coisa de estilo. Não tragava, estava só querendo apreciar o sabor do tabaco dentro da minha boca e o toque suave da seda importada nos meus lábios, perfumando toda a minha face e minha garganta com um cheiro nostálgico, um cheiro antigo. Desci para procurar um bom whisky de meu avô dentro da cristaleira mas não tinha nada, só coisa barata, não valiam nada, queria me propor uma tarde digna de um boêmio, mesmo que fosse em casa. E ao som de João Gilberto, Sergio Mendes, Stan Getz e Vinicius, eu passei minha quente tarde sozinho na minha moradia, uma das melhores tardes que eu tinha em tempos.
Devo ter fumado mais dois daqueles cigarros elitizados e fui na banca perto do metrô pra comprar um charuto, reservei uma quantia satisfatória de dinheiro para conseguir comprar um fumo aceitável, na banca o rapaz tinha todas as qualidades, dando então, uma ótima gama de sabores, países e prazeres. Comprei um baiano, lembro-me de ter visto Antonio Brasileiro fumando um desses em uma entrevista certa vez, com seu panama na cabeça e sua voz rouca e tranquila, exalando a felicidade carioca para o entrevistador e perdendo-se entre a fumaça e as bufadas de seu baiano, como se refletisse sobre uma vida inteira nos intervalos entre cada tragada que dava. Foi no dia dessa entrevista, que encontrava-me no auge dos meus nove anos de idade, que interessei-me pela incrível vida boêmia, vida que acompanhava passivamente, dia após dia, assistindo meu avô e seus amigos saindo para bares e puteiros, sambando no meio da rua ou até mesmo dentro de casa, nas noites mais frias do inverno. Lembro-me perfeitamente de Oswaldo, amigo falecido há tempos de meu avô, bêbado com uma rapariga que apanhara na rua e entrando em nossa casa, senti o cheiro de tabaco e whisky importado lá do meu quarto e fui ver o que se passava, cheguei justo no momento de ver vovó expulsando o velho a vassouradas e chutando o traseiro flácido da rapariga barata pra fora de nossa propriedade. Até hoje dou risada ao lembrar dessa cena, cena essa que marcou toda minha vida de um modo positivo, pelo menos para mim, que regi minha vida inteira baseando-me nessas histórias e testemunhos da noite carioca que meu avô me proporcionava toda semana depois do trabalho.
Ainda me sentia triste pela falta do bom whisky escocês que havia acabado há algumas semanas e tentei contentar-me com os americanos que meu avô, Olávio, havia deixado para mim. Eram de ótima qualidade também, mas não era nada comparado aos scotchs que ganhava de seus amigos, amigos esses que tinham ótimos contatos lá fora e gozavam de um estilo de vida magnífico em Copacabana, filhos de famílias tradicionais do Rio e íntimos dos militares desde antes do golpe de Estado. Nunca invejei nenhum chegado de Olávio, os mesmo privilégios que eles tinham , concediam a meu avô e a mim algumas vezes, como na vez que fomos nas corridas de cavalo e apostei toda a minha mesada no maior cavalo que vi, claro que perdi tudo, mas vovô e seu amigo pagaram minha aposta e dobraram, dando metade do que apostei a mais cada um, e assim conseguia dinheiro para a compra de meus novos discos de samba e, futuramente, gastar com as moças.
E dessa forma eu segui toda a minha infância e adolescencia, às custas de vovô e, regularmente, da boa vontade de seus amigos mais bem afortunados que nós. A cada dia que se passava eu ficava mais fascinado pelo estilo de vida do meu pai adotivo, mesmo acompanhando com meus ouvidos apurados o choro fino e desesperado de minha avó Benta, preocupada com o paradeiro do velho ou pensando nas vagabundas que rodeavam-no constantemente e que, com certeza, o velhaco sabia muito bem como trata-las.
Quando estava mais moço, lá com os meus dezessete ou dezoito anos, Olávio começou a me chamar às escondidas de vovó, nas madrugadas de sexta feira, para acompanha-lo no samba que rolava na quadra que encontrava-se há alguns quarteirões de nosso prédio e, aos sábados, na feijoada que se estendia até a madrugada de domingo, recheada de sambistas e mulatas devassas embriagadas e doidas atrás de um bom partido branco do alto escalão carioca, eu era perfeito para esse molde. Ótimos finais de semana aqueles, ótimas semanas também, ótima vida a que eu tinha aliás, tive a sorte de ser criado pelo melhor partido do Rio de Janeiro, não tinha problemas na escola, nos estudos, adorava ler, tinha dinheiro, comida boa, sombra e água fresca, tudo porporcionado pelos melhores avós da região.
Relembrando de todas essas memórias de meu querido Olávio e da minha Bentinha, movi minha prisão móvel até o elevador e decidi dar um passeio pelo calçadão, cumprimentando todos no caminho, era conhecido na área desde os tempos do samba na rua, do carnaval que pulava alegrando a criançada e das bebedeiras constantes com os mais variados tipos da cidade, de músicas a poetas, de mendigos a burgueses magnatas donos de grandes fatias do Rio em outrora. Parei no café preferido de Olávinho e pedi o de sempre, o café extra forte com um croissant de manteiga seguido de um folhado para começar e horas de leitura do livro que estivesse desfrutando na semana.
Dessa vez não levei nenhum livro, jornal ou revista científica, apenas degustei lentamente cada mordida quente daquele croissant parisiense e do mais saboroso café brasileiro que havia tomado em toda minha vida. Acendi outro daqueles charutos, havia achado uma caixa de havanos escondida no armário e quase infartei de euforia, e pensei que aquela seria, com certeza, uma ótima noite pra um quase idoso cidadão carioca. Os últimos meses haviam sido desastrasos, com a morte de vovô e da Bentinha, tinha tudo e não tinha nada ao mesmo tempo, com todo o dinheiro, nome, privilégio e posses que haviam me deixado, e ao mesmo tempo sem o meu principal companheiro de samba, de mulheres e de boêmia, e sem minha Bentinha, que sempre cuidou de mim como a um filho, melhor até talvez. Muitos pensaram que eu havia provocado o acidente para poder ficar com tudo deles de uma vez por todas, já que não conseguia esperar pela inevitável e breve morte que chegava para ambos. Aquilo era inaceitável, com o nome que tinha e que herdei dos meus velhos, tratei de dar um jeito nos monstros que falaram tal infâmia de mim e dos meus pais, mas isso nunca fez parar os comentários isolados que voavam pelo ar vez ou outra, quando eu dava o ar de minha graça nas calçadas e quiosques de frente para o mar. Passei a não ligar mais para nada daquilo. Apenas apreciava meus cigarros, charutos, cafés, cervejas e croissants amanteigados nos mais variados pontos de comércio da região, sempre envolto em uma pequena roda de pessoas, interessadas nas histórias de um apaixonado pelo samba, um senhor da meia idade que já havia se divertido o suficiente para muitas vidas, e também querendo gozar um pouco de minha mão aberta e boa vontade em pagar bebidas para todos, mas não fazia a mínima diferença pra mim, ainda conseguia algumas mulatas e louras nos finais de semana, mesmo estando confinado naquela gaiola com rodas.
Vez ou outra alguém me pedia para contar da noite que Lávo e Bentinha se foram e quase fui junto com eles, provavelmente eram os que desconfiavam de minha inocência naquilo tudo, não gostava de falar sobre aquilo mas quando menos percebia já havia me entregado totalmente aos fatos e contando daquela noite, quando voltávamos do centenário de um amigo dos meus pais/avós, mais um daqueles que, se você quiser saber como chegou tão bem aos 100, basta eu dizer-lhe que era mais um dos amigos de Olávio que gozavam da boa vida e íntimo dos generais e conservadoristas dos tempos de golpe. Estávamos voltando completamente embriagados da comemoração, todos menos Benta, não bebia mais do que uma taça de vinho ou um copo bem servido de cerveja européia, mas vovô e eu éramos dois funis ambulantes desde sempre e estávamos completamente embriagados de champagne, whisky, cerveja e os mais caros e finos tipos de vinhos que podia se encontrar na cidade. Olávinho e eu berrávamos alguma velha canção de Milton Nascimento, enquanto eu dirigia e vovó tampava seu rosto com as mãos, rezando para não acontecer nada, há muitos anos havia desistido de tentar insistir para vovô e eu não bebermos e dirigirmos, mas claro que sempre esquecíamos disso depois de estar com tudo girando na cabeça. Depois só me lembro de uma buzina bem hollywoodiana e de acordar um dia depois no hospital, com o médico trazendo imediatamente a notícia do falecimento imediato de meus avós após um jeep há 80km/h arrebentar com seu para choque poderoso a lateral direita do carro, destroçando o pescoço de vovô e quase deixando Bentinha dividida em duas partes.
O mais engraçado de contar essa história era a cara dos espectadores quando eu terminava de contar tudo isso dando leves risinhos de canto, como se estivesse me divertindo em contar sobre a violenta, recente e trágica morte das pessoas que me cuidaram muito melhor do que cuidariam de um filho e que me deixaram tudo o que conseguiram construir em suas longas e bem aproveitadas vidas. Nessas horas apenas resumo a explicação dos risos às memórias de vovô e eu quando presenciávamos e riamos por longos minutos dos frequentes acidentes que aconteciam a beira-mar, embriagados e perfumados com o tabaco dos charutos cubanos dos amigos íntimos de militares. Depois dos momentos de nostalgia compartilhada com os ouvintes, alcanço o panama, encaixo-o no cabeça, termino o charuto, pago a conta da noite e rodo até o prédio em que fui criado, há poucos metros da praia e da vida boa.
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