Tentei tocar um pouco durante a madrugada, mas só saia porcaria, não andava inspirado pra nada, era um saco bem mole. Meu sonho era ser que nem os mestres do blues, quanto pior eles se sentiam, melhor eles se saiam musicalmente...comigo é diferente, quanto pior, pior eu toco; quanto melhor, pior eu toco. Mas que maldição, queria pegar um dia e arregaçar as cordas do violão na frente de alguém, ser aplaudido de pé, mesmo que fosse uma pessoa só, de preferência mulher, é claro.
Larguei o violão longe e peguei o baixo, mesma porcaria de doer os ouvidos. Tentei a gaita e até a guitarra, mesmo estando com o amplificador queimado, estava tudo tão sonoramente qualificado quanto um cassino sendo demolido. Chorei por uns minutos, nem sei porque eu chorei, mas gostei daquilo e tentei prolongar, parou e fui beber alguma coisa, leite com cereal no meio da tarde e poucas horas após almoçar bem, ah, já to na merda, sou gordo e feio, manda bala.
Passaram-se duas horas, pensei que fossem 5 dias, fiquei escrevendo um monte de baboseiras no computador, às vezes achava que poderia mandar pra alguém e, com sorte, publica-las, mas aí eu despertava. Não gostava das minhas histórias, mas tinha orgulho de escrever textos longos e cansativos, daqueles que você fica cansado até de rolar o scroll do mouse pra ver o tamanho do texto, me sentia um pouco mais útil quando fazia coisas desse tipo, mas as histórias, ah, as histórias eram as mesmas coisas de sempre, um alter ego meu que se dá tão mal quanto o seu criador, com uma pitada de filho da mãe e arrogante, era legal.
Escrevi uma história meio pulp sobre um cara que se metia com a mulher de um big shot e estava ferrado pra sair da situação, morria e depois acaba. Sem graça, mas ficou enorme. Alguns psicanalistas achariam que faço isso tentando compensar meu trauma com alguma coisa pequena, vish. Meu apartamento alugado parecia gigantesco hoje, adorava aquele lugar, me sentia no paraíso, sozinho lá o dia inteiro, a semana inteira, mês inteiro, dependendo da época, ficava um mês inteiro sem nem ouvir o som da minha própria voz. Mas acabava ligando pra alguém pra sair depois, não aguentava ficar tanto tempo sozinho, é de enlouquecer
Alguém me ligou, uma voz familiar que não conseguia decifrar quem era, falava que eu tinha que ir lá na casa dela arrumar a pia do banheiro que estava quebrada, que eu era a única pessoa por perto que conseguia fazer isso, não faço a mínima idéia de onde tirou isso, única coisa que sou capaz de trocar é de roupa, sometimes.
Liguei um blues no último volume e comecei a fazer pequenos passos e coreografias, ficava me olhando no espelho e dando risada daquela cena deprimente, usando apenas cueca e vendo tanta pança pulando, era engraçado, ficava feliz. Peguei o violão e consegui tocar algo melhor, mas ainda assim tive vontade de quebrar tudo, sentia muita pena de mim mesmo, falava mal de tudo e não corria atrás nem de uma aula de música decente.
Quis passar o dia em casa, já estava assim há uma semana e tinha levado na boa, tava bem aceitável, devia ter engordado uns 15kg nos últimos dias, não tomava banho há três e a barba já era até charmosa no meu rosto. Sinto falta da faculdade quando estou de férias, muito mais do que sentia da escola. Ouvi dois Albert King e fiquei lendo umas duas horas, até as 17h.
Minha cabeça deu uma pontada e lembrei do que o médico disse sobre isso, que a pancada que eu havia levado há um mês atrás ia levar um tempo pra "curar" totalmente, que sentiria pontadas por uns meses, talvez anos e, com a minha sorte, talvez levasse essa lembrança pro resto da minha vida, não ligava muito pra dor física, sempre fui resistente. Na janela tinha uma pomba bem bonitinha, tentei chegar perto pra dar alguma comida, idêntico a uma velha, e lembrei de quando meu primo e eu atirávamos nela com a espingarda de pressão, fiquei com dó da bichinha, precisava de um animal de estimação pra não ficar muito só, um gato? Não, iam pensar que eu sou uma bicha afetada. Cachorro? Em apto. teria que ser um Poodle, Deus me livre. Decidi que ia procurar algum caminhoneiro que me arranjasse um papagaio totalmente ilegal por uns 50 mango, pegava ele filhote e criava o lindinho na mão, aí podia ficar que nem aqueles idosos que tem uns papagaios de 570 anos nas costas.
Falei com o Tião no dia seguinte, Tião era um caminhoneiro conhecido de minha família, sujeito humilde e que tinha uns contatos por ae pra tentar ganhar uns trocados a mais pra colocar uma comida mais jeitosa na mesa de sua família enorme, falou que ia ver o que podia fazer. Exigi um filhote de papagaio bem saudável, parecia uma bicha. Voltei pra casa e esperei cerca de um mês, não saí com ninguém nesse um mês inteiro, só conversava por algumas horas com o pessoal no computador e saia de casa pra fazer compras e pagar contas. Até que no final do mês, finalmente, chegou o bichinho.
Fiquei maravilhado com aquela pequena coisa semi-verde, nem tinha pelo e nem ao menos aquela penugem característica dos filhotes, chegava da faculdade e ficava lá admirando-o o dia inteiro, parecia uma velha aposentada sem outras tarefas mais importantes, mas me divertia bastante, tentava ensinar algumas palavras pra ele mas ele não falava nada, ainda era pequeno demais, ficava ajudando-o a quebrar aquelas pequenas cápsulas em que ficavam suas jovens peninhas, e depois ele ficava no meu ombro ou grudado no minha meia o resto do dia. Passou-se um tempo e já estava com metade do corpo coberto de penas verdes e vivas, muito bonitas, mas ainda não falava nenhuma palavra, o desgraçadinho, comecei a pensar que fosse uma fêmea. Tentava palavras clichês e simples, como "Lorôô" ou "biscoito", "Hernan", "Pai", coisas do tipo...e nada, nem um assobiozinho eu conseguia dele, mas mesmo assim eu não conseguia parar de encara-lo e me divertir o dia inteiro com ele (ou ela) pendurado nas minhas costas, me acompanhando silenciosamente em tudo o que eu fazia pela casa. Keith era o seu nome.
Desencanei de tentar fazer o bicho falar e me conformei que havia adquirido um papagaio fêmea, não me importava, era lindo e companheiro, estava precisando daquilo nos últimos meses. Passaram-se umas boas semanas silenciosas em meu apto. alugado, até que um dia, quando cheguei da faculdade, me deparei com uma cena revoltadora, Keith estava tentanto quebrar o trinco da janela, já havia quebrado um deles e estava prestes a quebrar o outro. "Nãão!" gritei, peguei-o rápida, porém cuidadosamente, e o filho da mãe me deu uma bicada que por pouco não arranca meu dedo do meio, jorrava que nem a porra de uma mangueira, e empapava as penas traseiras de Keith. "Seu porrinha!! Por que você fez isso? Te trato melhor do que trataria meu filho, fruto to meu saco, e você tenta fugir e me da uma bicada que quase me deixa mutilado?!" ficou me olhando com cara de nada, e coloquei-o no meu quarto, trancado e com segurança reforçada nas janelas. Comprei uma gaiola no dia seguinte, uma das grandes, pra ele não se sentir tão preso, apesar disso ser impossível.
Passou-se uns dias e nossa amizade parecia ter voltado, estávamos nos dando bem e, regularmente, deixava-o no ombro durante umas horas e passeava pelo diminuto apartamento, tropeçando em pares de sapatos, mesas e cadeiras, voltei a tentar fazê-lo falar, mas isso era improvável já.
Mas um dia, ao chegar da faculdade e sentar no sofá depois do almoço, comecei a ouvir um sonzinho familiar demais, e que vinha de dentro da gaiola do pássaro, me aproximei e confirmei que ele estava assobiando o tema de Kill Bill, fiquei surpreso e feliz, não sabia o que estava mais, mas havia gostado daquilo, até que quase caí pra trás:
- Ou, ogro, quando você vai me soltar de verdade, hein? Acha que eu me contento só ficando nesse seu ombro suado aí? Fico é muito puto quando olho pra janela e vejo um mundo lá fora e você e eu presos aqui dentro que nem dois imbecis encarcerados. Pelo amor de Deus, me liberta. - ELE falou.
-Mas que po...como assim?! Eu não te ensinei nenhuma dessas palavras! Ogro?! Ninguém me chama assim há uns 3 anos, pelo menos! Como aprendeu isso? Como aprendeu TUDO isso? Papagaios se limitam a repetir 20 palavras, e só repetem, não fazem idéia do que falam, nada faz sentido! O que você é?! - Cochichei, com medo de pensarem que eu era louco se me ouvissem falando sozinho, ou melhor, com um animal e tratando-o como um empresário.
-Não importa, só quero que você me deixa dar umas voadas por ae, eu volto, juro, mas nada dessa porra de gaiola nojenta, isso é coisa de presidiário, não fiz nada pra ninguém e sou um animal livre.
-Se eu te deixar ir, você não volta nunca mais, e vai acabar morrendo de fome ou apedrejado por um bando de trombadinhas por ae, pensa que eu não sei dessas coisas?!
-Não tenho medo de morrer, ogrinho, e outra, eu gosto de você e desse lugar, mas preciso sair de casa, você não entende? Estou trancafiado há tempo demais sem diversão nenhuma, tenho que sair, tenho que pegar umas mulheres, cara! - eu estava começando a concordar.
-Porra, você tem que me prometer que vai vir me ver todos os dias aqui e, se eu não estiver, você vai me esperar ou deixar um bilhete. Vou deixar a comida no mesmo lugar de sempre, você sabe.
-Você vai ter que me prometer também que vai sair dessa casa e vai curtir sua vida por uns dias. Chega dessa merda de depressão.
-Que depressão?! Eu sou animado pra porra.
-Ahh, não me engana, cara. Eu moro com você há tempo o suficiente pra te conhecer por completo. Não minta pra si mesmo - quando terminou de falar isso, caí na real de uma vez por todas.
-Ok, Keith, eu prometo. Mas me visite e tome cuidado, esse mundo é uma merda, seu bostinha. - falei enquanto destrancava a gaiola
-Não tenho medo dele, e você também não. Mas se eu não tenho, você, no fundo, também não tem! - Falou olhando no fundo dos meus olhos e abrindo suas asas, como se não fizesse isso há anos.
-Até amanha, meu velho. - me despedi
-Grande abraço!
E voou.
Deixei a comida no lugar de sempre, troquei de roupa e saí pela porta da frente. Liguei pra um querido e me encontrei com ele meia hora depois. Na rua, todos me olhavam estranho e com medo, eu ria e ignorava-os. Estava feliz de novo.
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