Logo com o primeiro
raio de Sol eu acordei e me arrependi disso. Sempre me arrependia
disso, na verdade, então não é exatamente algo com o que se possa
começar uma história interessante. Não no meu caso, ao menos. E
essa talvez não seja uma história interessante, ou talvez seja. De
qualquer forma eu também não ligo muito pra isso.
Provavelmente
estava de ressaca e minhas ideias ainda passeavam pelas conversas da
noite passada com um bando de charlatões inúteis como eu, apenas
procurando por alguns trouxas para passar a perna ou algumas garotas
para embebedar. Não os julgo por nada disso. Ligo a televisão para
ver alguma coisa bacana e lembro que era domingo, desligo o aparelho
e deito no sofá de barriga para cima, usando apenas uma cueca azul
escuro, com toda aquela banha esparramada por lá e os dedos
engordurados com manteiga. Permaneço lá por alguns minutos,
gesticulando, falando algumas palavras aleatórias sozinho e
assistindo ao lento passar dos minutos da minha incrível existência.
Fumei um pra aquele
tédio todo passar e fiquei de bobeira enquanto viajava com alguma
música, pensando em muitas coisas e realizando nenhuma. Devo ter
escrito algumas baboseiras ou rabiscado umas ideias, mas foi apenas
isso o que acontecia por mais ou menos uma hora e meia ou duas.
Eu fedia demais, meu
cabelo parecia que haviam mergulhado no óleo uma noite antes e meus
olhos eram rodeados por ramelas amareladas gigantescas que mais
pareciam meleca. Se bem que ramela é meio que uma meleca mesmo, não
é? Vai saber. De qualquer forma eu estava muito fedido e o calor que
fazia no dia não estava tornando as coisas muito mais agradáveis.
Nem a pau que eu ia tomar banho uma hora daquelas num domingo no qual
a melhor parte do dia seria certamente a hora que ele acabasse.
Tratei de acostumar com o cheiro e com as minhas mãos engorduradas
como sempre fazia nessas situações, enrolei mais um pouco de erva
numa seda importada de algum lugar que alguém me presenteou e peguei
o telefone para ligar para alguém que quisesse trocar ideias num dia
tão vago e não me veio ninguém à mente naquela hora. Disquei a
primeira sequencia de números que meu cérebro pescou na minha
memória e pensei em algum assunto para conversar com seja lá quem
atendesse do outro lado:
- Alô? - voz feminina
- E ae, quem é?
- Renata
- Renatóideees, como vai?
- Meu, acabei de acordar, sério. O que você quer?
- Só papear, coraçón, tô sem nada pra fazer aqui e dúvido muito que a senhora estivesse com grandes planos marcados pra essa hora da manha – respondi enquanto acendia mais um baseadinho
- Dormir é um grande plano.
- Por que? Tá uma depressão profunda aqui nessa porra...dia desgraçado do cazzo. Só queria falar com alguém pra não ter que me matar por aqui e sujar o carpete todo com a merda que meu corpo cagaria depois.
- Por que você só fala merda? Já tá fumado, né? - devia ter me ouvido segurando a fumaça e isso era o bastante pra achar que fumei, o que era o bastante pra ela justificar o que eu falava dizendo que era culpa da erva.
- Porque eu falo o que sou. E sim, fumei.
- Por que?
- Peque?
- Vai se foder, vou voltar a dormir. Durma também e para de encher o saco dos outros, seu maconheiro.
- Dorme não, filha. Fica aqui comigo, caralho. Se eu não durmo ninguém...
CLANK.. Desligou.
"Foda-se",
pensei comigo mesmo, mas no fundo ela tinha toda a razão mesmo não
tendo falado nada. Dormir era sempre o grande plano. Um ótimo plano
que funcionava muito bem nas mais diversas situações, sejam elas de
tristeza, depressão, decepção, vazio, crises da meia idade, crises
financeiras, crises pessoas e crises existênciais. Por isso eu segui
o seu conselho e depois de fumar deitei na cama, no maior breu que
consegui fazer aquele quarto atingir. Mas minha cabeça era
bombardeada com pensamentos profundos e ideias filosóficas,
normalmente eu conseguiria dormir com coisas assim na mente, mas acho
que esses eram recentes demais e eu queria pensar mais e mais e
chegar a novas conclusões e talvez até escrever sobre aquilo mais
tarde. Mas na verdade não passavam de coisas idiotas e demorei menos
de uma piscada para esquece-los por completo, assim como o mundo não
demoraria menos de uma volta para se esquecer de mim quando eu fosse
embora desse plano físico.
Não conseguia
dormir de jeito nenhum e aquilo estava me deixando louco. Parecia que
tudo ao meu redor não passava de lixo e eu era apenas a sombra de
mais uma mosca em cima de toda essa podridão. Tudo o que eu fiz até
aquele momento de minha vida não era nada e nunca seria nada, assim
como todo mundo. Queria tirar aquelas coisas da minha cabeça mas a
verdade é que elas queriam sair há muito tempo, estavam presas há
tempo demais em suas gaiolas e agora elas iriam se libertar e trazer
consigo tudo o que bastava para derrubar alguém. A minha sorte é
que eu já estava no chão muito antes de conseguirem me derrubar.
Enfiei a cabeça no travesseiro e gritei com a toda a força que eu
conseguia, gritei mais vezes e não parava de gritar como uma
adolescente que acabou de perder o namoradinho que a deflorou na
noite anterior e se sente usada como um animal no abate. Logo depois
eu chorei como uma criança e finalmente consegui dormir por algumas
horas a mais, em cima daquela fronha babada e molhada por lágrimas,
com a minha garganta ainda quente e dolorida devido aos berros de
desespero que fizeram eu me sentir leve como uma pluma depois que
cessaram.
Acordei um pouco
depois do que eu considerava a hora do almoço, comi um amontoado de
restos da semana em um prato bem servido e dei uns tragos depois para
poder relaxar mais ainda com toda aquela chatice de dia. Não
aguentei e liguei a televisão para dar uma olhada rápida e me
surpreendi com alguns canais passando programas realmente
interessantes. Na verdade eram dois programas e estavam um no fim e
outro começado, fiquei com o começado porque era isso ou algum
filme de ação que eu prefiro nem começar a comentar sobre.
Não aguentava mais
nem um segundo naquela sala rançosa, com cheiro de banha amanhecida,
maconha e arroto. Calcei uns chinelos, uma bermuda que ficava caindo
e mostrando meu rabo e uma camiseta que achei em algum canto do meu
quarto e saí pra dar um rolê pelas ruas aqui perto, encontrar
alguém pelos lados do metrô e conversar um pouco, sair daquele
ambiente que estava me dando nos nervos.
Chegando até o
metrô, pensei em tomar alguma coisa e apalpei um dos bolsos da
bermuda, e foi quando tive uma primeira boa notícia nesse dia: no
fundo do bolso se encontrava, amassado, vinte mangos amarelinhos
esperando para serem gastos. E no bolso da perna outra boa notícia,
um pouco de erva que devia estar perdida por lá não faço ideia
desde quando. Enrolei em um guardanapo qualquer que arranjei por lá
e acendi, tragando e vendo as pessoas andando na passarela em direção
à estação, tentando serem úteis no mundo, lutando por uma
existência mais notável e não conseguindo nada em troca. Cães
ossudos se cheirando e procurando pedaços de comida para poder
sobreviver mais um dia, se vangloriando para os outros cães que
estavam atrás dos portões das casas, andando com toda a classe que
um vagabundo tem, exibindo toda a liberdade que a natureza lhe deu e
que aparentemente foi tirada dos cães que estavam do outro lado dos
portões. Um deles se aproximou e pelo visto se interessou pelo
cheiro da fumaça que estava ao meu redor, cafungando tudo com o seu
fucinho e olhando pra mim com cara de miserável. Assoprei um pouco
da fumaça em seu rosto e fiquei lá brincando com aquela pobre
criatura do mundo, simpática demais para um cão, desgraçado demais
para a vida. Foi nesse momento que Fabio surgiu como uma sombra na
escuridão e o cão seguiu seu rumo atrás de comida e um pouco de
carinho das mãos de alguém que não se importasse em suja-las com
seu pêlo castigado pelas ruas amargas e frias daquela merda toda.
Fabio chegou com seu
caderno todo envelhecido, um lápis na orelha, seu chapéu que usava
todos os dias e seu olhar penetrante, sempre ativo em suas ideias
considerada por muitos insanas. Me cumprimentou com poucas palavras,
apertando minha mão e foi seguindo em direção a um canto mais
vazio, uma espécie de viela que os drogados e maconheiros vira e
mexe iam pra lá para fazerem suas coisas. Tirou uma boa quantidade
de erva de dentro de um pedaço de saco plástico amarrado com um
barbante e começou a enrolar um belo cigarro junto com o que tinha
sobrado da minha erva. Fabão era uma das pessoas mais curiosas que
havia conhecido nos últimos tempos. Tinha uma espécie de sabedoria
espiritual que eu apreciava muito, suas conversas iam e voltavam,
transitando entre vários campos espirituais, espaço-temporais,
física quântica e filosofia aprofundada. Estava escrevendo um livro
há um bom tempo, uma série, e nos mostrava o seu progresso e eu de
vez em quando mostrava algumas coisas que escrevia para ele.
Ficávamos por lá, fumando, conversando sobre assuntos que
dificilmente se encontra alguém para conversar, sentia-me bem à
vontade e discutíamos algo sobre o início de toda a vida na Terra,
do Planeta e da evolução de todas as espécies e do futuro da
Natureza, tudo fluía espontâneamente e com uma naturalidade que
fazia eu me sentir bem. O tempo voou que nem uma águia e já estava
quase no fim da tarde quando me despedi, completamente emaconhado,
daquela figura única, um protótipo no meio de tanta padronização,
um freak no meio dos cabelinhos penteados.
Subia para casa e no
caminho me lembrei daquelas quase vinte pilas abarrotadas no fundo do
meu bolso, aquilo já servia para fechar o dia com chave de platina.
Passei no mercadinho do bairro que não sei como ainda estava aberto
e peguei um engradado que tivesse mais cerveja pelo menor preço
possível. Com o troco peguei um chiclete e assim acabou toda a minha
grana da semana, eu acho.
Chegando em casa eu
tirei toda a roupa e voltei a ficar no meu estado natural, de cueca e
mais nada, com aquela catinga ainda no meu corpo e suor seco
misturando novamente com o líquido que voltava após subir as ruas
do meu bairro. Enfiei todas as cervejas no fundo do freezer e dei uma
golada em uma vodka que tinha por lá. Não sou muito de bebidas
quentes, mas já que era pra chapar, chapemos direito. Acendi uma
cigarrilha (lembrei de um maço que deixava escondido atrás dos
dvd's para não ficar fumando todos os dias) e sentei para ver se
escrevia algo, nada saiu e eu só fiquei ali, olhando para a tela do
computador e tragando fumaça, pensando em alguma nova tatuagem ou o
próximo livro que iria comprar. Enrolei por mais meia hora, caguei,
lavei as mãos, comi uma maçã e decidi pegar uma cerveja no freezer
estando fria ou quente.
Estava meio quente
ainda mas nem me importei. Me rendi novamente à televisão e fiquei
alguns minutos passando pelos canais, deixando em alguns desenhos por
uns instantes e sorvendo cerveja e queimando tabaco. Desliguei e
deixei uma música tocando enquanto virava mais latinhas dentro do
copo e ia bebendo um tanto quanto rápido, algumas mais quentes e
outras já mostrando uma temperatura mais baixa – "daqui umas
duas já estarão todas quentes" - pensei. E sim, estavam
ficando mais geladas e aquilo animava o final da minha tarde. Uma
tarde em que busquei nada mais do que prazer e ócio, e acho que não
consegui muito de nenhum dos dois.
Tudo isso aqui
parece muito deprimente e inútil, imagino. Ninguém que se pegue na
vontade de ler algo interessante ou educativo pegaria para ler um
"conto" tão vazio e vulgar como esse. E é exatamente esse
o problema de tudo, ultimamente. O vazio que parece me comer cada dia
mais, cada dia mais um pedacinho da minha alma e da minha existência.
Ansiedade por algo novo, pela ampliação do horizonte e da
perceptividade, será que ninguém fica se perguntando sobre qualquer
uma dessas coisas? Pelo amor, está tudo fodido e somos apenas o
fruto de mais alguma foda. Uma foda que começa pelas nossas bundas e
sai pelas nossas bocas, e nem nos damos conta disso, passando por
aqui, passando por todos os lugares que passamos dentro do
insignificante espaço de tempo em que habitamos esse pequeno pedaço
de galáxia e nem nos damos conta disso. E na verdade acho que
ninguém quer se dar conta disso, melhor viver iludido pela máxima
de que precisamos fazer algo útil nessa porra, que para sermos
felizes precisamos, de alguma forma, sermos úteis para toda a
sociedade. Talvez, em termos filosóficos e pessoais, nos colocando
somente no plano físico e nada mais além disso, temos a necessidade
de usar nossos esforços mentais e braçais para benefício da
humanidade e do nosso ser social. Mas talvez tudo isso seja em vão e
nada do que fazemos importe muito. Nada pelo que batalhamos seja de
interesse para outros universos e outras civilizações. Não somos
nada no final de tudo, mas isso muita gente já sabe, imagino.
Terminei todas
aquelas cervejas e já estava bem baleado no final da última. Tocava
alguma música do Gong quando acendi uma última ponta que achei no
cinzeiro para terminar a minha noite, enrolei-a com um pouco de
tabaco para render mais e comecei a simplesmente falar sozinho por um
tempo. Sentado no sofá, de cueca e um fedor que deve ser crime em
algumas culturas, bem bêbado, de barriga vazia e chapado, fiquei
conversando comigo mesmo por um bom tempo, enquanto tomava uns copos
de água e comia uns amendoins. Tudo parecia bem no final. Havia
conversado com os meus demônios ao longo do dia inteiro e eles me
deixariam em paz por uns dias e eu os agradeci por tanta gentileza.
Olhei para o relógio, o tempo havia voado novamente, ou estava muito
louco e não lembrava de tudo o que aconteceu naquela sala, só via
uma bagunça um tanto quanto chata. Apenas me levantei, subi as
escadas e me joguei na cama com toda a vontade. Depois disso só
lembro de acordar.
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